quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

O capitalismo como monarquia

É fácil encontrar apoiantes da monarquia em descendentes, mesmo que remotos, de marqueses, duques, condes, barões ou até escudeiros. Mais difícil será encontrar um que assuma sê-lo por nostalgia ou anelo do privilégio. Não serei muito injusto se disser que ninguém é monárquico porque deseja servir uma elite, mas porque considera ter boas possibilidades de pertencer a essa elite.

No capitalismo actual, as elites políticas e empresariais não vivem menos a legitimidade do privilégio do que velhos duques de bigode enrolado ou velhas duquesas de leque enfastiado. Pavoneiam-se pela urbe com absoluto descaramento, como outrora se desfilava ociosamente de caleche e cartola nas barbas do povo descalço e servil. Vê-las-ão com um esgar de nojo ou escândalo se ousarem falar-lhes das desprezíveis dificuldades de viver com o salário mínimo, como antes se observava na cara da aristocracia a máscara do tédio se o feitor mencionava a doença de um criadito.

Paulatinamente, desde os anos oitenta do século XX, o capitalismo foi fazendo o seu caminho na (re)instituição legal do privilégio de casta. É assim que a lei hoje aceita bonacheiramente despedir sem rebuço nem indemnização um assalariado e tem horror a tocar no vencimento milionário de um CEO, no bónus obsceno de um gestor ou na indemnização pornográfica de uma administradora. Na Idade Média, o valor de um condado podia ser medido pelo número de homens sob o domínio do seu senhor, geralmente centenas ou milhares. Hoje, é o valor do salário do “senhor” que pode ser medido pelo número de salários de homens comuns que cabem no seu cheque mensal, não raro centenas. Ou milhares. Em ambos os casos, a moral de Estado, recostada no canapé a coçar os interstícios das banhas, não via ou vê razões para alterar seja o que for.

A inabalabilidade do regime feudal não pode contudo servir de justificação para os desmandos de hoje. Assim como o que quer que Passos Coelho tenha legislado no seu pequeno reinado neoliberal não pode servir de desculpa hoje para a dinastia PS.

Indemnizações e vencimentos como os de Alexandra Reis (voilà!) não são uma fatalidade feudal. É possível no quadro legal em vigor, apesar de tudo, não pagar daquele modo, não indemnizar daquele modo. E sobretudo é possível mudar o quadro legal. Só não sei se ainda é possível mudar o quadro mental das castas sem mudar o sistema capitalista. E não vão ser elas a mudá-lo.

domingo, 4 de dezembro de 2022

Os anos

Leio as primeiras páginas de Os Anos, livro de Annie Ernaux, com um misto de nostalgia e inquietude. Nelas, por descrição ou sugestão, vejo passar em revista o tempo remoto da minha infância — mas vejo-o como se acabasse de ter um acidente e os anos se apressassem a desfilar.

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

A peregrinação de um caçador-recolector

Depois de meses de ausência, lá fui visitar a terra-mãe. Pelo caminho, vi, conferenciando como pombos numa praça, o maior bando de corvos com que alguma vez me cruzei, e achei isso de bom agouro. Parei o carro junto ao baldio e fui em paz até eles, mas espantaram-se às centenas e não pude estabelecer contacto, apenas desfrutar do panorama visual daquela chusma em vaivém, pousicando aqui e acolá e nas torres de iluminação de um estádio longe do Qatar.

Ao chegar, fui primeiro ao lago, um dos meus territórios de caça. A tarde findava e não queria negar à sorte a chance de me surpreender outra vez com alguma da esquiva fauna avícola que já por ali vi: corvos-marinhos, patos selvagens, a garça-real que iniciou o Villa Juliana. Passeei brevemente de mãos nas costas, místico tal monge em claustro, e lá tive um gazear, mas quando virei os olhos aos céus já não pude ter a certeza se o que os cruzava era deus, garça ou ave ainda mais rara.

Ia dizer que continuei pelas estações da minha via-sacra, mas o que evoco em cada sítio onde me detenho não tem nada de dor ou sofrimento, pelo que mais acerto se disser que peregrinei. Não com um percurso pré-definido, mas deixando-me levar pelas muitas áleas e carreiros, entregando-me ao dédalo sensual do parque romântico como ali mesmo se entrega o corpo dorido às mãos do balneoterapeuta.

Cheguei à zona sul, onde antigamente, se centrava a nossa actividade micológica e os meus olhos deitaram-se pavlovianamente a sondar os canteiros. Não procuravam os cogumelos perdidos, mas a iminência do Mistério, a emoção, o espanto que na altura me tomava nas raras vezes em que encontrava um. Julgo que por isso peregrino: não para evocar momentos, estórias, pessoas, mas para recuperar a inocência, a virgindade, a capacidade de expectativa e fascínio de quando o mundo estava por descobrir e era prometedor.

Caía uma morrinha e deitei o capuz pela cabeça. Há hoje ali bungalows e turistas neles, pelo que o meu deambular de recolector nas zonas de sombra dos canteiros pareceria decerto sinistro se algum perscrutasse a noite acabada de instalar. Isso não me demoveu. Nem sequer a possibilidade nada remota de o meu passarinhar ser confundido com voyeurismo ao cruzar, mesmo que à distância, os grandes envidraçados iluminados por dentro que expõem, se os houver, os esplendores e misérias dos cortesãos em escapadinha de fim-de-semana.

Não tendo encontrado roca ou frade, a minha atenção voltou-se depois para a flora. Os letreiros brancos que puseram defronte de algumas árvores brilham como faróis na noite e resolvi orientar a navegação por eles. Recolhi: cedro-do-atlas, faia vermelha, abeto-de-douglas, calocedro, sequoia-sempre-verde, bordo-japonês, choupo-branco, pinhão-chinês (com um belo triplo tronco), castanheiro-da-índia, carvalho-americano e o ex-libris local, o exemplar de sequoia-gigante de casca fibrosa e suave que hoje se tornou moda apalpar como em Verona se apalpam os seios de Julieta. Encostei-me a ele, mas de forma pudica.

Também recolhi, sem letreiro, vários exemplares de árvores de meródios, que noutros locais se conhecem como medronheiros e que na antiguidade me embriagavam só de lhes olhar os frutos vermelhos com vago conhecimento das suas propriedades alcoólicas (que de resto ali não se aproveitam). Ia jurar que estão iguais, mantêm a mesma leve ameaça de fruto proibido conjugada com a mesma sedução genesíaca.

Não há letreiros para todas as espécies, mas também não há alfabeto nem gramática para alguns dos exemplares sob cuja sombra me recolhia há mais de trinta anos. E se houvesse não me dariam informações curiosas e úteis sobre os seus nomes, características e proveniência, mas sobre certas propriedades inefáveis.

Andei também a respigar pelo minigolfe, descobrindo as suas velhas pistas como alicerces aztecas a despontar das ervas crescidas e das folhas de Outono. Passei pelas traseiras hoje amplas do balneário e encontrei a antiga serralharia onde quase fiz carreira depois de um curso profissional e equívoco em metalomecânica. E passei pela casa onde viviam as freiras, pensando que se aguentei sem esforço os retiros e os terços é talvez porque estava vagamente apaixonado por uma delas.

Chovia copiosamente quando terminei a peregrinação pelos lugares devotos da minha religião pessoal, mas ainda não era o Dilúvio.

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Monsenhor, passando de bicicleta

[Do baú:]

“mas vós monsenhor dando ao pedal/ como abrandais a minha têmpera/ até a transformardes/ num veludo de rosas/ que vos saúdo tiro o boné aldeão/ faço o sinal da cruz mal imitado/ / a ver se atravessais a praça/ sem bater no lancil”

Fernando Assis Pacheco, “Monsenhor, Passando de Bicicleta”, Respiração Assistida

Monsenhor, passando de bicicleta, pragueja. Vai atrasado quarenta anos. Que não o impeça ninguém. É melhor que abram alas, despejem as ruas, proíbam o trânsito; arranjem-lhe uma escolta de motos e polícias uivantes. Das beatas não quer ver-lhes pinta de negrura, seja o vulto que se ergue em trajes inteiriçados de virtude, seja a sombra que mais honestamente se prostra nos paralelos da calçada. Os seus pares que voltem aos afazeres, joguem cartas, que vão rezar missas ou o que lhes apeteça. O senhor bispo fique-se pelas epístolas obesas sem receptor ilustrado, pela catequização dos espelhos do seminário, que lamente, se quiser, a falta de vocações e lombos para arrear sotainas.

Monsenhor, passando de bicicleta, retorce a beiça. À saída do quintal sacrossanto, do condomínio episcopal, a rua resolve ser ladeira, coisa pouco própria para pernas de sessenta anos. Mas monsenhor retorce a beiça porque está zangado, as pernas que façam, sem lamentos nem quebranteiras, este último servicinho, castigo pequeno para membros cobardes, que se abrigaram toda a vida debaixo de saiotes e fraldas compridas. Pedalem agora, se outra coisa não souberam fazer. Firmem-se agora, se fraquejaram antes.

Monsenhor, passando de bicicleta, faz caretas e retine a campainha. As saias esvoaçam, a populaça alvoroça, um cavalheiro muito lá da igreja segura o queixo de pasmo; as tipas da residência universitária gabam a torneadura dos membros inferiores do velho, pese a lixívia que os descolorou; um automobilista choca por trás porque olhou para o lado em vez de travar; o da viatura B, a abalroada, já se lhe dirige com a declaração amigável e um par de tabefes em preparação; as pombas, asas para que vos quero, mas não sem cagadela no Camões da Praça; os marroquinos dos couros e os indianos das rosas, ala, ainda não conhecem bem as fardas, não sabem que aqui as saias não tem autoridade sobre o comércio e que Cristo não voltou à terra a azucrinar os vendilhões; e a campainha ainda assusta um arrumador que tinha escapado ao programa.

Monsenhor, passando de bicicleta, berra como um doido quando dobra esquinas e cruza vermelhos. Não pára, claro, nas passadeiras, porque é português e estudou física e teologia, e da física sabe os poderes da aceleração, a problemática do atrito em caso de paragem brusca; da teologia só recorda a multiplicação dos peixes e as caminhadas sobre a água; com a nacionalidade está confortável. Um helicóptero fez a sua ascensão, por mandato do comando distrital da polícia, para acompanhar e antever o destino da desfilada eclesiástica. Há alguma estática na comunicação, interferências inusitadas, parece que estranhos fenómenos climáticos estão marcados para o dia de hoje, ou estará para se manifestar a birra celestial com o sprint de Monsenhor, as televisões ainda não o sabem bem, e em rodapé há testemunhos de Virgens que choram e pedófilos em segredo de justiça.

Monsenhor, passando de bicicleta, acha mal que tenham construído aquele prédio onde antes era estrada, dividindo-a; não sabe se consegue meter pela direita, como mandam as escrituras e a seta branca em fundo azul, e mete pela esquerda; não tem tempo para os códigos, da estrada ou da moral, e sobretudo, considerando a força centrífuga e o ângulo do corpo, o caminho ímpio é o único que o salva da queda.

Monsenhor, passando de bicicleta, deixou para trás a cintura industrial da cidade e os paramentos que se lhe enrolavam no pescoço. Saiu à pressa, está bom de ver, e, segundo o último directo feito pela equipa de reportagem no helicóptero da polícia, não diminuiu um metro por hora a mesma urgência que o leva de nariz colado no volante do biciclo, traseiro sentado no selim alto, excepto quando as subidas obrigam a outro jeito de pedalar. Monsenhor aceitaria, de bom grado, apostas sobre o seu destino, tivera ele tempo e humor. Mas vai resmungão. O suor, o esforço, o pulso acelerado, as pernas acima abaixo, não lhe tiraram tempo para praguejar. Vai praguejando Monsenhor, e no Vaticano não se pragueja, que Deus não quer, mas há ali umas autoridades muito zangadas com Monsenhor, sem saberem, em boa verdade vos digo, porquê.

Monsenhor, passando de bicicleta, olha para cima deitando chispas pelos olhos e aproveita uma recta para tirar as mãos do volante e fazer um manguito dos antigos aos céus, talvez apenas para o helicóptero que transporta a equipa televisiva e as imagens que esta prepara para o jornal da noite, quando um especialista em motricidade humana dirá impante onde parará o pedalar de Monsenhor e um perito militar do Instituto de Cartografia discordará, porque tem grande fezada em um de vários destinos prováveis para o bólide clerical.

