quinta-feira, 25 de maio de 2023

«Traição»

[A propósito do derby Feira do Livro x Bola.]


Tinha ficado bloqueado naquela canção como um disco riscado. Ela gostava de o levar a passear pela rua enquanto ele a cantava baixinho e lhe apertava a mão. «Will you still need me, will you still feed me…». Tinham muito mais de sessenta e quatro (a esperança de vida em Portugal aumentara desde os Beatles), mas, sim, ela continuava a precisar dele e a alimentá-lo, agora de uma forma literal, a colherinhas de sopa.

Havia um recolher obrigatório — os tempos hoje eram assim — mas ela estava cansada de estar em casa, queria sentir a brisa do fim da tarde, passear de mão dada pela marginal. De modo que ignorou os avisos e fez o que lhe apetecia fazer.

As claques não tardariam a encher as ruas, evidentemente. Era dia de derby, e as autoridades em dias destes faziam questão de reservar o espaço público para os hunos. Faziam-no em nome da segurança e do bem-estar social. E ela tinha de concordar que de um certo ponto de vista era mais razoável para o cidadão comum ficar em casa, sequestrado pelo seu próprio Governo.

Mas não naquele dia. Celebravam cinquenta anos de casados, uma união precipitada no final dos anos sessenta, quando ele confundiu o desejo dela com paixão e ela, que pensara iniciar então uma vida de amor livre e flores no cabelo, se embeveceu com a ingenuidade do futuro marido e acedeu a dizer sim, mesmo que na altura não achasse que aquilo a comprometia de forma alguma. Cinquenta anos em que nem por um dia a banda sonora oficial daquela união improvável («will you still need me, will you still feed me…») deixou de se ouvir. Cinquenta anos era mais do que tinham o presidente e o primeiro-ministro, o par que o país escolhera, talvez num desfile de manequins.

O que era feito dos anciãos, por Deus?

Talvez já não houvesse muitos velhos para além de eles os dois. Aqueles que se lembrava de ter visto contavam-se pelos dedos das mãos. Na verdade não reparava muito no que havia à sua volta. Quando saía só lhe interessava ir sentar-se num banco a ver a foz e a acariciar a mão do marido, que o alzheimer felizmente cingira à faixa certa do álbum, mesmo que ela não apreciasse particularmente o arranjo meio pateta que o McCartney providenciara para a musiquinha.

Ao chegar ao fim da avenida, o tempo começou a mudar e ela arrependeu-se de não ter trazido os abrigos que tinha sempre pendurados no vestíbulo. Mas não se arrependeu de ter saído. Talvez chovesse (havia relâmpagos a cruzar o céu), mas o que era mais romântico do que um passeio à chuva? Com as vacinas haveriam de sobreviver à gripe e a maré viva era um espectáculo que ambos apreciavam.

Sim, estava verdadeiramente excitada com a decisão de ter saído apesar de tudo e todos pretenderem o contrário. Ainda havia alguém no país que fazia o que lhe apetecia e não o que era determinado. E Deus, no caso de existir tal singularidade lá em cima, bem poderia convocar as tempestades que quisesse. Se ela achava que lhe calhava bem um passeio até à foz, vinha até à foz. Feliz por ter o marido de sempre a cantarolar-lhe na sua vozinha querida a melhor declaração de amor.

Depois de se terem sentado a ver a espuma das ondas, a primeira claque passou nas costas deles, bastante desmotivada, quebrando apenas uma ou outra vitrina e incendiando escassos contentores de lixo. Meia hora mais tarde, escoltada pela polícia, veio a insolente claque adversária, com disciplina militar e sarcasmo rufião, entoando o seu conhecido cântico de guerra.

O marido voltou-se para trás, com um sorriso e um dedo hesitante de maestro no ar. Demorou algum tempo a apanhar a melodia, mas depois atacou-a a plenos pulmões — e ela, olhando-o desolada, soube pela primeira vez em cinquenta anos o que era a traição.

