domingo, 30 de outubro de 2011

O fim do mundo fica a nordeste

Certo lisboeta sabe como apanhar o metro, mas tem dificuldades em deslocar-se para lá das Linhas de Torres. Se obrigado a cruzá-las, prepara-se como para um safari — e não raro precisa de guia. Não admira que, como Vasco Pulido Valente no Público de ontem, Bragança lhe pareça o «fim do mundo».

O cliché cumpre ainda a sua função em alguma prosa com vago desempenho queirosiano. É uma muleta útil, quando a prosa se debruça mais sobre si própria do que sobre o assunto de que trata. Repare-se como no mesmo artigo, dedicado a Duarte Lima, Vasco Pulido Valente refere que «um pobre de Bragança não podia transitar suavemente para uma companhia, um banco ou um escritório de advogados». A realidade há décadas desmente a afirmação (entre abundantes exemplos, só nos governos mais recentes, lembremo-nos desse outro nobre brigantino, Armando Vara), mas que importa isso se o efeito da frase é sonoro, requintado? Como a propósito de Martin Amis defendeu Rogério Casanova, não é o que o autor diz que interessa, mas como diz. Se por vezes o escriba parece perder discernimento, não devemos censura-lo — mas admirar-lhe a frase. Que interessa a realidade para um escriba superior?

Claro que muitos transmontanos concordam com Vasco Pulido Valente. Também eles, coitados, lamentam os quinhentos quilómetros que os separam do Gambrinus. Ou quiçá do Colombo e do Estádio da Luz. Na verdade, talvez só os americanos discordem da ideia de Bragança ser o fim do mundo — por lhes parecer que o fim do mundo há-de ter pelo menos o tamanho de toda a província de Espanha que Portugal é.

Ler também: «No fim do mundo», no Tempo Contado.

Ernestina, dez anos depois

Há dez anos, li Ernestina, pela mão de Leonardo Freitas, cuja Editorial Escritor publicava na altura os livros de Rentes de Carvalho. Descobrir as obras e o autor foi como achar um tesouro. Dez anos depois, fruto da intuição e do trabalho de Francisco José Viegas e da Quetzal, Rentes de Carvalho é regularmente lido pelos portugueses e comentado pela crítica. Há dez anos eu não podia ter desejado mais. Contudo, as opiniões sobre Ernestina e os seus irmãos têm sido geralmente entusiastas, como esta, de António-Pedro Vasconcelos.

Somos hoje (plural majestático) mais amargos do que há dez anos — mas uma parte do Portugal presente, a parte que lê, reconforta-nos.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Ok, epígrafe para uma autobiografia

«Havia os que enceravam os carros e os que não enceravam. Abaixo desse nível, havia os que lavavam os carros e os que não lavavam. Harris pertencia ao último grupo.»

– Philipp Meyer, in Ferrugem Americana

No supermercado

1. Limões
Veste de ganga e caminha apressada. De costas, tem o corpo e o ar de uma adolescente magra, desengonçada. Dirige-se sem desvios para a secção de frutas e hortaliças. A mercadoria que fica pelo caminho não a distrai, não sente o apelo consumista. Detém-se em frente à grade dos limões. Escolhe dois. Pousa o saco na balança e parece baralhada, não se entende com a máquina.  Vira-se para pedir ajuda — e então vemo-la, subitamente envelhecida, um rosto de anciã, desgastado, carcomido, com expressões no entanto quase juvenis. Uma impossibilidade na forma de pessoa, duas idades num mesmo corpo, num mesmo rosto. Demasiado nova para ser velha, demasiado degenerescente para continuar jovem. Feita a compra, retira-se com a mesma pressa e balanço de braços. Tem lá fora o cavalo à espera.

2. Careca
Traja com elegância irrepreensível. Careca precoce, escolheu rapar o cabelo na totalidade. O crânio é perfeito, sem uma mossa, um alto, uma ruga, um sinal. Adivinha-se uma suavidade de porcelana, embora quente. Com certa incidência da luz, dir-se-ia envernizado, tal o brilho, o aspecto de esmalte. Quando mais tarde entra no carro, reluzente na sua pintura metalizada, percebemos que trata de ambas as coisas, a careca e a chaparia, com esmero — e cera.

3. Sorriso
Tarde demais para travar na passadeira. Pede-se desculpa e o tipo devolve um ar carrancudo. Sujeito antipático. As voltas do destino (e do parque de estacionamento) põem-nos de novo em rota de colisão, mas agora com tempo para cedermos gentilmente a prioridade. Desta vez, recebemos de volta um sorriso generoso, encantador, carismático, desarmante. Uma punição pelo julgamento precipitado.
Contudo, a esposa, impaciente junto ao carro, chama-o — e volta o ar carrancudo, o sujeito desagradável que víramos antes.

Epígrafe para um romance por escrever

«Havia os que enceravam os carros e os que não enceravam. Abaixo desse nível, havia os que lavavam os carros e os que não lavavam. Harris pertencia ao último grupo.»

– Philipp Meyer, in Ferrugem Americana

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Para baixo todos os santos ajudam

O novo romance de Rodrigues dos Santos podia ser recebido como mais um livro do conhecido cómico televisivo (vocês sabem, aquele que pisca o olho e faz caretas e boquinhas no telejornal). Mas a Igreja, sempre pronta para ajudar, encarregou-se da sua promoção. O calhamaço deixa assim de ser mais uma chouriça da fábrica Dos Santos para se tornar fruto proibido, logo apetecido. Agora não haverá cabeleireiro que ignore a obra.

«Direitos adquiridos» bons

A desorientação dos políticos é total. Ângelo Correia, num momento de franqueza, chama à sua subvenção vitalícia um «direito adquirido». Por momentos, esqueceu-se do valor semântico que o PSD atribui à expressão. Essa é a mesma linguagem que acusa aos cidadãos que defendem os seus direitos (muitas vezes, os seus privilégios, é verdade). Se os políticos consideram essenciais para a qualidade da república as suas mordomias têm de começar a largar a bengala da «lei» (como se a lei fosse divina) e sobretudo têm de começar a encontrar linguagem e argumentos originais. É que, falando como a plebe, parecem mais uns pobres-diabos a tentarem fazer pela vidinha. E nós sabemos que eles não são assim. Sabemos, pois.

