A Zona de Interesse, de
Martin Amis, é um livro belíssimo. É talvez um dos melhores que li de Amis e no
entanto é também aquele onde o escritor se afasta mais do seu estilo pessoal,
onde abdica mais de ter um estilo. Isto dito, não se consegue esquecer que é
uma obra de arte feita a partir do pior dos episódios da história da humanidade
— e isso, que tem em si algo de Amis way,
não representa qualquer mal. Alguns editores recusaram-se a publicar o livro.
Ou são patetas ou não o leram. Ou ambas as condições são verdadeiras. Em
momento nenhum do romance o leitor consegue ou pode sentir-se autorizado a esquecer
o que foi o Holocausto, a relativizá-lo, banalizá-lo, achá-lo coisa de um
passado pitoresco a preto e branco como as histórias de piratas, onde vida e
morte, crimes e violações são décor. Não.
Sai-se do livro como se sai dos livros de História: horrorizado com a Alemanha
nazi. Sim, num momento ou noutro inquietamo-nos por estarmos a ter prazer
estético com uma história de amor num campo de concentração, uma história de
amor que se passa na zona dos carcereiros e dos carrascos. Mas isso não faz de
nós (nem do autor) aberrações morais. Apenas mostra que temos emoções e
predisposição para a beleza — e que tê-las não chega para fazer de nós boas
pessoas, estão ali os nazis para o evidenciar. (Na verdade, talvez o livro até tenha
outras sugestões, mas este aspecto não o posso explorar sem cair em revelações sobre
o enredo.)
terça-feira, 29 de setembro de 2015
A Zona de Interesse
sexta-feira, 25 de setembro de 2015
Nunca tinha pensado nisso
«Nunca tinha pensado nisso, mas os mosaicos da nossa
casa-de-banho, para onde jorravam clandestinas as minhas primeiras golfadas de
sémen, eram iguais aos da cozinha dela. Ainda que o chão da madrinha fosse
anterior, tenho a certeza de que não houve nenhuma intenção irónica da parte do
meu pai quando ele se ajoelhou no local onde colocaria a retrete a assentar com
ferramentas emprestadas aquelas tijoleiras que formavam um padrão geométrico trompe-l’oeil de degraus tridimensionais
capaz de nos baralhar o sentido da visão como se tivesse sido desenhado por
Escher. Estou convencido de que os mosaicos da nossa minúscula casa-de-banho
eram sobras da cozinha dela, doadas com aquele misto de condescendência feudal
e arrependimento avaro que lhe retorcia os lábios sempre que hesitava na
avaliação do seu próprio acto. A madrinha gostava de se imaginar próspera ao
ponto de se permitir uma prodigalidade indiferente, mas para sua infelicidade
ela não tinha como ignorar a falência da empresa e o seu próprio carácter, de
que não fazia parte a empatia. Daí aquela luta consigo mesma, visível e perenemente
fixada no esgar do rosto. O meu pai, pelo seu lado, desconhecia as virtudes catárticas
da ironia e nunca lhe ocorreriam pensamentos menos dignos ao sentar-se naquela sanita
com vista para o puzzle vertiginoso
que desenhava no chão a cerâmica esmolada.
A mim, sim, ocorria toda a espécie de pensamentos
insultuosos, excepto os que envolviam a líbido. Quando era uma presença regular
na minha vida, a madrinha não passara há muito os quarenta anos, mas para os
meus olhos era uma velha, e eu atribuía o volume e a firmeza aguda — bélica, de
obus alemão — dos seus grandes seios a soutiens
antiquados feitos de arame e renda, não a quaisquer qualidades eróticas do seu
próprio corpo.
A ironia — e também a epifania, chamemos-lhe assim —
era eu ter-me recordado da madrinha quando hospedado na Quinta de Pompeia
descobri que o quarto-de-banho da suite e a cozinha semi-rústica da casa
principal estavam recobertos com o mesmo tipo de mosaicos, possivelmente
fabricados na década em que eles eram modernos (a mesma da minha infância), tal
o afã tradicionalista e o desejo de genuinidade que tinham presidido à
reconstrução da Quinta.
Tenho uma propensão para reparar em mosaicos. Herdei
do meu pai o carácter introspectivo e o infame hábito de manter o olhar baixo, serviçal,
como as castas inferiores na sua congénita prontidão para aceitar o menosprezo,
ou como os judeus demasiado perplexos com o que lhes acontecia em Auschwitz
para sequer pensarem em reagir. Na selva das relações sociais, um olhar baixo é
um convite aos predadores. A menos agressiva ou hostil das criaturas sente o
apelo do sangue e uma força dominadora se à sua frente encontra um humilde de
cerviz curvada. Não há como negar razão ao aforismo perante estes factos: todos
os homens são maus, basta terem a sua oportunidade.»
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