Monsenhor, passando de bicicleta, vai muito, muito zangado, mas encosta o dínamo na roda dianteira e faz luz sobre o seu caminho, desassossegando a bicharada no campo.

2003

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Profetas dos últimos dias

O ambientalismo é hoje uma escatologia e os activistas continuam a ser frequentemente confundidos com fanáticos religiosos de cartaz ao pescoço a anunciar o fim do mundo numa esquina. Mas, ao contrário daqueles, os activistas não têm a possibilidade de encontrar alívio nos antipsicóticos — e menos ainda na ciência.

Tailleur

Se em vez de roupas extravagantes e penteados futuristas, eles, que não têm futuro, usassem um esmerado tie knot debaixo de um Barbour devidamente ensebado, perdão, encerado, talvez os jovens activistas conseguissem, se não salvar o planeta, fazer os velhos conservadores de todas as idades questionarem a coerência do seu pensamento.

domingo, 6 de novembro de 2022

A primordial emoção do jogo

O jogo vai avançando e a equipa ganha por quatro a um, mas ele sofre como se houvesse um empate e na vitória residisse a última esperança da humanidade. Sozinho na mesa com os restos desolados do seu jantar, lança olhares suplicantes em volta à procura de uma alma gémea que compreenda o seu tormento e com quem possa partilhar agruras e impropérios. Porém — algo bizarro nesta era, uma noite pública irrepetível —, só encontra indiferença. É certo que um ambiente sem a habitual empatia não costuma intimidar os adeptos do jogo, mas ele acanha-se, comenta para si (e involuntariamente para mim, que tenho por cima do livro ouvidos de tísico) e morde a língua a cada ameaça de grosseria.
A equipa adversária marca um golo e o espectador, que já olhava o ecrã como quem a partir do banco do réu adivinha na fisionomia do juiz uma sentença desfavorável, vira-se agora para o tecto com expressão lancinante e um nó na garganta a avaliar a solidez de imaginárias traves de carvalho. Dois minutos depois, um terceiro golo fá-lo levar as mãos à cara, comprimindo-a e abrindo uma excruciante boca como o gritador de Munch, com o mesmo silêncio estridente.
A disputa acaba com o resultado de quatro a três (bastava o empate) e ouve-se-lhe a primeira observação em voz alta enquanto se levanta para pagar: «Poderia ter sido sempre um jogo calmo…».
Se o tomarmos como barómetro, somos levados a suspeitar, para lá das palavras, que o espectador não se referia à ocasião do 4-2 mas ao minuto zero, ao próprio apito inicial, como momento em que o jogo deixou de ser calmo.

terça-feira, 1 de novembro de 2022

O senhor Palomar e o amor sáfico

Vêm de mãos dadas e ele, em passo de jogging, capta-lhes na distância um semblante que hesita em definir como semi-erguido em desafio ou meio abatido de embaraço. À medida que se aproximam, pergunta-se, com ligeiro desassossego: vincam com ousadia a sinceridade dos dedos entrelaçados ou preparam-se para baixar os rostos acossados?

A consciência da situação faz com que a dúvida se vire depois para si próprio e então hesita entre olhar brevemente com naturalidade ou desviar os olhos sem demora. Se optar pela primeira hipótese, será convincente a sua lhaneza, não se sentirão as moças objecto de curiosidade circense ou censura arrogante? Por outro lado, se escolher deixar de olhar agora, com pudor e respeito pela intimidade alheia, não pensarão que ele o faz precipitadamente por indignação ou nojo?

O dilema é resolvido pela intervenção de uma força de outra natureza: vence a curiosidade literária, que o incita a procurar sem rebuço nem mandado personagens em todos os transeuntes. Flanqueia-as a olhá-las com esbaforido olhar clínico, imaginando-as na mesa do anatomista, não se dando conta de que, desta vez, no hiato onde ocorrem os dilemas absurdos, é ele a personagem.

domingo, 23 de outubro de 2022

«Porque fazer hoje, se pode ser depois?»
Por definição, esta maneira de ser ainda nos vai levar longe.

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Metamorfose

Do outro lado da esplanada senta-se uma septuagenária com ar frágil. Imagino-a à espera do chá com bolo, como outras que frequentam o sítio, algumas prestes a adentrarem no labirinto de Alzheimer.
Minutos depois volto a olhar e noto que à sua frente tem um café e um copo de água e que está a retirar um cigarro do pacote, com gestos precisos, habituados e elegantes. À primeira baforada, que lança erguendo uma inesperada cabeça de femme fatale, está já completa a metamorfose: é agora uma veterana agente da CIA, com um ar determinado e firme, duro, controlando remota e friamente operações secretas, quiçá a abdução de Putin.

domingo, 9 de outubro de 2022

Os anos 20, outra vez

Na história nacional da infâmia (esperemos que algum dia se possa fazer), encontraremos dois momentos premonitoriamente sinistros protagonizados pelo PSD. O primeiro aconteceu na noite das últimas presidenciais, quando um Rui Rio histérico celebrou mais os bons resultados de André Ventura e os maus da esquerda bloquista e comunista do que a vitória do seu correligionário. O segundo teve lugar há poucos dias, quando Montenegro pedinchou ao Presidente da Assembleia um lugar de vice-presidente para o Chega.
Repete-se a atracção fatal da direita pelo abismo da extrema-direita que geralmente antecede e prepara o fascismo. Está tudo na História, a de há um século e a que se desenrola hoje perante os nossos olhos, na Europa, nos EUA, no Brasil. Leitura aconselhada: Como Travar o Fascismo, de Paul Mason.

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Feriado no parque

A grande vertente relvada que se inclina para o rio nega a ideia de parque, está vazia, silenciosa, parada debaixo do Sol como se alguém tivesse congelado um momento no tempo sem humanidade. As pessoas, dá-se conta depois, existem e estão distribuídas em grupos de dois a quatro na fileira de bancos que acompanham a margem, distanciados entre si uns vinte metros. Da perspectiva em que se vêem, os bancos parecem estações de uma linha de metro e as pessoas neles, sem já saberem o que fazer a um feriado, matam o tempo enquanto esperam — figuras de um último quadro de Hopper movendo apenas imperceptivelmente indicadores e polegares nos seus ecrãs tácteis.

terça-feira, 4 de outubro de 2022

"Hungry like the Wolf"

O enredo do filme, uma reconstituição histórica, passa-se em 1979/1980 e na banda sonora ouve-se em dois momentos a canção “Hungry Like the Wolf”, dos Duran Duran, lançada apenas em 1982. Uma imprecisão de somenos, a banda sonora não é parte dos factos. E havia decerto maneiras menos agradáveis de falhar o rigor histórico. 

domingo, 2 de outubro de 2022

Casais 2 - Scroll around

O segundo casal chega de carro e estaciona recatadamente, mas sem romantismo, ignorando as vistas. Quando desligam o motor, ambos debruçam o rosto sobre os seus pequenos ecrãs, não sei se num scroll up and down como prelúdio erótico ou se porque simplesmente a viagem para ali os manteve demasiado tempo afastados das suas ligações afectivas.

Casais 1 - Woodstock

Saem sorridentes a cheirar a marijuana de uma zona que imaginei lamacenta, ele em tronco nu, t-shirt numa rodilha a pender-lhe do cinto, barbas hirsutas e rabo-de-cavalo; ela com vestido comprido e rendado de rapariga em flor, óculos redondos, gancho no cabelo e bolsa de palha ao ombro. Espreitei-lhes por cima das cabeças a ver se havia um Woodstock ali atrás, mas só vi silêncio e pó de oiro, e o vestido, reparei depois, vinha imaculado.

Tempo enredado

De um lado, muros de pedra antigos e pequenas árvores que por serem autóctones e de folhas ríspidas parecem também antigas, tudo banhado por sol e sombras de velhos fins de Verão; do outro, uma rapariga em trajes desportivos que fala para um pequeno ecrã como personagem de Espaço 1999 ou Star Trek e uma voz que lhe responde, com uma cara que não vejo, talvez do outro lado do mundo ou de um planeta distante, quem sabe. Ia dizer passado e futuro à beira-rio mas por ter invocado séries televisivas de outros fins de Verão ocorre-me que é apenas o tempo a enredar-se na sua própria fábula.

domingo, 25 de setembro de 2022

Compreendendo a mosca

A mosca cola-se ao vidro da janela não como um recluso a cobiçar nostalgicamente a liberdade e o ar puro mas com a melancolia abstracta de um amante sonhador ou preterido.
A esta luz consigo perceber que quando a mosca pousa em nós na piscina não o faz obedecendo a uma vocação para importunar, mas por uma carência dolorosa, um desejo erótico de pele nua.
A mosca é um amante ferido ou muiiito insatisfeito.

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

A maldição das variações cromáticas

Depois de ter sido «cínico» e «macabro» a propósito da fleuma de Isabel II, desconsiderando em simultâneo a obra de Andy Warhol, fui castigado com a maldição das variações cromáticas. A partir de amanhã, sou obrigado a escolher, não um tailleur, mas um tom de pele diferente em cada dia, exibindo uma paleta que vá da ira à icterícia, passado pela azia. Em caso de cumprimento, diz a maldição, habilito-me a ser pendurado nas paredes do MoMA — ou designado grão-mestre da Ordem da Jarreteira.



quarta-feira, 21 de setembro de 2022

A fleuma real

Os comentadores falam da capacidade (e dever) que Isabel II tinha de não exprimir emoções, de não mostrar estados de espírito, de se manter absolutamente opaca e neutra perante os solavancos e as transformações do mundo. E falam desta vocação para a impassibilidade como de uma virtude. A fleuma extrema, não como característica étnica, mas requisito de estado.

Como se explica então que os súbditos a amassem e o mundo a admirasse? O que é que amavam e o que é que admiravam? O vazio? O deixa andar que não é nada comigo? (Conheço muita gente que cumpre lindamente estes critérios e ninguém, por enquanto, lhes pôs uma coroa na cabeça.)

Como se pode amar uma figura plana, sem dimensão emocional? Como se pode admirar um chefe de estado que não participa, nem como árbitro, nos processos políticos do seu país? Pelos filmes do James Bond em que entrou?

Diz-se que, quando o Reino Unido se preparava para referendar a sua permanência na UE, ou seja, se preparava para alterar uma parte da sua identidade e perturbar o xadrez político da Europa, a rainha apareceu num evento público trajada de azul-UE, o que alguns entenderam como uma subtileza política e outros apenas como resultado aleatório da pesca matinal no rainbow closet (o compartimento onde se guardavam os tailleurs da rainha, dispostos em pantone como nas lojas CIN). Não se lhe tendo conhecido um pronunciamento mais assertivo ou sequer um apelo à reflexão sobre o destino do seu próprio reino naquela encruzilhada, podemos deduzir que à rainha era indiferente a escolha política desde que pudesse continuar a sucessão dos dias com as suas alternâncias de cor e as transferências do orçamento de estado. Mais do que personificar uma nação ou um reino, parece-me que a rainha personificava (sem ironia, claro, que lhe estava vedada) as variações cromáticas de Andy Warhol. Era tão bidimensional e desinteressante quanto as telas em série que a representavam.

Os entendidos da monarquia ou os amantes de fatos de tecido e corte britânico (que são mais ou menos o mesmo grupo) dir-me-ão, zangados e paternalistas, que a rainha, mais do que um chefe de estado, é uma presença tutelar, uma figura que representa a linhagem, a continuidade e, naturalmente, a fibra de um povo. Desempenha mais ou menos o papel fantasmático dos retratos de tetravôs em paredes de tabique ou dos totens esculpidos e venerados de certas tribos, das estátuas de deuses orientais ou pagãos, o papel da Virgem Maria num muro de jardim católico ou da múmia de Lenine na Rússia. Por este prisma, creio que mandá-la embalsamar seria uma ideia mais coerente e eficaz do que passar a coroa ao filho. Não há nada de mais fleumático do que a obra de um taxidermista.