Aproveitemos o PREC (processo de reformas em curso)

A opinião pública obteve algumas conquistas recentemente: os cortes nas pensões vitalícias e o (prometido) fim da acumulação de pensões e salários de ex-políticos, a abdicação de subsídios de alojamento por parte de alguns responsáveis governamentais. A opinião pública não deve parar agora. O Governo criou, involuntariamente, as condições para mais algumas vitórias contra a desfaçatez dos ricos e poderosos. Não estava na cabeça do Governo agir nessa frente, claro que não, mas a ânsia de contrabalançar a sua própria brutalidade obriga-o a concessões. A indignação deve por isso persistir, avançando agora, por exemplo, para a situação remuneratória de Cavaco Silva e para o escândalo (europeu) das empresas portuguesas que fogem aos impostos para a Holanda, esse poço de virtude.
A obsessão com as remunerações dos políticos pode ter o seu quê de demagogia e populismo — mas não mais do que a demagogia e o oportunismo que sustentam as desproporcionadas prerrogativas daquela classe. Morder-lhes as canelas não resolve a crise, mas nada nos impede de aproveitar a crise também para esta reforma: tornar Portugal um país menos assimétrico no que se refere a rendimentos. 

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Pena

De repente, fica suspensa da TV, o coração na boca. Apanhou a notícia no fim, e o olhar que deita ao aparelho, a um tempo intrigado e exasperado, denuncia a sua desorientação. Não tendo reposta às angústias, vira-se para os restantes comensais e indaga-os, coerciva, citando o que ainda pôde ouvir:
— Quem é que teve um «acidente aparatoso»?
— Simoncelli, motociclista, grande prémio da Malásia.
— Ah…
Descomprime. Não conhece a personagem. Simoncelli não será assunto amanhã no trabalho. Não é desta que haverá reedição do episódio Angélico. Depois do alerta, sobra no seu rosto um véu não de alívio, mas de desilusão.

As remunerações dos políticos

O ministro Miguel Macedo abdica do subsídio de 1.400 euros para habitação não porque tem residência própria em Lisboa, não porque a opinião pública se tenha indignado, não porque a lei o obrigue — mas porque «quer». É um gosto conhecer a capacidade de abdicação dos nossos políticos — e o seu voluntarismo.
De certeza que Dias Loureiro abdicaria igualmente da subvenção vitalícia se ainda fosse político no activo — ou talvez se estivesse preso.
Cavaco, por outro lado, se fosse um político no activo — e não um reformado patriota que sacrificou a sueca pela presidência, esse biscate — decerto auferiria o ordenado de lei e não as pensões de miséria que lhe dão.

Nota evidente I

Quando a direita diz que os cargos políticos têm de ser bem remunerados para atrair os melhores, não está evidentemente a referir-se aos melhores em carácter. Porque, aliás, não há qualquer relação entre o carácter de um político e a sua competência. Claro que não.

Nota evidente II

Sabemos que a direita tem razão no que diz respeito às remunerações dos cargos públicos quando nos damos conta de que a ideia tem funcionado. Oh, se tem.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A grande farra niilista

Hoje escreveria sobre as praxes. Sobre como a melhor das idades se dedica à sua grande farra egoísta enquanto o país dá os primeiros passos para a tristeza. O país paroquial e cinzento de há trinta anos prepara-se para regressar e a melhor das idades vive a sua tradição mediocrizante como se nada mais houvesse no mundo.
Já desconfiávamos que não podíamos contar muito com a gente nas casa dos vinte para a construção de um espírito nacional exigente, culto, aberto, democrático, contemporâneo, cosmopolita, generoso. O maior orgulho e o maior empenho do grosso das últimas gerações universitárias foi votado à praxe, às tradições académicas, à imbecilização — teríamos de ser demasiado cândidos para contar com aquela juventude. Agora temos a certeza. Agora temos a certeza de que se algumas das conquistas recentes — que eram em grande parte para serem vividas pela gente de vinte anos — sobreviver será apesar daquela juventude. A grande e permanente farra universitária continuará, e nem é como se fosse a «última farra» — haveria algo de respeitável no gesto tresloucado de festejar pela última vez enquanto o mundo implode. É apenas a continuação, o arrastar de uma rotina niilista de cinco anos que em grande medida interrompe o pensamento, a curiosidade, a dignidade — quando devia estar exactamente a expandir estas qualidades.
Hoje escreveria sobre isto e o mais que há a dizer sobre as praxes e a vida «académica», mas o Rui Bebiano e o Daniel Oliveira fizeram-no muito bem aqui e aqui. Leiam, por favor. Uma parte da pátria agradece a vossa curiosidade.

E «outros que tais»

No Cachimbo de Magrite escreve-se que o sector privado tem, desde há anos, vindo a fazer a sua parte no que toca à necessária austeridade. E como? Através do «congelamento de salários» [dos trabalhadores, claro], «da diminuição ou eliminação de prémios de desempenho» [dos trabalhadores, claro], e, meu Deus!, da «diminuição de regalias», do «encolhimento de despesas de representação», de «limites para uso de telemóveis ou carros de serviço», do «decréscimo de lucros e, logo, de lucros distribuídos» e de «outros que tais».
Perante estes esforços sobre-humanos (dos patrões) do sector privado, a gente nem quer imaginar o que sejam aqueles «outros que tais».

Bobagem

Depois de alguma imprensa quotidiana, li nos últimos tempos um ou outro livro convertido ao Acordo Ortográfico e tirei uma conclusão: para lá de mal-amanhado, o Acordo é sobretudo ridículo. Um tipo lê páginas e páginas e esquece-se que o texto está na nova grafia. De repente aparece uma palavra “nova” e apetece uma gargalhada. É isto que vai tornar a língua mais homogénea? Esta ninharia? Experimentem ler um livro em «brasileiro» e vão perceber que não é bem a grafia o que distingue as escritas dos dois lados do Atlântico. Salvo harmonizações mais profundas (e absurdas), o português de Portugal e do Brasil continuarão a ser duas belas e agradavelmente distintas maneiras de falar e escrever a mesma língua.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A obesidade dos nababos

Com a sensatez habitual, Pedro Lomba escreveu hoje no Público sobre como afinal o modus operandi dos governos Sócrates e Passos Coelho se assemelham. (No post anterior, “Dupond e Dupont”, fiz um exercício semelhante, exceptuando talvez a conclusão.) A mesma sensatez, que escasseou durante tanto tempo por cá, leva Lomba a resumir a nossa situação actual: «deixou de haver dinheiro para a ideologia que consiste em gastar o dinheiro que os outros nos emprestavam a juros cómodos e com o qual sustentávamos uma despesa crescente e politizada.» Mais à frente, acrescenta: «É por isso que, com todas as críticas a um método deturpado, eu também sou daqueles que não vêm alternativas no imediato às medidas apresentadas.»