RAA 2012
[Publicado no número 10 da revista Fluirem Janeiro de 2023]

segunda-feira, 22 de maio de 2023

«Envelhecer»

The Times They Are a-Changin'
Bob Dylan

— As pessoas? As pessoas não recusam meter uma cunha quando vêem nela a oportunidade de compensarem as suas fracas aptidões e ultrapassarem os outros. As pessoas exigem prioridade e serviços públicos de excelência, mas só não fogem aos impostos se não puderem. As pessoas pagam e recebem luvas com a naturalidade de quem regateia roupas de contrafacção numa feira. As pessoas inscrevem-se em concursos de talentos e não se importam de os vencer apenas com os votos de familiares e amigos, pedindo-lhes até que telefonem para o número indicado ou cliquem na opção certa as vezes que forem necessárias, viciando os resultados… Que ética ou honestidade têm as pessoas? Que amor-próprio? Que carácter? Como poderiam as pessoas escolher dirigentes (em quem de resto votam tribalmente) que se distinguissem pela exigência, o rigor, a honra, os escrúpulos ou a dignidade?

De três em três semanas, fingindo não se sentir obrigada a nenhuma cadência, Lurdes ia buscar o pai ao lar e os dois almoçavam juntos num dos restaurantes da pequena cidade onde antes moravam em família. Aqueles almoços eram apenas mais um absurdo a somar a todos os outros que partilhavam. O pai mal falava, perdido no labirinto das memórias e estudando formas eficazes de abordar a comida no prato com talheres trémulos. Em geral ela também não falava, não mais do que o essencial para que a farsa funcionasse. Ajudava-o a escolher os pratos, repetindo em voz alta a lista que o empregado, dos que ainda tinham sido treinados para tratar cada mesa como um universo fechado, debitava num tom imperceptível para a dureza de ouvido do pai. Não se importava que os outros comensais a ouvissem falar demasiado alto, conhecia as prerrogativas de quem lidava com velhos e gostava de agir com este tipo de pragmatismo, que a fazia parecer decidida. Cortava-lhe a carne se notava que ele ia fracassar e fingir que não tinha fome e acrescentava-lhe legumes no prato e água no copo, não por afecto ou gentileza mas para que a refeição cumprisse pelo menos o propósito de o alimentar. Agia como cuidadora, não como filha. Só quando se deixava irritar por um comentário dele é que agia como filha, como a filha contestatária que fora na adolescência. Mas agora as suas réplicas eram frequentemente um eco das antigas declarações rudes do pai, e dar-se conta disso era um segundo motivo de irritação.

Naquele almoço, o pai, espreitando de viés as notícias no ecrã que ocupava grande parte da parede do outro lado da sala, balbuciara um qualquer lugar-comum sobre as pessoas não merecerem os dirigentes corruptos e oportunistas que tinham e ela pusera-se a falar de virtudes antiquadas, como o teria feito patriarcalmente o velho trinta anos antes, quando para ela eram os vícios e não as virtudes o que interessava. No rodapé passava o apelo ao televoto em mais um dos muitos concursos da actualidade.

— As pessoas não suportam quem se destaque delas por qualidades próprias. Temem tanto que o brilho de outros revele o desbotado delas como que o seu mundo se modifique devido a ideias sofisticadas. Votam apenas em quem demonstre ser banal e oportunista como elas mesmas…

Pareceu-lhe que a seguir ia culpar a democracia e por isso deteve-se. Já chegava de emulação do velho reaccionário que fora o seu pai quando tinha cinquenta anos e ela vinte. A sua própria voz, que por fisiologia era de tom grave, soava-lhe à do pai. Isso tinha-lhe sido útil na criação de uma identidade, quando precisou de o fazer, no final da adolescência. Não era uma mulher fraca fisicamente, mas era mulher, em todo o caso, e essa condição ter-lhe-ia pesado ainda mais se falasse com voz feminina e se se ouvisse esganiçada ou histérica quando tivesse de pôr os rapazes e os homens no seu lugar. Contra as expectativas, achou uma bênção aquela voz grossa, um pouco inesperada, que lhe viria a moldar — achava ela, quando se dava a esse tipo de introspecção autobiográfica — o tipo de sarcasmo em que se especializara.