Mas talvez as pessoas a amassem como os patriotas e as crianças amam uma bandeira, fascinados com as cores e o drapejar. E assim, na impossibilidade legal e ética de prender o príncipe Carlos a um mastro pelo tempo do seu mandato, talvez os britânicos pudessem simplesmente arvorar um dos seus jaquetões vermelhos de cerimónia e aclamá-lo rei. Ao jaquetão.


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P.S.: Se a imperturbabilidade da rainha explica o sucesso da Inglaterra nos últimos setenta anos, proponho que em Portugal se eleve com urgência um bibelô a presidente da República. (A hipótese múmia revelou-se inadequada, sobrava-lhe em lata o que lhe faltava em fleuma.)

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Morreu Javier Marías, que tristeza.
(O cânone hodierno já deve estar a esfregar as mãos para o substituir por alguém que escreva frases curtas, despojadas, como gostam os tempos.)

Regressando às coisas sérias

«Se a sua vida tem uma música ela passa na M80», diz o slogan. Ora, a minha vida tem muitas músicas, algumas delas embaraçosas, mas de todas as vezes que nesta silly season dei o benefício da dúvida à estação não ouvi nada que se aproximasse da minha discoteca vital.
Diria que há um esforço (bem sucedido) de privar a rádio de qualquer elemento distintivo que a possa associar aos anos 80. O que ali se ouve não tem era; não porque é intemporal, mas porque é incaracterístico, de uma mediocridade sensaborona que atravessa os tempos.

domingo, 11 de setembro de 2022

Notícias da guerra

Do alto das minhas divisas de antigo furriel de morteiros, achei que as notícias insistentes de que a Ucrânia preparava uma ofensiva no sul só podiam traduzir duas coisas: inépcia (quem, numa guerra, mesmo na era da exposição sem filtros das redes sociais, pré-anuncia as operações militares?) ou engodo. Que o exército russo tenha mordido o isco só pode dever-se a má formação cinematográfica dos seus oficiais superiores ou à falta de espaço para pensamento estratégico num centro de comando militar sobrelotado com o ego e a obsessão do supremo comandante.
É francamente precipitado começarem a circular os memes com a cena do bunker de “A Queda”, mas se chegar a hora nem vale a pena engendrar novos diálogos.

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

O envelhecer dos perdedores

Enquanto escrutino as degenerescências da minha pele como os macacos se catam, recordo a reportagem que vi sobre um meio-maratonista de oitenta e tal anos. Começou aos sessenta.
Com cinquenta e três, não cheguei à meia-maratona e encontro cada vez mais pretextos para deixar as sapatilhas penduradas. Os joelhos talvez frágeis, as costas a dar sinais misteriosos, o coração avariado. Mas também frio a mais, calor a mais, tempo a menos. Tudo me serve para postergar.
Nos últimos dois anos tive duas quedas e nos momentos mais duros comigo mesmo acuso-me de as ter provocado só para passar um mês ou dois sem correr, sem dilemas, sem remorsos.
O paradoxo é que gosto de correr (não só de chegar ao fim da corrida). Falta-me é paciência para os rituais preparatórios e energia para vencer os incómodos (planear, equipar, sair para o frio, sair para o calor, sair da cama).
Deve ser isto o envelhecer dos perdedores: consumir a perorar sobre um assunto o tempo que daria para tratar dele. Podemos ter a sorte de não chegar a morrer de doenças cardiovasculares, mas morremos sem dúvida de remorsos.

O aranhiço

Um bizarro aranhiço passeia-se no meu braço. Já levo engatilhado o piparote quando me apercebo do seu aspecto realmente singular e não tenho reflexos para sacar do telemóvel e lhe tirar uma fotografia antes de o lançar pelos ares. Ainda o procuro no chão, mas sem sucesso. E assim, ao disparar antes de perguntar, perco a oportunidade de aparecer nos livros de entomologia como um dos raros milhares de indivíduos que descobriram uma nova espécie de insectos.

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(Um feito maior do que descobrir uma nova espécie de insectos deve ser distingui-la de entre os milhões de espécies que existem. O primeiro é um caso de sorte; o segundo, um labor de enorme paciência e acuidade visual.)

Fotonovelas

Pesquisando ociosamente imagens de fotonovelas, por vaga sugestão do post anterior, fui tomado pela ideia de que, considerando o grafismo e a estética, assim como o visual e os penteados dos protagonistas, as fotonovelas estavam ainda mais próximas das revistas pornográficas do que o erotismo está do sexo. Ou isso ou o facto de me ter tornado pubescente no final dos anos setenta contaminou toda a imagem mental que tenho da época.

domingo, 28 de agosto de 2022

Leituras de Verão

Decidido a ir à piscina, meti a toalha e um livro no bornal e pus-me a caminho. Quando desenrolei a trouxa, pousei o livro na espreguiçadeira com a capa virada para cima e tive um breve estremecimento de embaraço. O livro chama-se Os Beijos e apresenta a todo o tamanho da capa — a preto e branco para ser ainda mais evocativo — um cavalheiro a beijar o queixo de uma donzela, ambos de amorosos olhos fechados, ela com certa malícia nos lábios.
Estava já a imaginar toda a fauna em redor da minha palmeira, pelo menos a da minha idade, ao ver-me com aquele livro nas mãos a servir de pára-sol, em exibição ainda mais ostensiva do que nas estantes de destaques da Bertrand, comentar com desdém: «ora ali está um maduro a ler um tomo da Corín Tellado».
Depois, constatando que hoje não havia interferências pimba na rádio, pensei que alguém tinha que trazer para a tarde balnear uma sugestão de subcultura, para agora não desiludir quem me lê. Recuperei o domínio e mergulhei decidida e ornamentalmente no meu romance do coração.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

De pequenino é que se torce o pepino

Não faço de propósito, juro. Estas coisas vêm ter comigo. Hoje a banda sonora era o êxito estival “Nós pimba” e ouvia-se, não na piscina — onde já nos vêm habituando à grande música intemporal —, mas nos relvados que bordejam o castelo onde sirvo.

Um rebanho de crianças, dessas que, num campo de férias, envergam cedo camisolas e bonés uniformizados, era orientado por um rapazola de barba que tinha instalado um par de colunas potentes à sombra de uma árvore. Não sei se a intenção da música era lúdica ou pedagógica — e creio que o monitor não saberia distinguir a primeira da segunda.

Já o vi noutra ocasião (ele ou um homólogo) pastorear o grupo de infantes como na universidade se conduzem os caloiros: filinha disciplinada à força de berraria viril e, nos momentos felizes, entoação colectiva da velha melodia militar que a Robbialac celebrizou.

Não se pode dizer, talvez, que havia proselitismo consciente na sua opção musical de hoje — ainda que juntar crianças e versos pimba debaixo de uma mesma sombra pareça a ilustração viva do ditado «de pequenino se torce o pepino» na sua acepção onanista. Quim Barreiros era capaz de escrever, se ainda não o fez, uma epopeia com este tema.

Mas serei benévolo. Não é justo, ainda que tentador, invocar a versão soft porn do ditado; o que testemunhei não era, enfim, uma aula de aeróbica masturbatória (seria caso para chamar os pais de Famalicão). O que está em causa é um entendimento alegórico tradicional: «tal como os pepinos, é necessário moldar as crianças o mais cedo possível». O voluntarioso rapaz-monitor limitava-se a fazer pela educação estética das crianças o que a sociedade vem fazendo há muitos anos de forma empenhada. Toda a festa de massas da família portuguesa, mesmo quando o mote ou o alvo são as crianças, decorre hoje quase sempre sob a égide e a cascata sonora da música e da poética pimba. Que crianças de tenra idade sejam entretidas com lírica brejeira e não raro misógina já só é obsceno num plano teórico em desuso. Isto não tira o sono a nenhum casal Mesquita Guimarães.

Para me confortar, mantive-me no domínio das alegorias brejeiras imaginando que o miúdo que por iniciativa pessoal saiu do grupo para baixar as calças atrás de uma árvore, mais do que a uma necessidade fisiológica, acorria a uma vontade de subversão. Pôs-se de cócoras não como o público perante os gurus do zeitgeist mas para uma declaração sobre a oferta musical do monitor.

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Mudança de sistema

O movimento para substituir o capitalismo começará quando o trabalho for dessacralizado. Dois guarda-sóis ao lado, gregamente estendida na espreguiçadeira, uma teórica da mudança faz um primeiro ensaio: «Trabalho? Que palavra feia!»

Baile frustrado de Verão

Na piscina sou recebido pelas músicas “Baile de Verão” e “A Bela Portuguesa”, de José Malhoa e Marante, esses dois vultos da música nacional. Pensei: «lá sintonizaram na M80, raios!»
Uma vez que, considerada a hora, não tinha alternativa se queria dar um mergulho, dispus-me ao estoicismo: procurei dentro de mim a capacidade de conviver com tal banda sonora. As 700 e tal páginas de Fernando Aramburu seriam uma boa camada de isolamento acústico, mas nem precisava disso, não faltavam na minha memória exemplos de como era possível ser feliz apesar daquela música. Ou até com a ajuda daquela música (e de umas cervejas, é certo), presente já na segunda metade dos arraiais a que fui na vida. Tive então por instantes o meu momento “Querido mês de Agosto” e, trajado para o banho, dispus-me a experimentar uns passos de dança na plataforma da piscina. Não na modalidade que implicaria fazer a ronda das moças em biquíni para conseguir par, mas antes naquela que o dispensa — a alternativa dos bêbados de aldeia, habituados a recusas divertidas ou enojadas mas nem por isso desmobilizados.
Tinha já esticado um braço, levado a mão direita ao coração, erguido os ombros e fechado os olhos na pose apropriada, com o típico sorriso sonhador (e ébrio) nos lábios, quando a música mudou para um registo mais clássico da M80: “Johnny B. Goode”, na versão de Peter Tosh, a iniciar um set de reggae que evocava as discotecas ao domingo à tarde.
O melhoramento da sonoplastia não impediu, porém, que me sentisse como se tivessem atirado comigo à água fria. Depois disso, só me restava ler para disfarçar o despeito.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Anos 80 ultrajados

E agora os verdadeiros problemas do nosso tempo.

Já uma vez aqui escrevi que as emissões da M80 se parecem com uma colectânea de hits reunidos às três pancadas numa cassete de feira. Sei que há muito quem diga que os anos 80, com a sua própria e gloriosa variação de uma estética visual barroca, foram a pior década na música pop, mas uma rádio supostamente nostálgica daquela época poderia esforçar-se um pouco mais por não dar tanta razão aos críticos. Consegui-lo-ia, se tentasse.

Ouvindo hoje as vozes dos pivots e DJs da estação, ocorreu-me que são gente que não viveu os anos 80, muitos talvez ainda nem sequer estavam vivos nos anos 80, e por isso, não sendo manifestamente praticantes de arqueologia melómana, o que conhecem daquela era são os hits das colectâneas de feira. Decerto entram no ar imediatamente após uma sessão de formação que consiste em simular uma visita à feira de Carcavelos nos anos 80. É que nem as discotecas de província na época — embora a certa altura da noite lá passassem, sob vaias, o seu single dos Modern Talking ou da Samantha Fox (mas só em Agosto, para agradar a uma facção de emigrantes de visita à terra, e é que nesse mês as discotecas tinham também de rivalizar com os arraiais populares, que, de resto, ofereciam muitas vezes um alinhamento mais interessante do que oferece hoje a M80) —, nem as discotecas, dizia eu, tinham uma selecção musical tão deplorável.