É possível que não haja alternativas, grosso modo. Não seria fácil tentarmos sozinhos um caminho diferente, embora fosse imperioso. Mas há detalhes importantes. Entre as particularidades do descalabro português está o facto de, com uma das piores economias, termos atingido na Europa uma das maiores desigualdades de rendimentos. Ora, este é um luxo a que também não nos podemos dar. Haveria alguma sensatez em corrigi-lo. Como? Efectuando cortes que funcionassem progressivamente na escala de rendimentos. Não há razão para que um país à beira da bancarrota tenha classes altas proporcionalmente mais ricas do que em economias estáveis. A «Europa» iria certamente apreciar que nos deixássemos de luxos insensatos e esta adequação à realidade aliviaria um pouco o sofrimento dos mais pobres. Ou talvez não fosse assim tão pouco: alguém faça as contas.

Claro que nada disto interessa a um Governo «corajoso» como o actual, para quem «luxo» foi o relativo bem-estar social que atingimos — não a obesidade dos nababos.

Dupond e Dupont

Afinal, as conversas de tasca sempre estiveram certas. Os estereótipos usados pelo povo eram exactos. É indiferente quem nos governe —o resultado é (praticamente) o mesmo.

As contradições de Passos Coelho (reunidas num vídeo de sucesso na Internet) provam que os políticos e os governos portugueses agem de forma semelhante, independentemente da sua cor partidária. Na oposição, prometem sem decoro, sem que os preocupe qualquer ligação à realidade. No Governo, fazem o que os deixam — ou o que são obrigados a fazer. A diferença está sobretudo no paradigma em vigor, na conjuntura.

Em tempo de vacas gordas, todos os governos, cada um à sua maneira, foram esbanjadores e incompetentes. Chegadas a crise e as imposições externas, todos dançam a toque de caixa. As eleições de Junho foram inúteis. Se não se tivessem realizado, a esta hora a austeridade estaria igualmente instalada e medidas “corajosas” do PS estariam a ser elogiadas nas instâncias internacionais. É um erro imaginar que não seria assim. O Passos Coelho de Maio não é o Passos Coelho de agora: caiu-lhe a realidade em cima. O Sócrates de agora não seria o Sócrates de Maio (ainda que, claro, fiel aos seus próprios defeitos, jurasse sempre que o era). Ambos são o que lá fora precisam que eles sejam.

Com algumas diferenças, apesar de tudo. Idiossincráticas, em parte. Passos Coelho parece ter a vontade de fazer algumas coisas bem, é mais frontal e bastante menos arrogante do que Sócrates. Só isto bastaria para o preferirmos. Mas há outra diferença que anula esta. Quando forçado a cortar ordenados, Sócrates fê-lo com alguma progressividade. Com Passos Coelho, acima de mil euros é tudo tratado da mesma forma. Sócrates poderia ter sido levado a aproveitar a conjuntura para implementar medidas que reduzissem o fosso entre rendimentos das classes, se algum do vento soprasse nesse sentido. Passos manter-se-á obstinado na sua liberalização radical mesmo que contra ele venha a soprar uma tempestade.

O «momento Bush»

alguém o disse: a crise é o 11 de Setembro do Governo. Depois da queda do World Trade Center, Bush avançou para o Iraque. Por cá, o argumento para avançar com um choque liberal na economia eram as «gorduras» do Estado. Agora, o Orçamento mostra como este é mesmo um «momento Bush»: como aconteceu ao presidente americano com as armas de destruição massiva, parece que afinal o Governo não encontrou «gorduras» no Estado. Não em número suficiente para o que o seu corte aplacasse a ira dos deuses.
O mais irritante disto é que, ao contrário do Iraque, em Portugal de facto gorduras. E não falo apenas dos nababos.
Todos conhecemos os excessos que se cometeram, o endividamento, a fuga aos impostos (de ricos e pobres), as derrapagens, a corrupção. Portugal engordou, perdeu fibra. Errou, não restam dúvidas. Mas como é que se fica com a sensação que várias destas coisas (todas as que não sejam ideologicamente de esquerda) vão continuar a acontecer apesar da retórica puritana em vigor?

terça-feira, 18 de outubro de 2011

O fantasma Gaspar


Há destinos que estão gravados no nome. Não é o caso do nosso ministro das Finanças. Ou é, mas de outra maneira. No futuro, ninguém verá a sua cara em autocolantes colados nos frigoríficos ou em posters de berçários. A alma penada do nosso Ministro das Finanças, menos simpática do que a do seu homónimo, há-de ser invocada quando as mães quiserem obrigar os filhos a comer a hortaliça: «olha que eu chamo o Gaspar!» Isto se no futuro o fantasma permitir que as mães tenham hortaliça para dar aos filhos.

Distracções reveladoras

A previsibilidade ideológica deste Governo tem a vantagem de poupar algum trabalho ao blogger. Sobre esta manchete do DN  ("Pensões vitalícias de ex-políticos poupadas a cortes") já eu havia escrito aqui e aqui.

Apanhado em flagrante "distracção", o ministro Gaspar lá veio admitir o "esquecimento", garantindo entretanto que, pronto, está bem, "o governo está determinado em encontrar uma solução".

Há esquecimentos que são reveladores. Se havia dúvidas sobre a actuação eminentemente ideológica deste governo (o mais ideológico depois do PREC), elas ficam esclarecidas com este episódio. Nas cabeças dos autores do OE 2012 apenas estão as classes média e baixa. Mas não é porque os preocupe o seu futuro. É mais como o talhante que à noite sonha com cortar bifes do lombo.

Boas intenções e desastres conexos

Se aplicadas em laboratório, nenhuma das ideias da Secretaria de Estado da Cultura seria absurda, e nesse mesmo ambiente as suas seriam as melhores intenções. Não temos como não concordar com a disciplina na utilização dos apoios públicos, com a necessidade de aumento de receitas e, em abstracto, com a valorização das bilheteiras como instrumento de avaliação de resultados. Acontece que Portugal não vive numa redoma asséptica, num clima ideal, pelo que algumas das melhores intenções conduzirão a pequenos desastres.

O que acontecerá quando as medidas para o aumento da receita a fizerem diminuir? Que resultado terá o IVA a 23% na «valorização» das bilheteiras? Se não acreditássemos nas boas intenções da SEC, diríamos que ela tem um plano pérfido. Apresenta os requisitos para a viabilidade das instituições — e simultaneamente cria as condições para que eles não sejam cumpridos.

De resto, a SEC é a primeira a contribuir para a desvalorização das bilheteiras, com aquela sua forma de falar das coisas pela negativa. Para a SEC a cultura não é um bem, um direito, um benefício, um privilégio que devemos agarrar — mas um frete que temos de ir alijando. Talvez não seja exactamente isto que lhe passa pela cabeça, mas é decerto isto que lhe passa pela boca. E que o povo ouve, pronto a concordar.