Havia outras raparigas capazes de deter os avanços inoportunos e indesejados do sexo oposto, mas essas eram geralmente marias-rapaz, com músculos e instintos masculinos, briguentas e grosseiras, de cigarro no canto da boca e mangas arregaçadas à operário. O tipo de raparigas que os rapazes procuravam menos pelas formas do que pela suspeita, não raro acertada, de que toda aquela assertividade era espelho de uma emancipação precoce e se traduzia por isso num maior relaxamento moral e em permissividade.

Ela tomou cedo um rumo inverso no que se referia ao aspecto e às maneiras, exacerbando a sua feminilidade com poses e figurinos inspirados em filmes e revistas de alta-roda; ainda estereótipos, reconhecia, mas de um tipo que as mulheres comuns não se atreviam a experimentar. O quotidiano de uma mulher jovem com fracas posses numa cidade pequena não era, contudo, equivalente a uma passerelle em Cannes — com ombros nus, decotes atrevidos e caudas de cores fortes a varrer o tapete vermelho —, pelo que teve de personalizar um pouco a sua sofisticação, inspirando-se, de Inverno, nos russos que por aquela altura andava a ler e, de Verão, numa ideia de Lolita recatada — uma contradição nos termos, como ela sabia.

Armada de originalidade e literatura, Lurdes encarnou assim perante os olhares dos seus conterrâneos personagens estranhas ao meio e à época, numa atitude de sobranceria punk que era também um contraponto à sua natural timidez. Aqueles que, estupefactos, a viram regressar para o Natal do seu primeiro ano na universidade viram em simultâneo, na mesma pessoa, a primeira condessa russa a desembarcar pelo seu pé no cais da rodoviária, a primeira condessa russa tout court: de carne, osso e pêlo — pêlo no gorro, na gola ampla e nos debruados das luvas e do longo sobretudo vermelho que comprara numa feira de roupa vintage. Os mesmos tê-la-ão visto depois chegar para umas férias de Verão em que usava vestidos estampados, leves e coloridos, mas não curtos, em vez dos jeans que então constituíam o uniforme da juventude, e punha na cabeça lenços à anos 50, em diálogo com óculos da mesma época, ou chapéus em crochet de algodão ou em palha entrelaçada com abas de grande diâmetro. Nos lábios usava sempre um batom vermelho vivo, como um manifesto.

Um visual assim atraía as atenções, exactamente aquilo que um tímido dispensa, mas nela debatiam-se duas forças de igual valor: a noção da sua singularidade, que a fazia desejar uma vida à parte, e a necessidade de afirmar essa mesma singularidade. As roupas eram a um tempo bandeira e escudo, davam nas vistas e desencorajavam aproximações. Mas os excêntricos não evitam ser importunados se não tiverem outras armas de defesa e Lurdes tinha a sua voz, que aprendeu a usar de forma persuasiva, com vocabulário sofisticado e uma expressividade frontal acompanhada de um olhar directo — um conjunto de atributos e mecanismos capaz de surpreender e confundir os interlocutores. Quando falava, parecia uma pessoa mais velha e distante nas suas origens e vivências, fora do alcance da gente comum, dos homens dados ao piropo impertinente ou boçal. Tinha — ou construíra, talvez — algo de uma antiga majestade, que exigia tributo ou estimulava instintos também antigos de um temor serviçal. Não era que as roupas lhe escondessem as formas ou tirassem sensualidade, mas não havia muitos homens à vontade com aquele tipo de mulher: uma mulher estranha e, suspeitavam, duma exigência para a maioria inatingível. Pelo seu lado, os tarados e os violadores comuns preferiam geralmente vítimas com idiossincrasias mais convencionais.