A M80 é, portanto, uma rádio sacrílega. Tenta disfarçar — mal, cada vez pior — que é uma rádio pimba. Podia tentar disfarçar com música deste século — pelo menos não blasfemava.

domingo, 14 de agosto de 2022

O sentimento dum acidental

Desço, como um verso de Cesário Verde, a rua em obras, tomada por vária maquinaria pesada. Observo as manobras, os trabalhadores, os outros transeuntes, ouço as ordens, as imprecações, as risadas, as conversas, vagueando neutro como um travelling ou plano-sequência. O cheiro a combustível e o arranhar das escavadoras remete-me para Álvaro de Campos, mas não me concede a euforia dele. Saio do metal e do pó e do sol com uma vaga impressão sonâmbula de ter deixado para trás a batalha de El Alamein. Quando me afundo na sombra do parque, detenho-me a olhar o céu retalhado pela trama das árvores. Fico assim um minuto, com a sensação de que cumpri nisso metade do meu dia. A outra metade cumprir-se-á no regresso, naquele mesmo local, ao crepúsculo.
Pelo meio fica a vida acidental que executo com empenho mas sem decisão, menos surfista do que despojo de naufrágio nas ondas.

sábado, 13 de agosto de 2022

Títulos nobiliárquicos

O livro De Ansatte, de Olga Ravn, que ensaia uma crítica da vida regida pelo trabalho e pela lógica da produtividade, foi traduzido para português sob o título Os Funcionários, e isso parece-me quase eufemístico, como se Os Empregados ou Os Trabalhadores não fossem opções de tradução convenientes. O caso seria de uma refinada meta-ironia se, dentre as hipóteses possíveis na linguagem capitalista, a escolha tivesse sido Os Colaboradores.

terça-feira, 9 de agosto de 2022

The twilight zone

Há várias horas na minha vida passada de que não guardo registo. Como se tivesse sido abduzido e recambiado à Terra com uma ressaca só explicável, digamos, pelo jet lag cósmico ou pelos efeitos de viajar à velocidade da luz, em linguagem técnica speed of light, speed para os amigos.
Mas creio que me lembraria se tivesse ido no dia 16 de Julho a Viana do Castelo apresentar o «perfeito», «maravilhosamente escrito» e «fantástico» livro de Rui Couceiro, que não tive ainda o decerto inesquecível prazer de ler.
A notícia da Porto Editora, em que tropecei por acaso, deve por isso referir-se a um meu alter-ego vivendo um pesadelo numa sinistra dimensão alternativa onde o obrigam a apresentar livros. Apre!

https://www.portoeditora.pt/noticias/alberto-manguel-quer-ser-porta-voz-do-primeiro-romance-de-rui-couceiro/209466

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Malefícios do calor excessivo II

Ao sair de casa e ao levar com um bafo saudita nas trombas, transformei-me por instantes no tipo que citei dois posts atrás.
Agora alguém há-de estar a escrever sobre o gajo que atravessou a rua a praguejar e o pôr-do-sol tão longe.

domingo, 31 de julho de 2022

Padrões desportivos

Não se percebe porque dá na RTP2 e não na RTP1 a final do Campeonato Europeu de Futebol Feminino. O estádio está cheio e vibrante e o jogo cumpre os padrões: tem o número regulamentar de faltas consumadas e fingidas, a adequada intensidade dramática e teatral, o futebol é igual e tem a mesma toada rufia, cumprem-se os mínimos do regimento de tatuagens e até se levantam camisolas para limpar o suor. Só o hairstyle é menos variado e exuberante.

P.S.: Também se despem camisolas para celebrar golos. Quod erat demonstandum.

Malefícios do calor excessivo

O tipo vem pelos caminhos do parque a praguejar. Imagina-se, pelo passo acelerado e a expressão irritada, que tenha tropeçado num contratempo de que agora foge ou que o aguarde adiante uma chatice sem mais remédio do que a pega de caras; encontrou há pouco o que não quis ou tem à sua frente o que não deseja.
Quando nos passa à ilharga, ouve-se: «Que calor do caralho! Foda-se, que calor! Puta que pariu! Calor do caralho!» E a ladainha prossegue em fade out, com a sua figura a diminuir na distância — sem que tenhamos nós o benefício estético e ele a panaceia mental de estar próximo o pôr-do-sol.

Les beaux esprits...

«Aos domingos, a minha mãe era capaz de passar as primeiras horas da manhã a ler um livro de poesia e levantar-se a seguir do seu sofá junto à janela para ir matar um coelho ou uma galinha para o almoço. Segurava os coelhos pelas pernas traseiras, de cabeça para baixo, e aplicava-lhes uma pancada seca na nuca com a mão em cutelo. Por vezes precisava de meia dúzia de pancadas e, entre os golpes, o animal ficava a contorcer-se, em agonia e espasmos. Às galinhas metia-as debaixo do braço, dobrando-lhe o bico para o pescoço com a mão esquerda, de modo a expor-lhe a parte de trás da cabeça, onde iria cortar com uma faca até à morte do animal. (…) As crianças eram levadas a ver os pintainhos, mas depois de eles crescerem e ganharem penas, se assemelharem às galinhas adultas, não recebiam mais afectos, eram simplesmente tolerados à solta pelo quintal. Os coelhos, contudo, tinham um estatuto próximo dos animais de estimação. Embora raramente saíssem das suas coelheiras assentes em pernas de madeira, onde eram mantidos até ao dia em que fossem chamados a ser a iguaria na refeição, estabelecíamos com eles uma relação mais duradoura. Eu não percebia como depois a minha mãe era capaz de lhes pegar com toda a frieza ou indiferença para os espancar até à morte.

VILLA JULIANA, Rui Ângelo Araújo, Língua Morta, 2021


«…ao fim da tarde [a esposa do chefe da estação], costumava sentar-se na sala de controlo a fazer croché (…) e daquele seu croché emanava um silêncio tranquilo, e de debaixo dos seus dedos estavam sempre a aparecer mais flores e mais passarinhos; tinha diante dela, na mesa do telégrafo, um livrinho sobre o qual se debruçava a procurar novas instruções acerca de como lançar fios, como se tocasse cítara lendo a pauta. Contudo, todas as sextas-feiras matava um coelho, tirava um coelhinho da coelheira, colocava-o sobre as pernas e depois enfiava-lhe uma faca romba no pescoço e degolava pouco a pouco o animalzinho, que guinchava, guinchava durante muito tempo, até a vozita começar a fraquejar, mas o olhar da esposa do chefe da estação era o mesmo de quando fazia o seu grande napperon em croché. (…) Eu já estava a antever como ela iria matar aquele ganso, como iria escarranchar-se nele e apertar-lhe o bico laranja contra a garganta, como quem fecha um canivete; primeiro arrancar-lhe-ia uma penazita no topo da cabeça, e depois o sangue escorreria para o tacho…»

COMBOIOS RIGOROSAMENTE VIGIADOS (1965), Bohumil Hrabal, Antígona, 2022

sábado, 30 de julho de 2022

Duas no cravo. Ou na ferradura.

Eu sei que hoje, ao contrário do que aconteceu no resto da História, os leitores preferem que os escritores e os intelectuais se mantenham longe da política. Eu próprio, que não sou um intelectual e talvez nem sequer escritor, perco simpatias de cada vez que molho a pena nas tintas da guerra. É melhor ser poético ou irónico; distante, em todo o caso. Escrever sobre estados de alma ou pores-do-sol; sobre leituras serenas ou quadros bucólicos do quotidiano; fazer piadinhas. Mas o velho editorialista que há em mim não morreu e de vez em quando pede a palavra. Concedi-lhe dois parágrafos.

1. A invasão do Iraque pelos Estados Unidos, além de uma tragédia assente em mentiras, foi o maior erro estratégico do Ocidente no século XXI. Num momento de boa vontade mundial, depois dos atentados de 2001, em que os EUA poderiam ter aproveitado para purgar a alma e a sua história de manipulação e cinismo, fazem exactamente o oposto, ou seja, o mesmo de sempre, mas a uma escala maior. Associando-se àquela cruzada idiota e obscena, uma parte do Ocidente, ao arrepio da opinião pública, comprometeu a credibilidade das democracias em geral. Bush, Blair, Aznar e Barroso, e todos os que tiveram responsabilidades na farsa, deveriam ter sido julgados. Ainda o poderiam ser.

2. A história sanguinária de Putin começa em 2000 (está documentada na própria imprensa russa) e ao fim de vinte e dois anos ele enceta um movimento de sinal e magnitude pelo menos semelhantes aos de Bush. E contudo os comunistas do mundo — que são em geral boas pessoas, bem-intencionadas, e estiveram na primeira linha das manifestações de 2003 — resolvem desta vez contemporizar. Não é que sejam favoráveis às atrocidades de Putin — é, suspeito, que encaram a ideologia como uma religião e a Rússia como o seu santuário. Nada que vem da pátria ou da casa de Deus é mau: quando muito, é incompreensível para o entendimento humano. Foram necessárias décadas para que muitos intelectuais e plebeus se desvinculassem do mau comunismo soviético e da sua pátria terrena. Alguns nunca o fizeram. Não podem por isso ser acusados de cederem à mística de Putin (não lhes façam essa injustiça), mas de permanecerem devotos a um paraíso artificial, embriagados sem causa. Ou casa.

sexta-feira, 29 de julho de 2022

Pescador do futuro perdido

Para ver a bóia, o pescador debruça-se sobre a amurada da ponte. Não porque a altura seja muita, mas porque a água é pouca. O rio vai secando e o contumaz pescador aponta a cana verticalmente a uma poça que parece pouco mais do que o resultado de uma chuvada num caminho de pó, onde não cabem carpas nem trutas e na verdade talvez nem sequer haja peixe. É a imagem de uma seca que perdura, mas talvez seja também o vislumbre de um futuro não muito distante em que das premissas da pesca apenas sobram a cana, o pescador e uma fome pouco gastronómica.

domingo, 24 de julho de 2022

Hotel do Norte revisitado

Rui Almeida, na sua página de Facebook, sobre o Hotel do Norte:

«Estará, neste final de Julho, a completar 46 anos uma das personagens deste romance, 'Hotel do Norte' (Companhia das Ilhas, 2017), de RUI ÂNGELO ARAÚJO, que acabei de ler ontem à noite. Seria fácil nomear o edifício que dá nome ao livro como a personagem principal, pois é a presença permanente em todo o enredo, nos vários tempos distintos em que se desenrola. Mas não: há uma sobreposição das personagens ao espaço, não são apenas figuras a movimentarem-se num cenário – antes pelo contrário, cada uma delas (as seis ou sete que mais importam à história, mas também outras) são pessoas a quem podemos vislumbrar o mais fundo do perfil psicológico, as motivações, as dúvidas, as angústias, os sonhos.
O núcleo temporal da história é 1975 (continuando para o ano seguinte), com a presença no Hotel do Norte de cerca de centena e meia de homens e mulheres vindos das antigas colónias portuguesas, agora independentes – os chamados "retornados". Mas a narrativa desloca-se alternadamente para 2008 e para 1941 (e, apenas uma vez, para 1970), num exercício de apelo à perspicácia do leitor para ir percebendo os pontos de ligação entre eles. Há uma história que é contada, há pessoas, cada uma delas com a sua complexidade, há um cenário que as congrega. Há depois momentos que nos trazem luz a situações que poderiam ser de outro qualquer contexto e passam despercebidas: o racismo quase inconsciente a aflorar de raivas sufocadas; o desequilíbrio nas relações entre homem e mulher, com suas pequenas e grandes violências; a hipocrisia banalizada.
É um belíssimo livro, que se lê com muito gosto, mas que exige disponibilidade para pensar.»

sábado, 2 de julho de 2022

Dilema moral em modo Matrix

Na corrida de ontem o meu dilema foi maior e tive de pensar rápido. À minha frente na vereda por onde seguia, o chão estava pejado de formigas, tantas e numa distribuição tão densa que não havia para onde desviar o pé. Elas tinham os meios para evitar o desastre (eram formigas com asas), mas por alguma razão não estavam a socorrer-se deles. A inércia da corrida e a inércia de cinco décadas encaminhavam-me para uma carnificina, e nos segundos de que dispunha antes de passar pela concentração formigueira como duriense em lagar pensei nas hipóteses que havia. Saltitar pé ante pé nos espaços em branco não era possível, os bichinhos espalhavam-se no saibro como nós de rede de pesca ilegal. Passar por ali em pontas de ballet também não funcionaria, nem que a anatomia desta vez resolvesse colaborar: a rede era mesmo apertada. Ainda que fosse ultra-rápido a descalçar as sapatilhas, como o Neo na Matrix a desviar-se das balas, estava-me vedado, por razões de natureza pessoal, invocar dotes culturistas e saltitar apenas nas pontas dos dedões dos pés, como certos atletas fazem flexões. A única solução, concluí, pensando dentro do mesmo campo semântico onde tinha origem o meu dilema moral, era levitar. Na ponta extrema do último segundo antes de me tornar a chuva de meteoritos daquele mundo de formigas, meditei empenhadamente e, como por milagre, levitei durante umas fracções do segundo seguinte  por cima dos primeiros espécimes, a olhar para baixo com alívio e assombro e uma sensação épica cinematográfica. Depois acabou a fita ou algo perturbou o meu estado zen e os pés voltaram a cair um após o outro na cadência regular da corrida, quebrando exoesqueleto atrás de exosqueleto.
Ter-se-iam poupado mais vidas se tivesse tentado o triplo salto.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Encontros imediatos de terceiro grau

Ver os abutres e os grifos no Salto del Gitano é um espectáculo fascinante mas não surpreendente, porque esperado; visitamos o sítio com esse objectivo. Um grupo de cegonhas apanhado pela visão periférica a planar à distância de um salto de trampolim no céu da minha varanda, porque raro, é disruptivo. Por uma fracção de segundo o mundo habitual é perturbado sem que fique claro se o é por uma ameaça se por um fenómeno benigno, um milagre ou uma revelação. Gosto desse sentimento que dura um tempo demasiado curto mas autoriza a hipótese de transcendência. Um sentimento que, permitindo uma fugaz intuição de possibilidades inimaginadas ou intimamente desejadas, insinua que a vida neste planeta é uma espera, uma espera por vida alienígena, um anjo anunciador ou o mistério da morte.