Vem de trás, do debate nos blogues e nos jornais. Um conjunto de dandies conservadores — e provavelmente pouco frequentadores de algo mais do que livros — fez o diagnóstico e formatou o discurso da SEC. Punir a cultura, eis tudo o que havia a fazer. Nenhuma palavra, nenhuma ideia sobre serviço público. Nem que fosse o assumir que nenhum serviço público é necessário. Que o fim do teatro, da dança, da música não é mal nenhum. Este tipo de honestidade.

O regresso da paisagem

Nos últimos dez anos, a cultura democratizou-se e descentralizou-se, fruto de vários equipamentos que foram construídos ou reconstruídos um pouco por todo o território. Num dado momento, o viajante que seguiu o conselho «vá para fora cá dentro» e se aventurou para além do termo de Lisboa deixou de deparar com um deserto. Por um lapso de tempo, de norte a sul, a província foi menos provinciana. Podiam fazer-se roteiros que aliassem património e artes. Era até concebível imaginar um pequeno êxodo urbano, a vida nas berças começava a ter alguns dos atractivos culturais das metrópoles. A deslitoralização do país, a existir algum dia, passava também por esta “revolução”.

Depois veio a crise e o movimento abrandou e a seguir retraiu-se. Agora galopa desesperadamente em direcção ao passado, a um passado triste, enfadonho, de gente com os olhos postos na saída. Enquanto a SEC procura purgar os grandes equipamentos nacionais, a breve lufada de ar fresco que soprou no interior ameaça tornar-se de novo cheiro a bafio e a desolação. Os pequenos equipamentos do Algarve, do Alentejo, das Beiras, de Trás-os-Montes provavelmente não sobreviverão à onda de «racionalização» e à «análise do custo/benefício» que necessariamente ocorrerão à escala regional, como corolário da política nacional. A ponderação das bilheteiras determinará o regresso ao folclore e à ocasional revista à portuguesa ou congénere em digressão. A SEC tem um plano para Lisboa e Porto que apesar de tudo não parece equacionar o encerramento das principais infra-estruturas ou o fim da sua missão — o resto do país não entra nas contas. O resto do país é paisagem. E talvez «património». Para lisboeta ver.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A flexibilidade de princípios do capitalismo

Quando o dinheiro fica escasso, o capitalismo não hesita em suspender alguns dos seus princípios, embora mantenha uma comovedora selectividade. Aceita, por exemplo, congelar a progressão na carreira, esse estímulo à produtividade e à competência. Por outras palavras, a «ambição», pecado que o capitalismo acarinha particularmente, pode ser suspensa em época de crise — mas só nos escalões subalternos. No topo, continua a ser francamente estimulada.
Outro princípio abdicável é o do cidadão-consumidor, que pode ser convertido no do cidadão-poupador. Que não seja dado ao cidadão o que poupar é um detalhe que não preocupa os governos do sistema: eles próprios se encarregam de depositar nos bancos o dinheiro a que o cidadão não tem acesso.

A força antigravitacional

Uma das propagadas virtudes deste capitalismo, das razões porque ele «funciona», será a sua impessoalidade, a forma como premeia naturalmente os empreendedores e castiga os inúteis. O pobre pode sonhar com a abastança (o sonho americano) e o rico cairá em desgraça se for incompetente. O capitalismo age verticalmente entre as classes, é um elevador que pode viajar nos dois sentidos.
Mas a realidade tende a lançar algumas sombras no luminoso retrato neoliberal. Se não é assim tão comum o pobre laborioso chegar à terra da abundância, é definitivamente raro o rico estatelar-se na miséria. Há, aliás, uma «força» misteriosa que impede a despromoção dos ricos e poderosos — mesmo quando o seu desvelo é deplorável e a incompetência notória.
Se há coisa em que o capitalismo se revela eficaz é em tornar natural aos olhos de todos que um rico permaneça rico, um poderoso continue poderoso. A partir de um certo nível, o elevador não desce — desliza lateralmente. O rico preguiçoso não vem provar as amarguras da miséria — é-lhe concedida uma fonte de rendimentos diferente. O poderoso incompetente não cai no poço do elevador — é convidado a exercer o poder noutra repartição. É isto o que o capitalismo faz melhor: tornar uma excentricidade inaceitável que um gestor público de topo seja despromovido, responsabilizado, espoliado.
Veja-se em Portugal quantos dos responsáveis políticos, quantos empresários, quantos dos poderosos perderam uma quota-parte do seu poder, quantos apanharam o elevador para o rés-do-chão. A própria Justiça se encarrega de impedir a queda, quando o desempenho empreendedor se torna demasiado zeloso e colide com o direito. Se há crime provado, ele prescreve, naturalmente.
No sistema capitalista como no universo, provar-se-á um dia em laboratório a existência desta força antigravitacional. Talvez nessa altura o seu uso possa ser generalizado — se nenhum magnata registar a patente para permitir que o abismo entre a galáxia dos ricos e a galáxia dos pobres continue a sua interminável expansão.

domingo, 16 de outubro de 2011

O IVA, os livros e as corporações

Álvaro Covões, conhecido promotor de concertos pop/rock, queixa-se na rádio da subida do IVA dos bilhetes para espectáculos. Na peça que ouvi, a sua indignação ia a par com a inveja corporativa, como é bom costume português. Covões lamentava tanto o contratempo para o seu negócio como a manutenção do IVA a 5% para os livros. Uma injustiça clamorosa que nas suas palavras só se explica porque, claro, o Secretário de Estado da Cultura é na vida civil escritor e editor.
Os corporativistas têm dificuldade em ver as acções dos outros sob uma luz diferente da que ilumina as suas. Para Covões, Francisco José Viegas decidiu assim para benefício do seu mester — não porque tenha uma estratégia cultural.
Eu próprio tenho muitas dúvidas sobre qual seja a estratégia cultural desta Secretaria de Estado (sobre a sua estratégia económica estou esclarecido), mas não vejo razões sérias para discordar de que o livro deve ser uma prioridade. Deste e de qualquer governo, em qualquer época e circunstância. Se há margem para manter o IVA no escalão mais baixo apenas para um sector, ele que seja evidentemente o do livro. Um país pode ficar mais triste sem os concertos que Álvaro Covões promove — mas sem livros fica por certo mais estúpido.

Monocultura

Mas a indignação de Álvaro Covões na peça radiofónica abrangia ainda outras áreas. Na sua opinião, se o Governo precisava de arrecadar mais dinheiro, podia ir mais longe nos cortes orçamentais de instituições como a Casa da Música, o São Carlos e congéneres. Que, aliás, ao serem subsidiadas pelo Estado fazem «concorrência desleal» à empresa do senhor Covões.
Temos, portanto, o Portugal umbiguista no seu melhor. Não há nada mais importante que o nosso quintalejo — e a monocultura que nele praticamos. Se podemos sobreviver só do que dá o nabal, porque havemos de plantar outras hortaliças?