Nos primeiros anos da juventude, as suas escolhas tornaram-na uma pessoa solitária, sem namorados. Na universidade fizera amigos (como sabem todos os seres originais, a fauna é mais diversificada nas cidades grandes e aumentam ali as possibilidades de almas aparentadas se encontrarem), mas na sua própria cidade não se interessava por ninguém e as pessoas em geral pagavam-lhe com o mesmo desinteresse. Na verdade, era um sentimento diferente do desinteresse: as pessoas tinham-lhe ressentimento, o desejo de vingança ou castigo que guardavam para os que desdenhavam a tribo, os auto-suficientes, os que lhes eram superiores.

Quando foi trabalhar e entrou nos quadros de uma empresa internacional de traduções, os colegas irritavam-se com a sua iniciativa e a sua competência e tentavam, com maior ou menor dissimulação, com maior ou menor sucesso, dificultar-lhe o trabalho, denegri-la. Invejavam-na, ainda que não lhe invejassem a dedicação e o esforço e não tencionassem aplicar a mesma energia e gastar o mesmo tempo a melhorar as traduções e a compreender melhor as necessidades dos clientes. Alguns odiavam-na, porque o desempenho dela, que não transparecia dificuldade ou aborrecimento, realçava a incompetência ou o desleixo deles. No dia em que, vencida, deixou voluntariamente o mundo da tradução, deixou também uma multidão de ex-colegas aliviada e um bom punhado de clientes reconhecidos e amigos para a vida. Não desejou melhor tributo.

*

Lurdes levava livros ao pai e costumava dizer, com mordacidade, que ele era actualmente a única pessoa que lia, no conjunto dos seus amigos e conhecidos. De repente, toda a gente começara a agir como se os livros fossem dispensáveis, excepto uns raros velhos que tinham tempo de sobra no dia-a-dia e precisavam de o preencher. Triste epitáfio para a grande criação da humanidade: os livros, outrora considerados instrumentos essenciais para a formação de um carácter e ilustração da sociedade, acabarem como passatempo de pessoas que já nem sequer podiam fazer projectos a partir deles. Os livros como coisa de anciãos, objectos nostálgicos e inúteis, ferramentas já sem uso prático fora das mãos de reformados saudosistas de profissões extintas, adereços de casas musealizadas em vida dos donos. A opção das pessoas neste tempo patético resumia-se, para ela, a ter um cérebro e tentar por todas as formas não o usar, não para mais do que publicar e ver “histórias” fúteis e patéticas no Instagram.

Ela e o pai nunca tinham sido próximos e levar-lhe livros podia ser, de certa maneira, uma forma de aumentar a distância. O velho voltara a ler quando deu por si naquele lar, mas não o tipo de livros que ela lhe passou a fornecer depois de ganhar coragem para a primeira visita, seis meses após o internamento. Ele gostava de livros de História da Segunda Guerra Mundial, biografias, romances rurais com morgados e fidalgos, um ou outro policial, e, ao pretender fazê-lo seguir um plano de leituras diferente, ela não evitara a condescendência. Não o fizera com uma intenção consciente, mas como uma vaga mostra de respeito pela dignidade do pai e com inevitável vício didáctico. Deixava de fora obras de entretenimento e levava-lhe livros respeitáveis do ponto de vista intelectual e alguns ensaios e romances que argumentavam contra as ideias dele. Os livros, deu-se conta mais tarde, eram o território onde ela se imaginara a travar uma guerra por procuração com o velho. Ele tinha-se manifestado feliz com a reeleição de Trump nos Estados Unidos e o «Sim» no segundo referendo sobre o Brexit, e Lurdes, já que tinha agora de conviver regularmente com o pai por ter um sentido do dever castrense (irónica herança genética), achou que podia experimentar mudar-lhe algumas ideias. Que maior demonstração de respeito e interesse poderia ele esperar dela?