Ao contrário de outras regiões do país, nos locais onde vivi os meus primeiros vinte e poucos anos não havia cegonhas e quando elas começaram a aparecer foram recebidas, não apenas por mim — com absoluta propriedade, no sentido literal e metafórico —, como avis rara. Um dia segui de carro o voo de um espécime solitário enquanto as estradas e os caminhos permitiram circular e depois continuei a pé, até o perder de vista. Era dessa dimensão o meu assombro. Tenho da mesma altura uma memória que não sei se é de um incidente se de um sonho: presenças espectrais pressentidas ou vislumbradas — ouvidas, também —, grandes asas e longas pernas espreguiçando-se de madrugada na outra margem de uma pequena albufeira, a poucas dezenas de metros. Na altura pensei em cegonhas, se fosse hoje imaginaria grous. Havia whisky à mistura, pelo que pode ter sido apenas uma alucinação, no local ou no leito que lhe sucedeu. Não me importa, ficou-me essa experiência como uma possibilidade e isso é mais reconfortante ou inspirador do que milhares de experiências comprovadas que lhe sucederam.

Vivem biliões de seres humanos no mundo, mas raramente a visão central ou periférica capta um que provoque impressões similares, não apenas em mim. Partindo, abusivamente ou não, da minha experiência, concluo que há talvez desde sempre uma misantropia endémica no mundo, caso contrário não haveria tanta gente entusiasmada com a possibilidade de vida inteligente noutros planetas ou a de uma vida depois desta. Ou com a entrada de aves raras no território ordinário.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Com o perfume das tílias em Junho, é assaz difícil refrear o impulso de plantar um parque, escavar umas ruínas, fundar uma nação, travar um duelo e, enfim, morrer de amor. Ou de tuberculose.

«Demasiado ocupados para embarcar nas artes da fruição»

No trecho que transcreverei abaixo, poderão ler Mark Fisher (em 2014, creio) a constatar como a tecnologia comunicacional do século XXI comprometeu as artes da fruição. Reparem que Fisher falava de música e de dança em discotecas — imaginem o quão comprometida está a fruição de outras artes. Hoje ninguém senão Fisher ou os semelhantes que lhe sobreviveram (alguns dos quais são leitores redundantes ou autores igualmente improfícuos de posts como este) sequer percepciona como negativas as «exigências incessantes das comunicações digitais».

«Demasiado ocupados para embarcar nas artes da fruição» é portanto um bom epitáfio colectivo. A colocar na vala comum desta era.

Aqui fica a citação:
«Há que lembrar que, segundo Berardi, estamos tão assoberbados com as exigências incessantes das comunicações digitais que nos sentimos demasiado ocupados para embarcar nas artes da fruição — as excitações têm de vir de modo hiperbólico, sem chatices, para que possamos voltar rapidamente a ver o e-mail ou as actualizações nas nossas redes sociais. As observações de Berardi podem oferecer-nos uma perspectiva das pressões a que tem sido sujeita a música de dança na última década. Ao passo que a tecnologia digital dos anos 80 e 90 alimentou a expectativa colectiva da pista de dança, a tecnologia comunicacional do século XXI comprometeu-a, conseguindo até pôr os frequentadores de discotecas a verificar os seus smartphones. (“Telephone”, de Beyoncé e Lady gaga — que coloca as duas a implorar a alguém que está a ligar que pare de as chatear para que possam dançar —, parece agora uma derradeira tentativa falhada de manter a pista de dança a salvo da intrusão comunicacional.»*

* Fantasmas da Minha Vida, 2020, pp.265 e 266, VS Editor, tradução de Vasco Gato.

domingo, 19 de junho de 2022

Entrevista com o vampiro

Mesmo que, na corrida por um lugar no Inferno, os Estados Unidos fossem à frente da Rússia, o regime de Putin, todos hão-de reconhecer, continuaria a ser candidato a um lugar no pódio, pelo que custa ver a forma obsequiosa como Oliver Stone entrevista o novo czar. Não é a cortesia e a hipocrisia diplomática a que os jornalistas por vezes se vêem obrigados se aceitam falar com alguém não recomendável; é uma cegueira e um fascínio que dão vergonha alheia. Putin é adversário dos EUA e isso para Stone é música celestial — e o interlocutor o anjo que a executa. (É certo que a entrevista foi feita há anos, mas mesmo então só um marciano confundiria Putin com um querubim.)
 
Na entrevista, que vou vendo aos pedaços com curiosidade histórica e certa morbidez, Oliver Stone tem longos momentos em que na verdade não entrevista Putin. Não falo das partes em que lhe serve de pé de microfone ou de marcador para realçar as deixas, mas dos momentos em que, sem olhar o entrevistado, faz as perguntas ao intérprete, referindo-se a Putin na terceira pessoa, como se mantivesse com o intérprete uma conversa de inconfidências. Mas nem assim, com esse filtro, com essa forma indirecta, diferida e patética de falar como se o czar não estivesse presente, como se falasse nas costas dele, nem assim Stone é capaz de fazer perguntas verdadeiramente embaraçosas. Não se lhe pedia que o fizesse pelo prazer de embaraçar, mas por sentir uma curiosidade mínima pela verdade.

terça-feira, 14 de junho de 2022

O que há de mais perverso na insónia é que gastamos, a ruminar madrugada dentro na forma como havemos de transformar ou resistir ao mundo, a energia de que de dia necessitaríamos para empurrar ou enxotar o mundo.

segunda-feira, 13 de junho de 2022

À luz de um candeeiro (2)

Quis regressar ao lugar onde foi feliz. Muniu-se do livro, orientou os passos pela Lua, antecipou o prazer da leitura à luz do candeeiro, preferencialmente sem adormecer, e entregou-se ao murmúrio do rio.
Mas desta vez havia gente nos bancos, um casalinho, jovens, contentes por estarem juntos e vivos. Tão cheios de contentamento, na verdade, que ela, amazona, não parava de dar pulinhos de alegria no colo do rapaz, cabelos esvoaçantes como morcegos num festim entomófilo.
Ele desviou o percurso oportuna e silenciosamente. Parecia-lhe algo impudico perturbar com a sua presença soturna aquela inesperada alegria alheia.

sábado, 11 de junho de 2022

À luz de um candeeiro

Na noite em que meio Portugal estava na sua terapia catártica com o Dr. Cave, dormitava ele sobre o livro no parque da cidade. No parque da sua cidade.
Nem sempre faz de propósito para desacertar o passo, há extravagâncias que vão ao seu encontro. Acontece que regressava a casa do trabalho, a noite ia avançada e apetecível e ele trazia o livro. À beira rio havia bancos iluminados, gorjeios de noitibó, uma impressão de quinta agustiniana no Douro e nem uma alma no horizonte. Sentou-se a ler e, como vem padecendo de insónias, ao fim de umas páginas adormeceu.
Se passaram por lá àquela hora, não era um hermeneuta talmúdico com o estudo em atraso nem um indigente a destilar o bagaço o que viram naquele banco. Era ele. Sóbrio como um carvalho centenário, ressonando como motosserra que o derrubasse.
Há talvez maneiras piores de comprometer a dignidade.

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Michel Houellebecq, o gentil

Há uma impressão de alívio na forma como está a ser apresentado ao mundo o último romance de Michel Houellebecq, Aniquilação. O «enfant terrible», o «mais polémico escritor francês» escreveu um livro «que permite entrever um raio de luz e esperança no futuro». Aniquilação, apesar do título, é «uma ode ao que é bom e belo neste mundo, ao que ainda pode ser salvo na humanidade». A aproximar-se dos setenta anos, Houellebecq encontrou «se não uma esperança pelo menos novos valores». O futuro ancião agora «propõe-nos uma moral que torna possível habitar o mundo e suportar a vida».

Ainda vou a meio do livro, mas posso testemunhar que o autor parece, pelo menos por enquanto, genuinamente curioso, não com a possibilidade de uma ilha milénios no futuro, mas com a possibilidade de reconciliação e redenção no presente. Compreende-se o alívio geral.

A foto na badana ainda é a do anacoreta, do belzebu, com aquela cabeleira rala e encrespada à la Gollum, mas o iconoclasta, o misantropo, o «profeta depressivo», parece hoje suavizado, optimista, empático. Uma das suas antigas personagens talvez especulasse que finalmente Houellebecq conseguiu foder sem ter de ir à Tailândia ou às putas (pardon my french). Outra poderia concluir, incrédula ou horrorizada, que se calhar Michel está apaixonado e tornou-se romântico.

Todavia, um crítico mais pragmático poderia propor que não foi Houellebecq que se moveu, mas o mundo. Com tanta gente a querer ser (e a ser) politicamente incorrecta, à esquerda e à direita, o marginal, o irreverente é talvez hoje aquele que, sem perder de vista a realidade dura e bruta do mundo, se atreve à bonomia, ousa uma certa gentillesse. Estou longe dos setenta, mas eu próprio tenho personagens que se perguntam: «que mal há numa educação para a gentileza? Não a gentileza protocolar, cavalheiresca, mas a verdadeira, a que transforma o dia do outro.»

Ou talvez Houellebecq continue igual a si mesmo e tenha escrito este livro apenas para se rebolar a rir com a forma como o mundo se agarra candidamente ao engodo como a uma inútil tábua de salvação.

Há ainda a hipótese verosímil de Aniquilação lhe ter escapado ao controlo, de o próprio escritor ter sido surpreendido com o mundo no processo de investigação e escrita do romance. Leia-se a forma como encerra os agradecimentos, na última página: «Por casualidade, acabo de chegar a uma conclusão positiva. O melhor é ficarmos por aqui.»

quinta-feira, 2 de junho de 2022

Pensar e agir fora da caixa de supermercado

(A propósito de Realismo Capitalista: Não Haverá Alternativa?, de Mark Fisher)

O que há de escusado ou até patético em enfiar um melão ou um cacho de bananas dentro de um dos sacos de fina película plástica transparente que os supermercados disponibilizam em abundância aos seus clientes é menos perturbador do que o que revela da existência pavloviana que o capitalismo reserva às pessoas. O apocalipse ambiental é uma realidade ao virar da esquina; os muitos loucos ou fanáticos religiosos que durante décadas ostentaram cartazes a dizer «O fim do mundo está próximo» tinham provavelmente razão, apenas não foram suficientemente perspicazes ou precisos quanto às causas.
E contudo o problema é muito menos o uso desnecessário, desmesurado e nefasto de sacos de plástico para enfiar artigos que deles não necessitam do que a longa cadeia de gestos irreflectidos onde ele se insere.

As secções de fruta e hortaliças apresentam dispensadores de sacos em lugares estratégicos e o cliente dirige-se-lhes mecanicamente, sem se questionar, numa coreografia de gestos pré-determinados. A mesma coreografia que o pôs sem hesitações, com uma eficácia comportamental que poucas campanhas estatais logram obter, a pesar a sua própria fruta e a registar as suas próprias compras, ignorando que isso é sintoma de uma de duas formas de automatização levadas a cabo pelas empresas para reduzir os custos com trabalhadores e aumentar lucros: a automatização tecnológica e a automatização do cliente. Ambas as formas de automatização se inserem na recusa paradoxal da promessa com cem anos de que o futuro e a robotização nos libertariam do trabalho, nos devolveriam o tempo. O que acontece é o contrário: a evolução tecnológica não nos reduziu a semana laboral (nem nos aliviou da chantagem moral inerente à suposta realização do homem pelo trabalho — «Arbeit macht frei», não é?) e fez-nos entregar gratuita e voluntariamente tempo e serviços às empresas que investiram em tecnologia.