Concorrência desleal, eis a questão

A «concorrência desleal» das instituições culturais financiadas pelo Estado é a espaços referida por produtores ou empresários do ramo, geralmente empresários que se orgulham da sua «independência» e da popularidade do seu produto, da «importância» que o público lhe dá. Este discurso enferma de dois equívocos, nem sempre inconscientes. Em primeiro lugar, a verificação de tal «concorrência» pressupunha, por exemplo, que o cidadão hesitasse entre assistir a uma peça de Harold Pinter ou a uma comédia ligeira com vedetas televisivas. Hesitasse entre assistir ao último espectáculo da C de la B ou à última produção de La Féria. Hesitasse entre a nona sinfonia de Bethoven e a nova edição do Super Bock Super Rock. Ora, todos sabemos como estas hesitações são vulgares em Portugal. Nem Hamlet padeceu de mais frequentes e dilacerantes dúvidas do que as que assolam os portugueses na hora de escolher o espectáculo.

Rock, pop ou pimba

O segundo equívoco assenta na ideia de que a fórmula de sucesso dos produtos populares pode ser aplicada às instituições do Estado, libertando-as assim da sua subsídio-dependência. Bem, na verdade, pode — se enquanto nação estivermos dispostos a aceitar que o musical à la Broadway elimine a ópera, que todo o teatro seja comédia brejeira e toda a música rock, pop ou pimba. (Já estivemos mais longe.) Esta resignação teria a vantagem de tornar óbvia a escolha para dirigir o São Carlos. Já para a Casa da Música a hesitação resolver-se-ia com um regime dinástico: depois do pai Carreira, dirigiria o equipamento o filho Mickael.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Prémios de gestão

Parece que uma das medidas previstas no OE 2012 é o congelamento dos prémios para os gestores públicos. Pensava a gente que este era um Governo de coragem. Feito o diagnóstico — «foram cometido erros de gestão muito graves nos últimos anos» —, pareceria evidente a medida a aplicar nesta área: devolução dos prémios de gestão de há vinte anos até à data. Mas isso, além de coragem, implicava coerência, essa extravagância na política portuguesa.  
Prémios para gestores públicos (que não passam de prémios para tipos que, aparentemente, cumprem a sua função) são um daqueles privilégios absurdos não incluídos no ódio neoliberal. Congelam-se, para que a populaça não resmungue muito. Depois, pela calada, lá se hão-de retomar, que a vida é difícil.

Orçamento de Estado de 2012

E pronto, está decretado oficialmente o ano Maia, o tempo dos cataclismos. Resta saber se, como na última grande catástrofe do planeta, o resultado é apenas a extinção dos dinossauros (os políticos que nos governam e os eleitores que os elegem há trinta anos, ou seja, quase toda a gente menos eu), ou se é a altura de fazer as malas, tirar a nave da garagem e zarpar para a Europa (o satélite de Júpiter).

Vitória militar eleitoral

Foi assim há dias na Madeira, mas (ainda) é assim no país. Os apaniguados do candidato ou partido vencedor não raro assediam os derrotados. Com bazófia e danças de pavão. Na melhor das hipóteses. Na pior, causam estragos.
É fastidioso repetir, mas a, digamos, política torna-se igual ao futebol, que dentro das quatro linhas é a versão “civilizada” da guerra e fora delas cada vez mais um preâmbulo da guerra.
De acordo com a moral vigente, um adversário derrotado não é alguém com quem tenhamos de trabalhar no dia seguinte (alguém para quem teremos de trabalhar, já que em democracia os cargos são representativos de todo o eleitorado, não apenas da facção). Para muitos militantes, um adversário derrotado é uma entidade que só um inesperado resto de delicadeza impede de esmagar — ainda que não impeça de incomodar.
Não surpreenderá que um destes dias, no calor da vitória, alguém grite mata e a turba saia de gadanhas na mão disposta a concretizar.
Tem a ver com a insistência abusiva no termo “maioria” ligado a democracia. A maioria decide, a maioria tem razão, a maioria determina o destino da minoria. A maioria delibera sobre a vida e a morte.
Que conveniente é para os poderes eleitos esquecer que democracia é permanente escolha entre alternativas — que têm, por definição, de ser asseguradas pelo próprio sistema. É consenso mas também debate, direito à diferença, direito a prosseguir caminhos alternativos no seio da mesma comunidade.
A democracia foi inventada para assegurar a sobrevivência das minorias, mas, no clímax da batalha eleitoral (como aliás no despacho dos ministérios), o ímpeto é frequentemente totalitário — e quase sempre besta. Sobretudo tratando-se das jotas, essas milícias com uma bandeira no lugar da cabeça.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Oh Beyoncé, Beyoncé, (não) quero bailar com você


O telejornal diz que a cantora Beyoncé foi acusada de plágio pela coreógrafa belga Anne Teresa De Keersmaeker (fundadora da companhia Rosas). Um vídeo da cantora parece ser cópia descarada de algumas peças daquela importante coreógrafa de dança contemporânea, que recorreu à justiça.
Num primeiro momento, achamos que Beyoncé não merecia uma condenação em tribunal, mas umas palmadinhas nas costas. Difundir dança contemporânea, quando esta é de boa qualidade, devia ser louvado, não castigado.
Mas depois o locutor cala-se e a música fica mais alta — é então que nos pomos a pensar se a cantora será julgada na Bélgica ou nos Estados Unidos. Torcemos pelos EUA, claro — ali há pena de morte.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A Primavera Árabe e o Outono Ocidental

1. Tudo aquilo que os jovens da Primavera Árabe sabem que não querem é o bastante para que a sua seja uma revolta evidente, um processo que se auto-justifica e cujos fins são também claros. Em termos gerais, os jovens não querem a ditadura. Ponto. Mais não seria preciso para que a revolução fosse tanto uma vontade como uma necessidade amplas e naturais.

Os jovens árabes — uma boa parte deles, pelo menos — querem liberdade de expressão, liberdade de reunião, liberdade de voto, igualdade de géneros, democracia. Se no fim do dia tiverem conseguido isto, terão conseguido tudo — mesmo que ainda lhes possa faltar muito para uma vida digna e próspera. A vitória das revoltas árabes, fisicamente difícil e arriscada, é intelectualmente fácil de defender e de conseguir. Derrubada a ditadura, estão conseguidos os objectivos; instaurada a democracia, a revolta, esta revolta, consuma-se — ainda que a luta tenha de continuar.