No dia em que pela primeira vez entrou no quarto que o pai partilhava com um cavalheiro mais senil viu os seus livros primorosamente empilhados sobre a mesa-de-cabeceira e, no lado mais próximo da cama, uma revista de desafios de sudoku com o lápis pousado sobre um quadro incompleto. Queria aquilo dizer que os livros dela não lhe interessavam e o velho preferia jogos com números? Ou, pelo contrário, ele mantinha aquela pilha tão ordenada e livre de outras obras como se se tratasse de um monumento de consideração à filha?

Aberto sobre a cama, um tablóide congratulava-se em caixa alta com a reeleição de Boris Johnson no Reino Unido.

[Publicado na Grotta n.º 4 (2020)]

sábado, 20 de maio de 2023

A morte de Andy Rourke transportou-me para os eighties de uma forma que a M80 jamais lograria (até porque, na sua boçal interpretação de uma era, não passa The Smiths). Nessa doce evocação, recordei-me de um episódio que incluí há mais de uma década num romance falhado, que, justamente, fazia uma pueril revisitação dos anos oitenta. A banda sonora desse episódio era “Panic”, que por acaso nem é daquelas onde o baixo de Rourke mais se destaca, embora seja parte indissociável da identidade da música.


Hang the DJ

«Ele apareceu minutos depois de eu vomitar e eu beijei-o mesmo assim, meu Deus. Quando acordei no dia seguinte só queria fazer as malas rapidamente e ir-me embora de vez. Era horrível, de manhã ainda sentia na boca o sabor do vómito. Como pude sujeitar-nos àquilo? Hoje admito que até podia ser uma história divertida, mas na altura não a vivi assim.»

Rita falava com a secretária, que era também sua amiga. Raramente contava estas coisas a alguém, não as mencionava ao ex-marido, no tempo em que estiveram juntos. Era uma espécie de pudor mas não era um exclusivo seu. Estava habituada a ler sobre gente semelhante, pessoas que mais depressa se confessavam a um estranho do que à família ou àquele ou àquela com quem partilhavam a cama. Acontecia-lhe com alguma frequência abrir-se com um desconhecido numa festa, ou com o passageiro do lado numa viagem de comboio. Não sentia remorsos por isso, ou culpa. Ou talvez sentisse um pouco disso tudo, mas não ao ponto de pensar em fazer as coisas de forma diferente. Havia aspectos da sua vida interior que não considerava suficientemente ajustados ao património comum de uma relação afectiva. Eram os estranhos ou um psicanalista, mas a isso ela não queria sucumbir. De resto, não havia nada de tão importante que precisasse de ajuda profissional. Eram apenas memórias, acontecimentos, coisas que vivera numa vida distante, noutras vidas, e se às vezes precisava de falar sobre isso era precisamente para o sepultar de novo, o fazer descer à camada certa da sua geologia íntima. Havia por exemplo assuntos de que só falava com a mãe. E outros que discutia apenas com o marido — quando discutir ainda não equivalia àquela espécie de pugilato verbal em que se viriam a viciar.

A secretária não era uma estranha. Mas não havia nenhum estranho à mão quando Rita recebeu o e-mail. Não estava à espera daquilo e sentiu-se empolgada, talvez em excesso — certamente em excesso —, porque no minuto seguinte, ainda mal calculara as implicações daquela mensagem, já estava cheia de vontade de falar das coisas que ela despertava em si. Entre todas as evocações, havia aquela, que se tornava de novo presente e urgente.

«Tínhamos dezoito anos, talvez dezanove, se calhar vinte, e demorávamos metade das férias a chegar à fala», revelou Rita à secretária. «O ritual era o mesmo em cada Verão. Avistávamo-nos à distância e o coração acelerava. Duas semanas depois trocávamos umas palavras, quando nos cruzávamos, e mais tarde umas carícias fugazes, tímidas mas disfarçadas de ousadia. Na véspera de eu me ir embora, lançávamo-nos finalmente nos braços um do outro por escassas horas. A partida era um melodrama.