As considerações anteriores surgem-me após a leitura de Realismo Capitalista: Não Haverá Alternativa? (2009), de Mark Fisher. Diz o autor, e todos o sabemos já, que «as alterações climáticas e a ameaça do esgotamento dos recursos estão a ser, mais do que recalcadas, incorporadas na publicidade e no marketing». Contudo, isso não significa que o capitalismo actual tencione, de forma alguma, fazer o que quer que seja quanto ao problema. É só uma demonstração da sua «plasticidade» (no sentido de maleabilidade). Segundo Fisher, uma das características principais do realismo capitalista (o suposto «realismo» é o artifício intelectual a que o capitalismo recorre para que o consideremos insubstituível, inevitável) é a sua capacidade de condicionar «os horizontes do pensável e, por isso, do possível». Precavido, o capitalismo não ignora os problemas e não hesita em subordinar-se «a uma realidade infinitamente plástica, capaz de se reconfigurar a qualquer momento». Mas fá-lo para garantir que as «zonas culturais» alternativas ou independentes «não designam algo exterior à cultura dominante; ao invés, são estilos, os verdadeiros estilos principais, aliás, no seio da cultura dominante».

Em rigor, ao contrário dos autoritarismos históricos, o capitalismo aceita que as mais diversas entidades, concretas ou abstractas, sugiram às pessoas o que fazer e como se comportar perante novas tendências e desafios — mas apenas se desse comportamento resultar a manutenção ou o reforço do statu quo económico e social. Com efeito, o capitalismo apressa-se frequentemente a ser pioneiro na «aceitação» dos novos tópicos, mas estabelece de imediato os limites da discussão, fingindo-se «realista».

Com uma estrutura funcional muito próxima da de uma religião ou de um estalinismo de aparência amigável, o realismo capitalista tem os seus dogmas e, claro, os seus zelotas. São eles que estabelecem que «dizer às pessoas como perder peso ou como decorar a casa é aceitável; mas reivindicar qualquer tipo de progresso cultural é ser opressivo e elitista» (p. 108). Sem o saber, ecoei esta frase de Fisher em dois textos, de 2011 e 2014, respectivamente. No primeiro*, observei como a direita neoliberal, fingindo recusar todas as formas de proselitismo televisivo (ou seja, de opressão elitista), foi na verdade permitindo um doutrinamento de massas não menos opressivo e particularmente imbecilizante. No segundo **, levei mais longe o raciocínio para sugerir que o Estado, assustado com a mera e impensável possibilidade de promover qualquer forma de elitismo cultural, se deixou sequestrar por uma ideia falsa de liberdade ou democracia, conducente na prática a uma mediocracia (na acepção pejorativa). Exactamente porque o realismo capitalista permite todas as formas de moralismo excepto o questionamento da sua própria validade moral.

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Silly walks in the park

Vindos de duas diagonais convergentes, chegaríamos em simultâneo à bifurcação se eu não atrasasse ligeiramente o passo, menos por amabilidade do que misantropia. De modo que fui no seu encalço durante os seguintes duzentos metros, como uma sombra, porque não havia maneira de nos distanciarmos, tal a sincronia de andamentos. Na bifurcação seguinte, para fugir ao constrangimento, tomei o caminho que ele não seguira e voltámos a ser caminhantes autónomos durante dez minutos. Encontrámo-nos de novo quando os caminhos tornaram a convergir, ele chegando primeiro do que eu pela mesma margem de tempo que eu lhe concedera antes (poderíamos ter conversado sobre a grande probabilidade de os dois percursos terem exactamente a mesma distância, mas não o fizemos, claro), e lá me resignei a ser novamente sombra. As alternativas eram voltar para trás ou ficar ali especado um minuto ou dois e não me apeteciam. Na verdade, dali em diante poderia ter sido sombra no sentido de mimo, porque naquela parte do trajecto ele accionou a modalidade desportiva da sua caminhada, acompanhando os passos com sequências de movimentos vigorosos e alternados de braços e pernas, saltinhos, agachamentos, inspirações e expirações, sempre sem parar nem alterar a cadência. Abstive-me de o imitar não por aversão ao exercício físico mas porque, se fossemos dois, aquilo deixaria de ser desporto e passaria a ser uma repartição itinerante do ministério das silly walks.

Felizmente chegámos ao banco onde eu tencionava pousar a ler e o risco de uma tarde montypythoniana reduziu-se consideravelmente. Eu sentei-me e ele prosseguiu.

Para trás ficavam as sucessivas emanações musicais de que se faz a humanidade domingueira e de que eu vinha fugindo, mudando de posto sempre que alguém nas redondezas carregava no play. O último banco revelou-se bom refúgio. À minha volta uma frágil mas eficaz barreira de verde. No ar apenas o canto dos pássaros, o murmúrio quase exaurido do rio e as vozes da minha cabeça. No livro, a personagem do rapaz deixara de sofrer como antes com as extinções das espécies, o apocalipse climático e a impassibilidade humana e passara a aproveitar o tempo para se deslumbrar com o que restava da natureza e tentar transmitir esse deslumbramento. (Uma nova estratégia, menos dorida, para o mesmo objectivo de mobilização.) Eu, sem dúvida sugestionado, estava agora a sentir igual deslumbramento — e tudo foi levado a um apogeu quando o meu desconhecido compagnon de route, regressado para fazer o sentido inverso do percurso, cruzou o meu olhar com um cumprimento e o sorriso mais amável, franco e caloroso que neste século recebi. Se em algum momento o imaginara constrangido pela minha involuntária perseguição, ele encarregava-se de me mostrar o contrário.

Quando desapareceu na curva ao longe, chegou uma brisa fria e com ela a banda sonora distorcida da existência, feita de camadas sobrepostas de má música (toda a música é má quando é imposta). Vim-me embora lendo enquanto andava, para não perder a tarde, como um exegeta ambulante de escritos sagrados, arriscando tornar-me anedota como Tales de Mileto, mas notando com ironia que afinal também eu não sentia constrangimento algum com o meu próprio modo montypythoniano de me deslocar nos caminhos.

domingo, 29 de maio de 2022

Quelho

O casalinho, nos seus vintes, aparece conversando e ela lá pelo meio diz «quelho».
— O quê?
— Quelho. Não sabes o que é quelho?
— Isso existe?
Não sabes o que é quelho?!
E saca do telemóvel como da Bíblia para lhe mostrar que o termo está consagrado, não é delírio seu. Ele reconhece o sinónimo «caminho» e repete-o em voz alta num tom que quer insinuar a desnecessidade de usar palavras esdrúxulas para dizer coisas comuns.
 
Perante isto, a minha geração não tem de que se queixar, porque herdou (e escusava de ter desbaratado) boa parte do vernáculo camiliano e ainda teve a oportunidade de aprender neologismos vitais como «clicar» e «empreendedorismo».
Quando caminho pelas veredas sou meio budista. Meço os meus passos, corrigindo trajectórias se necessário, de modo a não pisar formigas e outros bichos. Durante as corridas isso deixa-me por vezes na iminência de percalços, não raro estive já para cair, insistindo em desviar o pé mesmo quando é quase demasiado tarde.
E isto prova que as formigas não são budistas, não nutrem uma reciprocidade de sentimentos com a espécie vertical. Deslocam-se, flaneurs em linha, sem a mínima preocupação com os danos que possam causar em quem se atravessa no seu caminho.

terça-feira, 24 de maio de 2022

Passageiro

Não sendo propriamente um trotamundos, já dei, não sem remorsos, um bom contributo para o apocalipse climático. Entrei tarde no primeiro avião, mas a minha pegada foi entretanto impressa em duas dezenas de países de três continentes, em alguns com recidiva. Continuo a odiar os preparativos de uma viagem, mas conforta-me a ideia de ler ou dormir no avião. E sobretudo a de observar a vida selvagem nos aeroportos. Custa-me sair, mas depois de partir sinto-me bem em trânsito, imerso em anonimato. Já fiz viagens em que, a pensar nas longas escalas e noites insones, guardei espaço na mochila para um colchão de ar. Preparo-me como os fotógrafos da National Geographic, camuflado de turista e assegurando conforto no posto de observação.

Na penúltima viagem de regresso, num dia invernoso de Fevereiro, o avião fez três tentativas de aterragem em Pedras Rubras, como nos vídeos de «extreme aborted landings» do Youtube, e foi parar à Portela para recuperar o fôlego (e combustível) antes da derradeira tentativa, uma hora mais tarde. Metade dos passageiros, benzendo-se, saltou fora em Lisboa mal foi dada a oportunidade, como ratos num naufrágio, e uma boa parte dos restantes ficou a ponderar se era boa altura para poupar o bilhete, o tempo e os incómodos extra do comboio ou do autocarro alternativos. À minha frente, ainda o avião manobrava depois de aterrar, um cavalheiro agarrara-se ao telemóvel para alterar a reserva do carro de aluguer do Porto para Lisboa e nas pausas da conversa com a agência arregimentava passageiros como um pastor evangélico, não para dividir despesas, mas para salvar vidas. Num momento em que falava do modelo e classe do veículo achei que ia pedir à voz do outro lado da linha para trocar a reserva para um minibus, tal o afã de resgatar almas à sua volta. Ainda olhou para mim, mas, vendo-me afocinhado no livro, com ar de quem não vai a lado nenhum, grato por umas horas mais de leitura, percebeu que eu não tinha como ser salvo e tentou converter o passageiro ao meu lado. Que declinou — apenas, julgo, porque tinha de me fazer levantar para poder sair do seu lugar.

Não são as milhas acumuladas que fazem de mim um Passageiro Zen, mas os anos de vida que me deixam por vezes sem apego à terra.
Tenho terminado os dias com esta música. Já pensei começá-los, mas pode ser perigoso. Para o mundo.



segunda-feira, 23 de maio de 2022

É para oferecer?

A menina, nova na casa mas a querer mostrar simpatia e aptidão (ou simplesmente entediada por não haver muita gente), oferece saltitante ajuda enquanto o cliente espreita as estantes dos livros. Ele agradece, mas dispensa.
Minutos mais tarde o cliente vai à caixa pagar e ela atrás do vidro pergunta com diligência, quase ternura e um automatismo já adquirido:
— É para oferecer?
— Não — responde o cliente com a deixa de sempre, um mantra que recitou já a uma legião de salários mínimos antes dela —, é mesmo para ler.
Ela ri-se, divertida, quase agradecida pelo entretenimento.
— Podia querer oferecer a alguém — insiste depois, sorrindo afável, cúmplice, mostrando pessoalmente como a sua pergunta é naturalíssima, não apenas uma das chaves da etiqueta equívoca que lhe transmitiram na formação.
O cliente deixa-se contagiar com o espírito sociável e tendente à boa disposição da menina da caixa e, contra o seu hábito, prolonga a conversa, num tom que se finge sério mas trai na dinâmica dos músculos faciais uma certa jocosidade, e com isso sobretudo esconde a descrença, a falta de ilusões, a derrota:
— E por que não parte antes do princípio de que os clientes compram os livros para si mesmos, para ler? Afinal isto é uma livraria e não uma loja de lembranças.
Ela quase se desmancha a rir, contida apenas pelo instinto recente mas já activo de que está num emprego.
— Uma loja de lembranças — repete, ainda mais divertida, mas não com auto-ironia ou com uma ironia dirigida à loja que a emprega. Achou o cliente excêntrico e engraçado, é só isso. — Uma loja de lembranças — continua, com o dia já ganho quanto a fenómenos, enquanto a impressora imprime o talão —, essa foi mesmo boa.

domingo, 15 de maio de 2022

Analogias

Ouvir Putin em pleno terceiro mês da sua blitzkrieg anunciar uma produção histórica de cereais na Rússia, a melhor colheita de sempre, remete inelutavelmente para os anúncios dos sucessos agrícolas e industriais da Rússia estalinista e da China faminta de Mao.