2. Os movimentos indignados no Ocidente não têm a mesma revolução “fácil” pela frente. Aparentemente, também uma parte dos jovens daqui sabe o que não quer (um capitalismo impiedoso, opressor e ineficaz, políticos corruptos, empresários usurpadores), mas não tem algo suficientemente definido e contrastante para lhe opor. Não tem um simétrico óbvio como a democracia o é para a ditadura.

Precisamente porque o que “oprime” o Ocidente não tem a evidência de uma ditadura clássica, não é exprimível em slogans simples e universalmente aceites, por mais que eles sejam tentados e bradados. Ainda que as massas manifestantes se pudessem pôr de acordo quanto à forma de derrubar o “sistema ocidental”, não saberiam, na verdade, o que instalar no seu lugar. Ou sabê-lo-iam muito vaga e incertamente, mais a partir de uma intuição ou de uma fé do que de uma reflexão acabada.

O velho comunismo assusta demais para voltar a ser apelativo e uma alternativa que a classe média, crescentemente indignada, aceitasse. E um “comunismo de nova geração” (necessariamente com outro nome) ou uma “social-democracia economicamente persuasiva” não estão ainda politicamente estruturados e acessíveis ao senso comum, nem se prevê que venham a ser de consenso fácil.

Resulta que dificilmente as ocupações das praças públicas no Ocidente conseguirão, só por si, constituir uma revolta vitoriosa como a árabe o é potencialmente. Talvez as ocupações possam desalojar os poderes, mas não terão nada para pôr no lugar deles. Nem serão tão universalmente aclamadas. O Ocidente está zangado, mas não louco. Não haverá uma ovação quando a desordem for tudo o que restar. A anarquia, se acontecer, como eventualmente acontecerá, não será desejada como a liberdade na margem sul do Mediterrâneo. Reside portanto aqui a dificuldade da revolução ocidental. Se nada de útil for fabricado nos próximos tempos pelos pensadores ocidentais (considerando que existem e que, existindo, alguém está disposto a ouvi-los), na margem norte do Mediterrâneo não ocorrerá uma Primavera mas certamente um Outono invernoso.

O cepticismo de um ocidental ou A Super Bock patrocina a revolução

Mas imaginemos agora que a massa crítica ocidental conseguia inventar um simétrico evidente e atractivo para oferecer aos indignados e à população em geral. Conseguiria reunir “amigos” ou “gostos” suficientes no Facebook? Seria possível verter para linguagem de sms (a que a malta entende) o conceito pelo qual se faria a luta? E, mais importante, estaria a juventude ocidental disposta a ocupar praças em números convincentes e pelo período necessário — se nenhuma marca de cerveja ou de whisky patrocinasse a ocupação?
Caso haja uma primavera ocidental, aqui ela será necessariamente patrocinada pela Super Bock. Mas no final terão de ser os egípcios (ou outros imigrantes) a limpar os vidros e os copos de plástico das praças. 

Condições para uma revolução

No Ocidente, o grosso da juventude sabe como se parte uma garrafa ou um copo no passeio — mas não sabe como se pega numa vassoura. Talvez não esteja ainda maduro para uma revolução. E talvez não esteja ainda necessitado de uma revolução. O revolucionário, como se sabe, precisa de um certo esclarecimento político e cívico — e de ter os bolsos vazios. Olhando em volta, dir-se-ia que nenhuma das condições se verifica suficientemente por cá.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Duas meninas

Talvez a mais velha tivesse confessado o sonho de ser modelo ou actriz de novelas, porventura as duas profissões mais ambicionadas pelas adolescentes de hoje. A mais nova, criança, responde-lhe, passando-lhe vagamente as mãos pelas partes do corpo que menciona: «Para isso vais ter te livrar dos espigos no cabelo, fazer dieta, ir para o ginásio, aumentar os peitos, tirar esse sinal e manter as unhas todas do mesmo tamanho». A última observação provoca-lhe uma risadinha irónica pela farpa que incluiu.
Apesar da linguagem, do conhecimento da matéria, da aparente intimidade com os detalhes que ocupam as candidatas a “estrelas”, a mais nova estava-se claramente nas tintas para o tema. Não parecia desinteressar-se pelos sonhos da irmã adolescente (ou prima, ou amiga), não era isso. Apenas a sua solidariedade, a sua cumplicidade não ia ao ponto de valorizar assim tanto o que quer que exigisse tais esmeros.
Se fosse a mais velha a falar sobre os anseios da menina (bonecas, desenhos animados, amigos imaginários, brincadeiras, corridas ao ar livre), o tom não seria mais paternalista, condescendente, duma cumplicidade carinhosa e interessada mas não totalmente empenhada.
Assistiu-se a uma inversão. As questões da beleza feminina foram naquele momento reduzidas a caprichos infantis, anelos transitórios a que a idade tira importância. A mais nova das meninas mostrava, sem a impor, a sua maturidade. Não se importava de dedicar algum tempo a um assunto pueril, mas simultaneamente percebia-se (ela deixou claro, aliás) que tinha coisas mais importantes de que se ocupar, como por exemplo correr a embrenhar-se mais no parque para aproveitar o bom tempo extra que foi concedido ao país. «O Verão não vai durar sempre!»
No entanto, como sabemos que com a idade não vem necessariamente mais juízo, é possível que daqui a um par de anos também esta menina só se preocupe ao espelho com o aspecto do cabelo e corte sempre as unhas no tamanho que as revistas aconselham. Nessa altura, um Verão que entra pelo Outono não fará parte do estreito leque de coisas que maravilham.

sábado, 8 de outubro de 2011

A sinceridade de António José Seguro

Carlos César anunciou que não se recandidata. «Em nome da ética dos cargos públicos e da ética republicana.» A lei (perniciosa) não o obrigava, mas ele fê-lo, reafirmando voluntariamente a importância da limitação de mandatos, da renovação democrática. Passemos em alto considerações sobre o contexto da decisão e sobre o contraditório segredo mantido de Janeiro até à data. O anúncio é, por si, coerente com o que o governante havia dito há três anos e serve a república da melhor maneira, a do exemplo.

António José Seguro teve, com este anúncio, a possibilidade de se mostrar em sintonia com uma visão desprendida do serviço público, de sublinhar a importância simbólica e prática da decisão do seu correligionário, de enaltecer e destacar um gesto raro. Mas, pelo que ouvi na rádio, o dirigente socialista preferiu outro caminho, o duma triste e reveladora sinceridade. Manifestou «pena» por a decisão de César não ter sido a de se recandidatar, dado o seu perfil, as suas qualidades.