Em contrapartida, os briefings do porta-voz do exército russo relatando os ataques a alvos militares ucranianos com «armas de precisão» fazem lembrar as tristemente célebres «bombas inteligentes» americanas, com os seus eufemísticos e infames «danos colaterais». Que na epopeia russa nem sequer são mencionados, em todo o caso.

quarta-feira, 4 de maio de 2022

A farsa como história

A «loucura criminosa» de tentar defender uma cidade ou como certas farsas da história se repetem com diferentes protagonistas mas a mesma ignomínia:

«Pouco depois da queda da cidade, Hitler visitou Varsóvia. Deu uma volta pelas ruínas bombardeadas com um grupo de correspondentes estrangeiros. “Senhores”, disse-lhes, “viram por vocês mesmos a loucura criminosa que foi tentar defender esta cidade… O meu único desejo é que certos estadistas de outros países possam ter a oportunidade de ver, como vocês, o verdadeiro significado da guerra.”»

Em Metrópoles, Ben Wilson (p. 317, Edições Desassossego, Editora Saída de Emergência, 2021).

segunda-feira, 2 de maio de 2022

«Se eu fosse rei de Lisboa...»

Em Janeiro de 2016, o alemão Sven Helbig («um dos mais promissores compositores da cena clássica moderna», numa referência da RTP2, que hoje passou um dos seus espectáculos) apresentou o álbum ‘Pocket Symphonies’ no Teatro de Vila Real. Seis anos depois, em Março de 2022, veio a Lisboa apresentar o novo disco, ‘Skills’. A nota de imprensa que divulgava esta última apresentação, claro, afirmava: Sven Helbig «dá primeiro concerto em Portugal» e «estreia-se nos palcos portugueses».

«Se eu fosse rei de Lisboa, depressa governaria todo o mundo», disse o imperador Carlos V. «De notar que ele disse ‘Lisboa’, e não ‘Portugal’», acrescenta Ben Wilson em Metrópoles, no capítulo que dedica à capital portuguesa.
A frase de Carlos V já não representa uma realidade material, mas sem dúvida ainda traduz um quadro psicológico (ou patológico), já não de conquista mas de uma certa nostalgia reflexa ou senil do império.

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P.S. A propósito, e porque devo talvez ir lembrando estas coisas, a banda The Last Internationale, cujo vigoroso e deliciosamente marxista hino ‘Workers of the World - Unite!’ usei aqui para celebrar o Dia do Trabalhador, também actuou no TVR, em 2012.

terça-feira, 29 de março de 2022

Ridendo castigat mores

Ridendo castigat mores. Talvez esta fosse uma boa divisa para os humoristas. «Rindo, castiga os costumes» ou «castiga os costumes rindo». Mas podia ser também uma bússola, um instrumento de orientação. Não apenas uma ferramenta para definir o método (rir, ou zombar) e a intenção (castigar, censurar, desmascarar, ridicularizar), mas ainda, o que é mais importante, o âmbito, o alvo: isto é, os «costumes»; ou seja, os hábitos, as práticas, os modos de proceder, ser ou estar.

Dentro deste espírito, é mais interessante e útil gozar com as palavras e as acções de Trump do que com o seu cabelo. Mas não é ilegítimo gozar com a trunfa trumpista, porque tudo naquela cabeça é opção do portador, ele não nasceu com tal molhelha nem ela lhe cresceu por determinação genética. O mesmo se aplica ao revestimento capilar de Boris Johnson: aquele despenteado não é um azar do destino, uma inaudita tendência para atrair golpes de vento, mas algo com assinatura e gosto pessoal. Já gozar com Marques Mendes por ser baixinho ou ridicularizar Santos Silva por ser careca são piadas preguiçosas e sobretudo inúteis, visto não tocarem em nada por que eles sejam responsáveis, nada que traduza o seu ideário ou o seu modus faciendi. Ninguém decide ser baixinho ou escolhe deixar cair o cabelo (rapá-lo é outro assunto). Ninguém cultiva uma determinada estatura como estilo pessoal, assim como ninguém, excepto os franciscanos e um ou outro freak, é glabro no cocuruto para afirmação de uma personalidade, uma atitude ou uma ideia. A herança não é um mérito e a herança genética não é uma culpa.
O que as pessoas fazem com as suas características físicas naturais, sim, pode entrar no âmbito da divisa ridendo castigat mores, mas apenas ser portador delas não devia ser espoleta de humorista. Sobretudo quando padecer de determinada característica física é já um castigo para a pessoa.

Dito isto, o riso não tem de ser meramente utilitário, e uma piada preguiçosa, sem imaginação, inútil, de mau gosto ou insensível não é justificação para a violência (caso contrário muitos shows de stand up comedy teriam forçosamente de ser ringues de boxe). O castigo para uma má piada, se tiver de haver algum, não é um tabefe, mas uma expressão glacial e um silêncio sepulcral. Uma audiência fleumática é o pesadelo de um humorista e seria justo que alguns a tivessem. 
O que não é justo é silenciar alguém à estalada.

domingo, 20 de março de 2022

Não mais um neonazi para a Ucrânia

O arruaceiro e neonazi Mário Machado, arguido num processo, estava sob medidas de coacção que o obrigavam a apresentar-se quinzenalmente numa esquadra. Uma juíza considerou que podia dispensar o cavalheiro dessa obrigação para que ele pudesse ir gentilmente prestar «ajuda humanitária» para a Ucrânia. Não sei o que me comove mais, se a argúcia cívica da juíza se a sua mundivisão. Um arguido recorrente em casos de violência é dispensado de medidas de coação para, enfim, poder ir exercer a sua violência sem freios. Um neonazi é autorizado por um tribunal português a ir juntar-se às fileiras neonazis na Ucrânia, que, ainda que eleitoralmente pouco relevantes (menos deputados no parlamento do que o Chega em Portugal), são precisamente um dos argumentos do invasor Putin (e estão a ser engrossadas por «activistas humanitários» de todo o mundo). A senhora juíza terá muitos méritos e sobretudo um grande coração, mas alguém lhe devia dar umas aulas de geopolítica. E talvez recordar as de direito penal.
A não ser que a senhora juíza seja, afinal, um pouco maquiavélica e deposite mais esperança no arsenal russo ou no acaso das balas perdidas do que na justiça portuguesa.

sábado, 19 de março de 2022

Paraísos artificiais ou o tempo congelado

Um amigo posta — provocatória e ironicamente mas, temo, não sem uma pitada de afecto filial — uma imagem de Estaline com o comentário «Dia do Pai. Dos povos.» Logo alguém comenta, já sem ironia nem gramática nem nada: «É verdade se não fosse ele falava tudo alemão.»

O comunismo soviético, é sabido, deixou em certas almas um sentimento de orfandade que perdura, mas deixou sobretudo uma visão distorcida, alucinada — artificial, em suma — de paraíso, como se naqueles anos tivesse sido distribuída uma droga cujos efeitos se transmitissem como cromossomas de geração em geração.

Poderíamos, sem erro histórico grosseiro, responder simetricamente ao comentário dizendo: «Se não fossem os Aliados, talvez os russos hoje falassem alemão.» Ou: «Se não fossem os Aliados, talvez hoje falássemos todos russo.» Ao que deveríamos acrescentar: «Isto, claro, se os nossos ascendentes tivessem sobrevivido aos gulags, às migrações forçadas, à fome planeada, às purgas, enfim, ao puro arbítrio sanguinário de um sociopata».

Mas de que adiantaria responder? No tempo congelado onde se dão certos debates, não se pode condenar o nazismo sem se estar lealmente do lado russo — nem se pode condenar um regime da Rússia (excepto talvez, mas já nem isso é certo, o de Nicolau II) sem que se esteja a confessar simpatias nazis.

sexta-feira, 11 de março de 2022

História da Terceira Guerra Mundial

– breve incursão pelos seus prolegómenos e eventuais impedimentos.

Se lemos desprevenidos “O Fim do Homem Soviético”, da bielorrussa Svetlana Alexievich, autora de obras polifónicas que se tecem a partir da transcrição e justaposição de múltiplos testemunhos, podemos ficar surpreendidos com a quantidade de pessoas que ali manifesta saudades do regime soviético e até repúdio pela “democracia” que lhe sucedeu (antes ainda do neoczarismo de Putin). Na década final do século XX, a boa consciência ocidental projectou os seus sentimentos a Leste e imaginou uma Rússia unanimemente grata pelo "fim da história", decretado por um voluntarioso (e americano) Fukuyama. Mas o descalabro da União Soviética significou então para uma parte dos russos uma pobreza talvez maior do que a anterior, sem lhe trazer mais liberdade. Isto porque a liberdade sem autonomia financeira é algo ilusória, e o controlo dos recursos da Rússia não chegou propriamente a estar nas mãos do povo ou de um regime que zelasse pelos seus interesses. Naquele tempo, sob o olhar do Ocidente — toldado por uma bonomia ingénua e irresponsável ou emoldurado por um sorriso complacente, quando não sugestionado pelo cinismo e o oportunismo capitalista —, uma pequena quantidade de “visionários” russos agarrou a oportunidade e agarrou às mãos-cheias os despojos da URSS, fundando com ou sem consciência disso mas sem escrúpulos a oligarquia que hoje é dona abusiva da Rússia.

Da forma como na Rússia muitos viram a História a desenrolar-se, a Perestroika (e o que lhe sucedeu) tirou-lhes o pouco dinheiro que tinham ou aquele que por momentos esperaram vir a ter. Além disso, ou sobretudo, tirou-lhes o que sobrava do prestígio e do orgulho que a vitória na Segunda Guerra Mundial lhes dera e que lhes serviu de agasalho durante a idade do gelo estalinista e a longa geada da Guerra Fria.
É fácil, por isso, se queremos arranjar argumentos para contornar o problema Putin — como há quem insista em fazê-lo —, encontrar uma analogia psicológica entre a Mãe Rússia, ferida no seu brio e escarnecida pelo Ocidente auto-proclamado “vencedor da História”, e a Alemanha humilhada pelos Aliados no Tratado de Versalhes, após a Primeira Guerra Mundial.

Mas compreende-se melhor a invasão da Ucrânia conhecendo também “A Rússia de Putin” (2004), da jornalista Anna Politkovskaya, um regime que é um misto de Estado mafioso e ditadura de género soviético, não um país pronto para ser conduzido ao Armagedon por um führer providencial. Politkovskaya denunciou, com abundantes argumentos, a intensa corrupção e as permanentes violações dos direitos humanos que acompanhavam as movimentações internas e externas das políticas de Putin. E, como que fornecendo-lhe o derradeiro argumento, alguém do perímetro do regime mandou disparar os cinco tiros com que ela foi executada em 2006.

Contudo, se a Rússia de Putin não é a Alemanha de Hitler, é difícil, por outro lado, escapar à Lei de Godwin quando discutimos o que observamos e ouvimos do próprio Putin. É difícil não ver nele uma versão conservada no permafrost siberiano do tipo do bigodinho. Não tendo o mesmo desempenho de histrião nas suas aparições e discursos, o frígido Putin não se revela todavia menos fanático e o seu fantasioso quadro mental e o seu ressentimento não são mais sustentados do que os da besta ariana.

Ao mesmo tempo que governa com um desprezo profundo pelos seus concidadãos (que manda prender aos milhares pelo crime de terem opinião), invoca a protecção das minorias russas ou o regresso das suas terras à Mãe Pátria como razões para anexar territórios e invadir países. Mas ao argumento hitleriano da Rússia humilhada, Putin (acolitado pelos saudosos da utopia comunista que ainda não perceberam que o comunismo na Rússia acabou há muito) junta o da Rússia “ameaçada”. A Europa Ocidental, na transição do século, conquistou de facto território outrora sob a pata da URSS e aproximou paulatinamente as suas fronteiras, e com elas as da NATO, às da Rússia. Mas a Europa não conquistou esse território militarmente, antes coquetemente, pela sedução natural dos seus atributos: uma prosperidade relativamente pacífica e livre. As nações da cintura da ex-URSS não se sentiram conquistadas no sentido bélico, mas no sentido passional. Desejavam a vida europeia e voluntariavam-se ardentemente para a viver. O verdadeiro pecado da Ucrânia não foi atentar contra o Donbas russófilo (ainda que possa ter atentado), mas não querer mais o abraço incestuoso e de urso peludo da irmã Rússia.

Este “charme” europeu, a que a linguagem castrense da política e dos media preferiu chamar soft power, por contraponto ao hard power das botas cardadas americanas, corrompeu-se, no entanto, impedindo uma versão mais benevolente do primeiro quartel do século XXI e quiçá de todo o futuro — e abrindo a porta aos argumentos putinescos —, quando alguns líderes europeus, ao arrepio da vontade dos seus próprios povos, resolveram dar cobertura ao acto caprichoso de um presidente americano que decidiu, com a mesma prepotência fútil e semelhante falsidade de argumentos, invadir o Iraque.
Aquilo que a cimeira dos Açores significou para o resto do século XXI (com mais alguns passos em falso posteriores) foi um golpe na frágil expectativa das boas intenções, senão ocidentais, pelo menos europeias. De galã desejado e honrado, o Velho Continente voltou a ser visto como um gigolô que anda à boleia e se aproveita ilegitimamente de outros países. Não admira que mesmo dentro de fronteiras muitos vejam assim validada a sua teoria (habilmente aproveitada por Putin) de que a NATO não representa a legítima defesa de um bloco de países mas uma desnecessária ameaça a uma nação apesar de tudo nobre e sobretudo depositária de uma saudosa glória.

Não será quiçá suficiente para deter os ventos de guerra, mas valerá a pena ilibar o povo europeu no tribunal da História recordando que, da mesma forma que agora se manifesta contra a invasão da Ucrânia, se manifestou então contra a Invasão do Iraque.

A Terceira Guerra Mundial, se aceitarmos o pessimismo proposto pelo título deste texto, está por enquanto adiada, à custa da Ucrânia, como a Segunda o foi à custa da Checoslováquia. Há talvez algo de chamberlainesco, de adiamento, na forma como se procura evitar o envolvimento de meios da NATO na protecção da população civil ucraniana, mas isso não é necessariamente um erro. Talvez Chamberlain precise de ser reabilitado, como de alguma maneira o tentou fazer o filme “Munique: À Beira da Guerra”, pondo-o no papel de alguém que prefere ficar mal na História e adiar a guerra para quando a Inglaterra a possa travar. É certo que a História nos diz que ele podia ter preparado a Inglaterra mais cedo, mas a História é escrita pelos vencedores e no caso da Segunda Guerra Mundial foi-o tão estritamente que o seu autor, Churchill, até recebeu o Nobel da literatura por tê-la escrito.

O adiamento que aqui se valida não é o que permita aos antagonistas da Rússia de Putin prepararem-se para a guerra (ainda que tal seja prudente), mas o que permita que os conterrâneos do neoczar o derrubem. Não vale a pena, na era nuclear, tentar perceber até que ponto um Putin acossado é igual a um Hitler acossado. Vale a pena, sim, ter a opinião do mundo e sobretudo a opinião dos russos contra o déspota que os governa. Adiemos o momento de fornecer poder balístico à Ucrânia, mas forneçamos argumentos de rebelião ao povo russo. (A munição para um sniper também serve.)

Get back

Quando nasci, os Beatles estavam a acabar, e, quando aprendi a tocar viola e sonhei com outros as minhas primeiras bandas, a música deles ainda vigorava por todo o lado mas simultaneamente pertencia já ao Olimpo e os quatro de Liverpool eram como deuses gregos, inalcançáveis, insondáveis. Quando, a mim e aos que tocavam comigo, nos veio parar às mãos um livro com as letras e os acordes de centenas de canções dos Beatles, usámo-lo como certos religiosos sinceros e ávidos de Mistério usam a Bíblia: com profunda devoção, sentindo a latência do Divino, acreditando estar ali, naquelas páginas, o segredo da Vida. Paul, George e Ringo ainda por cá andavam a fazer música, a gravar videoclipes e a dar concertos, mas isolados não exerciam um décimo da atracção que continuava a exercer o quarteto, claramente maior do que a soma das partes. Dei pouca atenção às carreiras a solo dos ex-Beatles, não exactamente porque a música deles fosse despida de interesse, mas talvez, penso agora, porque elas os humanizavam, faziam-nos descer do pedestal, tornavam-nos mais próximos, e talvez isso me causasse um certo ressentimento, uma certa mágoa perversa: os deuses não existem na mesma dimensão dos humanos e, se os Beatles tinham acabado, talvez os seus elementos não devessem ter sobrevivido e continuado a fazer música. O lugar deles era o do mito e por isso deviam ter-se esvanecido antes de eu crescer e compreender o mundo. Não necessariamente à força da bala, como John Lennon, mas tornando-se de um modo indolor abstractos, imateriais como a palavra “Beatles”.

Há poucos anos vi numa qualquer cidade da Europa um cartaz gigante a anunciar um concerto de Paul McCartney e nem por um momento senti o impulso de comprar um bilhete. Em contrapartida, Peter Jackson desencantou horas de filmagens dos dias de criação de “Let it Be”, os Últimos Dias da Criação (é adequado dizê-lo em maiúsculas dignitárias, a um tempo genesíacas e escatológicas), e montou o documentário “Get Back” — e as minhas noites nunca mais foram as mesmas. Lázaro regressou dos mortos e eu tornei-me um morto-vivo. Noite após noite, o YouTube apanha-me nas suas garras com excertos do documentário, que se encadeiam uns nos outros e me prendem horas a fio. O inimaginável aconteceu, aquilo que na minha adolescência tanto tinha desejado, sabendo ser impossível (ver os Beatles na intimidade, na intimidade do processo criativo), está agora ao alcance de um clique, integra a rede como qualquer outra das banalidades contemporâneas com que o algoritmo procura controlar-me os dias. Mas, ao contrário das outras fontes de vício, ao contrário dos vídeos dos eighties que a espaços também me fazem gastar tempo, não vejo “Get Back” imbuído de nostalgia geracional. Não só porque a minha não é exactamente a geração dos Beatles, mas sobretudo porque ver John Paul George & Ringo a interagir e a criar é como ter de súbito acesso aos aposentos privados dos deuses, mas não através dos textos duvidosos de Homero ou Ovídio, antes como se a máquina do tempo tivesse acabado de ser inventada e com essa invenção se revertesse a outra, a dos deuses, tornando-a realidade, facto; como se os deuses deixassem de ser mitos e passassem a ser verdades testemunháveis — mantendo-se a sua existência, contudo, num adequado plano sobre-humano. É com puro fascínio que vejo e revejo em “Get Back” as canções a surgirem, meros esboços, indícios do que depois foram obras-primas e marcos miliários na minha formação pessoal. É com pura comoção beatífica que vejo os quatro de Liverpool no processo de criação, com acertos e desacertos, arrufos, por vezes indiferença, sobranceria ou desdém injusto uns pelos outros, mas de súbito empolgados e sintonizados, fecundos, no rooftop de “Get Back” como no topo do mundo, criadores do próprio mundo que lhes sobreviveu, o meu mundo.

Pensando bem, suponho que é afinal também com nostalgia que vejo os pedaços de “Get Back”, mas nostalgia de um outro tipo, uma nostalgia de outros acontecimentos, que não foram indiferentes à pré-existência dos Beatles mas não se lhes referem. Naquelas horas de “Get Back” vejo também o adolescente que fui, a ânsia de criar canções, de fazer arranjos para músicas que só nós víamos como possibilidades, escrever letras que pudessem encontrar a canção que de certeza havia de lhes corresponder. Em “Get Back” vejo as jam sessions intermináveis e incipientes, que raramente davam alguma obra que valesse a pena para alguém que não os que ali estávamos a tocar, mas que em cada minuto que duravam pareciam aproximar-nos de alguma coisa mais do que a vida terrena, pouco original, quase banal que vivíamos. É como se “Get Back”, ao invés de lembrar a inveja que justamente estávamos condenados a ter, redima aos meus olhos o que tinha dado como tempo perdido. Não porque tenha resultado muita coisa de que me orgulhar daqueles anos em que o meu papel era sobretudo cabotino, mas porque me lembra o sentimento de transcendência que eles me proporcionaram.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Telegrama de guerra

A Rússia de Putin está a cometer um acto vil, criminoso, indesculpável.

O revisionismo histórico de Putin faz parte do arsenal demagógico de um autocrata «clássico» — as tentativas de o compreender são mera nostalgia de quem ama a Rússia como um primeiro amor pueril, mesmo que ela seja liderada por um ogre e caminhe como um ogre.

As tentativas de «compreender» as acções da Rússia de Putin têm um equivalente óbvio e embaraçoso nas tentativas de «compreender» as acções da América de George W. Bush e as armas de destruição massiva no Iraque. É o mesmo tipo de idiotia útil voluntária por parte do mesmo tipo de indefectíveis.

O problema, evidentemente, não é haver demasiada NATO à volta da Rússia, mas haver demasiada democracia à volta da Rússia.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Enquanto me distraía aqui com umas coisas, o Youtube, que deixei à solta, acabou de alinhar uma playlist assustadoramente parecida com uma cassete de êxitos dos setenta que havia lá por casa na minha adolescência. O algoritmo, que quer determinar o futuro, já sabemos, lá se vai treinando a adivinhar o passado. O problema é se se lhe enrodilha a fita: ainda se cria para aí um qualquer paradoxo temporal e eu não tenho uma Bic à mão.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Notícias da província

Título da Blitz: «Todos os concertos marcados para 2022 em Portugal». [Sublinhado meu]. Clica-se, percorre-se a ambiciosa lista e confirma-se que «Portugal» é ali basicamente sinónimo de Lisboa, numa inversão da metonímia usada na linguagem diplomática clássica. As listas de final do ano do Expresso e do Público (como referiu o Victor Afonso num post há dias) também usam a mesma castiça figura de retórica.

Nos tempos que correm, os jornais «nacionais» quase só têm correspondentes locais — mas em Lisboa, para poupar nas viagens e nas comunicações. Não deve por isso surpreender que o noticiário publicado seja muitas vezes de bairro, pitoresco, se não no tom, na circunscrição.

Não é que não cheguem às redacções dos jornais notícias do mundo exterior. Chegam, não estamos na Coreia do Norte ou na Idade Média. E em geral até chegam já escritas, prontas a publicar. Ou porque a Lusa coligiu umas notas e as distribuiu magnanimamente ou porque houve agências de comunicação pagas para o fazerem. De resto, a «província», se não tiver desastres, crimes ou abóboras gigantes, se não quiser encaixar-se no estereótipo de indígena novecentista que domina o imaginário paroquial das redacções (e demasiadas vezes quer), só tem estas duas formas de chegar aos noticiários: através de uma síntese apressada da Lusa, replicada automaticamente online por programas informáticos dos restantes media, ou pagando a alguém que conhece alguém numa redacção.

Mas as fatídicas listinhas que pretendem representar um todo nacional são trabalho de autor, são fruto do crivo esforçado e pessoal dos repórteres locais — de Lisboa. Que de vez em quando se metem no comboio para o Porto, sentindo-se aventureiros — e exaustos da viagem. Por isso, a não ser que o repórter perca um dia a cabeça e, saindo das rotas seguras, se atreva a um safari, é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que a «província» ser notícia por alguma coisa deste século.

Não é que hoje a província seja totalmente provinciana — é que Lisboa não deixou de o ser. Veja-se o que fazem as televisões: transportam a sua visão estereotipada da província para a província em programas que a procuram representar e na verdade representam sobretudo um preconceito que tem os meios de se fazer realidade. Quem inventou o pimba não foi o Emanuel — foi Lisboa.

Há muitos anos, Vasco Pulido Valente, responsável pelo correio sentimental da Kapa, respondia a um leitor que se queixava por a revista só falar do Gambrinus dizendo-lhe grosso modo que se queria que se falasse das casas de pasto da sua terra fundasse a sua própria revista. A conversa não era connosco, mas um grupo onde me incluía tomou à letra o conselho e fundou uma publicação, que até teve o seu share fora de muros. Só que, ao contrário das outras folhas paroquiais, não pretendeu ser mais do que era e assumiu-o no sobrenome: Jornal de Vilarelho. Não ficava mal aos media de Lisboa adoptarem uma vez por outra um subtítulo toponímico com a mesma honestidade.

Digo eu, que nem sequer sou regionalista.