As belas palavras contra a eternização de pessoas nos cargos públicos apenas são válidas quando aplicadas aos outros. No que toca aos nossos, eles podem ficar lá para sempre, não há qualquer interesse em substituir quem tão bem nos serve. A democracia interessa-nos até ao momento em que ganhemos as eleições, depois disso é dispensável.

Se havia dúvidas quanto ao carreirismo de Seguro, quanto à sua “clubite”, elas ficaram hoje esclarecidas. A sua mente formatada para pensar sob a perspectiva da tribo, da facção, não foi capaz sequer de guardar as aparências. A decisão de César estava tomada e divulgada — ele podia elogiá-la, mesmo que por dentro lhe doesse o coração socialista. Mas a língua foi mais rápida do que o pensamento, e Seguro, num exercício de transparência que lhe agradecemos, lamentou publicamente a perda de um ganhador de eleições. O partido agora vai ter de lutar mais para manter o poder no arquipélago e isso, a única coisa que importa a este género de servidores da pátria, é uma chatice, claro. O aprofundamento da democracia não atenua nem um pouco a mágoa “socialista”, não compensa o contratempo que a casta enfrenta. É gente desta espécie que nos governa.

Os passos de Pedro

Passos Coelho não é melhor do que Seguro. É fruta da mesma cepa. Também ele não hesitaria em apoiar João Jardim se a revelação do célebre “buraco” não lhe tivesse explodido na cara. O moço, aliás, acarinha uma boa provisão de caciques pela pátria fora. O que lhe traz um problema: quando o solo nacional começar a dar de si com os buraquinhos municipais, os passos de Pedro revelarão necessariamente quão trôpego é o seu caminhar. 

A guerra civil pela secessão (ou não) da Madeira

A guerra civil começou nas caixas de comentários dos jornais. Madeirenses e continentais digladiam-se trocando argumentos sobre quem tem o buraco mais profundo, quem produz mais, quem deve menos, quem, à boa maneira adolescente, tem o PIB maior. Como se desconfiava, de um lado e do outro do Atlântico não há quem veja os problemas como eles devem ser vistos: pela sua nocividade intrínseca e geral e não pela sua cor política ou pela sua ocorrência geográfica. Os portugueses tomam parte pelo clã, não pela verdade ou pela razão. João Jardim é um monstro ou um herói, exactamente como Pinto da Costa ou Luís Filipe Vieira consoante vistos do Porto ou de Lisboa. A política para os portugueses, quando não vale menos do que o futebol, é tratada da mesma maneira facciosa. Há a paixão, o regionalismo, a pertença — não há cá “verdade”, “isenção”, “objectividade”, “solidariedade”. As pessoas pensam e agem na convicção de que na “família” reside o bem-estar, o sucesso. Mesmo que isso implique a desgraça da outra parte. Ou sobretudo esperando que isso implique alguma desgraça para a outra parte.

Termo não aplicável ao caso em estudo

Se por azar Churchill se visse nacionalizado português, não defenderia que «a democracia é o pior dos sistemas com a excepção de todos os outros». Não em Portugal.
Dito de outra forma: nem todos os batalhões de Bush seriam capazes de instaurar uma verdadeira democracia na Lusitânia — quanto mais o pindérico exército de Abril. 

Boçalidade rodeada de mar por todos os lados

Livrar-nos de João Jardim não seria mais do que baixar apenas ligeiramente o volume de uma música horrível. O homem é o que expele mais ruidosamente a boçalidade, mas tem no continente inúmeros espíritos irmãos. A ideia de que a independência da Madeira seria como conter uma praga, como ter a boçalidade rodeada de mar por todos os lados, é ingénua, distraída. Para esse efeito, precisaríamos de recuperar e multiplicar a invenção de Saramago: precisaríamos de fazer navegar, não uma, mas dezenas de jangadas de pedra, extirpar numerosas partes da pátria. No fim, nem o Japão nos ganharia em número de ilhas por etnia. E, declarada a independência de cada uma, as Nações Unidas teriam de duplicar o número de cadeiras na Assembleia-Geral.
De qualquer modo, nenhum cão deixa de tentar livrar-se de uma carraça só porque tem muitas.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

National Geographic

Nalgumas terras de Portugal é costume colocar-se garrafões de água junto às portas das casas porque, crê-se, isso demove os cães de ali urinar. Contudo, não parece que tal artifício seja um inibidor eficaz para outro animal que tem por hábito mijar as portas das casas: o adolescente noctívago.
Certos bairros das cidades são, à noite, uma espécie de reserva de vida selvagem. Locais onde depois do crepúsculo se suspende a civilização, se quebra o fraco verniz que à luz do sol faz com que todos, até estes jovens, pareçam polidos. O adolescente durante o dia reconhece e sabe a que se destina a cerâmica lacada com que se mobilam as casas de banho. O mesmo lhe acontece quando iluminado pelas lâmpadas de halogéneo ou fluorescentes da sua própria casa. Mas, lançado na penumbra das ruas, o seu lado selvagem vem ao de cima, sente o apelo da natureza com uma urgência inelutável, mormente se o apelo vem das entranhas. É como se nele a bexiga se localize junto ao cérebro e, quando inchada, comprima os lóbulos ou os segmentos de massa encefálica responsáveis pela inteligência, já de si um pouco espalmados.
O adolescente é mais ávido do que um cão a marcar território, mas igualmente fascinado pelo cheiro dos seus semelhantes. Suscitado pela necessidade de se aliviar, tenderá a escolher o local inapropriado onde outros tenham feito o mesmo. Enquanto verte o seu fluído sobre o dos seus antecessores, dilatam-se-lhe as narinas num exercício de taxonomia química ou numa fruição hedonista (ainda não há uma ciência exacta sobre isto).
Porém, verifica-se um desacerto entre estes adolescentes ou jovens* e outros seres, que compartilham com eles o espaço, mas não o tempo. Quando a madrugada surge e os últimos espécimes nocturnos se recolhem à cama como vampiros exauridos ao caixão, há um ritual que se repete: baldes de água são lançados sobre as soleiras, mangueiras são apontadas às lajes dos alpendres, impropérios são dirigidos aos céus. O raiar do dia é a charneira entre estes dois mundos que convivem menos bem do que o carácter quotidiano dos rituais diria. É certo que os noctâmbulos mal dão pela existência dos seus simétricos diurnos: quando os não ignoram, desconsideram-nos, não imaginam que importância lhes hão-de dar. Mas os habitantes da parte solar sentem demasiado intensamente a existência dos outros, identificam melhor do que gostariam o seu rasto de amoníaco, vítimas que são de órgãos olfactivos excessivamente sensíveis.
A convivência pacífica é assim uma aparência, a letargia de um vulcão. Enquanto usam sonambulamente a esfregona, os que se levantam quando o Sol nasce amaldiçoam os deuses por terem dotado os adolescentes de tão fraco discernimento e tão possante jorro. No seu desespero, pedem aos céus a vingança de um mal de próstata ou o favor dos ventos: que o arco dos cretinos lhes não poupe os pés. Enquanto não são agraciados, sonham por exemplo com instalar sistemas de electrochoques accionados por jacto fisiológico. Infelizmente, não contribuem para a alegria do mundo — não concretizam a instalação.

* O comportamento também é verificável em espécimes adultos menos desenvolvidos.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

«No photo»

Na imagem do JN, uma estudante procura impedir que os turistas fotografem um momento de praxe universitária (ou “ritual de integração”, o eufemismo em uso). Podemos imaginar que a rapariga pretende zelar pela dignidade dos caloiros, impedir que a humilhação a que geralmente os sujeitam seja registada e alvo de exposição pública (por exemplo, na Internet). Tenderemos a simpatizar com a jovem, com a sua diligência humanista.
Ou podemos ser mais exigentes e pedir-lhe um pouco de coerência. A dignidade dos caloiros não é ofendida pelas fotos inconvenientes que possam circular. É-o pelos actos que sobre eles cometem os colegas mais velhos. Culpar o mensageiro foi sempre a fórmula dos déspotas.
Na verdade, a rapariga que põe a mão à frente da câmara e diz «no photo» não nos deveria merecer excessiva simpatia. Se foi suficientemente inteligente para dar o primeiro passo (considerar indigna a exposição da humilhação), é mais culpada por não dar o seguinte: considerar indigna a própria humilhação.
Em bom rigor, o que a imagem do JN registou foi alguém a pretender esconder as provas da sua vileza — mesmo que inconscientemente, mesmo que com um retorcido sentimento de virtude. Como nas melhores autocracias.
Era uma estudante universitária — poderia ser o esbirro de uma ditadura.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

A crise é psicológica

Quem lê jornais tem uma percepção clara de que vivemos, na melhor das hipóteses, o fim de uma época. Por vezes a impressão transmitida é apocalíptica: uma guerra entre nações é de novo possível; tumultos que nos aproximam de guerras civis; desprotecção social; miséria para uma vasta maioria das pessoas.
Para alguns comentadores, esta é uma oportunidade de aplicar um novo sistema económico e político, mais justo e eficaz. Para outros, o tempo é de reforçar os mecanismos do capitalismo selvagem, um sistema que pode ser duro (sê-lo-á, crescentemente) mas funciona melhor do que todas as alternativas, defendem. Ninguém espera, de toda a maneira, facilidades nos próximos tempos.
Ninguém excepto o cidadão comum, que continua a utilizar com surpreendente frequência a expressão «a crise é psicológica».
Tirando o anúncio dos cortes no 13.º mês — na verdade ainda não sofrido —, a maioria dos cidadãos que manteve o emprego não sentiu por enquanto toda a veemência da crise. As empresas e as instituições já lhe provaram o sabor, claro, mas as ondas de choque levam o seu tempo a chegar aos funcionários, ainda preocupados com os resultados do campeonato e o desenrolar das novelas.
2012, como reza o calendário Maia, será o ano de todos os cataclismos. Finalmente toda a força da crise, entretanto agravada pelo permanente degradar da situação, se abaterá sem contemplações. Em 2012 não mais a crise será psicológica — a não ser para os que percam de todo o norte e o juízo e passem a viver em negação.
Seria interessante observar Portugal em 2012 — se não estivéssemos, como vamos estar, demasiado ocupados a tentar sobreviver-lhe.

O ano Maia ou de volta ao modelo de contracção do universo

As desigualdades sociais e o fosso entre rendimentos na maioria das sociedades do Ocidente não têm diminuído nos últimos trinta anos. Muito pelo contrário. Julgo que um economista empenhado e de espírito independente não teria dificuldades terríveis em demonstrar como isso contribuiu para o endividamento dos países e para a crise actual. De facto, o enriquecimento fácil e permanente de uma classe obriga ao endividamento de todas as outras (e das instituições do Estado) sempre que não se queira, como não quis, deixar demasiado para trás as restantes classes. O ar dos tempos foi, é claro, facilitar o enriquecimento dos “ricos”. Mas, simultaneamente, ninguém, nem os ricos, desejava conflitos sociais graves. Sobretudo por isso, foi permitido que toda a sociedade alimentasse ilusões de riqueza, de crescimento acima das suas posses. Não seria legítimo — nem pacífico — defender-se a riqueza apenas para uns poucos, daí fazer-se da avidez uma virtude democrática, estimular-se de forma generalizada o desejo de enriquecimento. O desejo de enriquecimento foi parte integrante do sistema em vigor nas últimas décadas, foi fortemente estimulado, quer com base na crença de que isso faria realmente aumentar a produtividade, quer como branqueamento daquilo que de facto ocupava a classe dirigente: enriquecer mais do que nunca. O que os poderosos faziam não era vergonha nenhuma, era o que se desejava para toda a sociedade. E talvez o método funcionasse, pelo menos durante mais algum tempo, se a avidez dos ricos não crescesse desproporcionadamente com as suas contas bancárias. A verdade é que não haveria crescimento que possibilitasse um aumento indefinido do fosso entre os rendimentos das diferentes classes sem condenar à pobreza a maioria das pessoas. A determinado momento, este universo em expansão teria de se contrair, mesmo que o que habitamos não esteja afinal destinado a fazê-lo.
Esse momento é agora. Mas os ricos não vão desistir facilmente do seu sonho americano. Daí terem as instituições financeiras perdido a máscara e terem passado à admoestação e ao ataque mais abertos do que nunca aos governos perdulários que gastaram dinheiro em utópicas sociedades de bem-estar. Que ilusões alimentaram aqueles governos insensatos nos seio dos seus eleitores? Que esperanças de desenvolvimento permitiram que se gerassem? Que mito era esse da segurança social? Erros, crendices, fraquezas, excesso de sentimentos.
Apesar de alguns gestos magnânimos (que provavelmente apenas foram sinais de um pouco de pânico), os ricos parecem dispostos a defender o seu direito natural a escaparem incólumes a qualquer crise. Com a cumplicidade dos governos, vão continuar a achar natural e a calar qualquer crítica ao desmesurado abismo entre os seus rendimentos e os de todos os outros. No que deles depender, 2012 será o ano Maia para o mundo inteiro excepto para eles mesmos. Se a democracia (ou, mais provável e assustadoramente, a rua) lho permitir.