»Se calhar, devia ter falado a um psiquiatra quando pude. Talvez ainda vá a tempo. Creio que todas as minhas relações com homens foram em certa medida afectadas por aquela. Quase nem houve uma relação, mas não há momento em que eu não pense naquilo. Ponho-me a matutar: o que sei eu sobre o tipo? Alguma vez soube alguma coisa? Amei-o? Senti por ele algo mais do que por todos os rapazes e homens com quem flirtei? Caramba, não me consigo imaginar a ter sido casada com ele, a estar casada com ele. Eu não sei quem ele é, nunca soube. E no entanto ele teve uma enorme influência na minha vida. Frequentemente me perguntei onde estaria ele quando eu estava a fazer qualquer coisa que mo recordava. O que pensaria ele de mim quando aconteciam alterações na minha vida. Concordaria com as minhas opções? Orgulhar-se-ia dos meus progressos? Teria ciúmes dos meus namorados? Levantar-se-ia na igreja quando, no meu casamento, o padre perguntasse se alguém tinha alguma coisa contra? É incrível, mas pensei mesmo isso em frente ao altar. O padre a fazer a pergunta (nem suspeitava de que fosse verdade que eles perguntavam aquilo) e eu a rir-me para dentro e a imaginar o que aconteceria se ele se levantasse lá trás com o dedo erguido e aquele seu ar de Elvis-Presley-de-cigarro-pendurado-no-lábio e dissesse eu tenho coisas contra este casamento. E logo a seguir tive medo de que isso acontecesse, arrependi-me de o pensar, porque não sei o que faria. Não amava pouco o meu noivo, não era isso, mas um gesto daqueles, uma ousadia daquelas, uma cena das que até nos filmes são inverosímeis, se me acontecesse, alterava tudo, não responderia por mim. Quer dizer, se tivesse um minuto para pensar, claro que continuava com o casamento, era o que eu desejava, mas o problema estava na reacção instintiva. Talvez as mulheres não resistam mesmo a cavalos brancos e homens arrebatadores de brilhantina no cabelo, daqueles que aparecem in extremis para as salvar, mesmo quando elas não querem ser salvas nem têm nada de que precisem de ser salvas.

»Sim, também tive fantasias com ele. Toda a minha vida. Tirando o pescoço, as orelhas, ele nunca tocou uma zona erógena do meu corpo, a não ser por engano, de passagem, na confusão dos membros entrelaçados nas raras vezes que nos beijámos. Se lhe forem perguntar, caso ele viva, caso ele tenha existido de facto, não saberá sequer dizer como são as minhas mamas. O meu rabo. Ou como eram. Não houve nenhuma aproximação sexual entre nós. E no entanto à nossa volta fodia-se com relativa liberdade e frequência. Acho que estávamos demasiado ocupados a pensar em outras coisas para nos lembrarmos do sexo, de que ele era uma possibilidade. Claro que o sexo estava na nossa cabeça, como não haveria de estar? Eram os anos oitenta, tínhamos estado em Ibiza (eu tinha estado) e a sida por cá ainda não assustava muito ninguém. Mas já tínhamos trabalho que chegasse com a corte que nos fazíamos, com planear o passo seguinte, antecipá-lo, com entender as reacções do outro. Era uma espécie de xadrez em que, ainda que o ignorássemos, a vitória de um era a vitória do outro, mas ninguém queria arriscar um xeque.

»Não, também não sei com conhecimento de causa como era ele por baixo das roupas. Havia muita gente na piscina do Palácio naqueles anos, ele certamente conseguiria aceder a ela, se o desejasse, mas nunca esteve lá, nunca o vi. Também nunca tentei despi-lo, ou sequer meter as mãos por debaixo das suas roupas. Creio que estávamos, em suma, demasiado absorvidos a imaginarmo-nos perdidamente apaixonados, a ver as coisas exclusivamente pelo lado do amor, um amor idealizado. Platónico deve ser a definição certa.

»De maneira que as minhas fantasias têm pouca matéria com que trabalhar. E se calhar é essa a razão. É o seu carácter de personagem diáfana que lhe dá força: sei o nome dele, tenho memórias vagas daquele tempo — mais nada.

»Eu não bebia muito, não demasiado, mas naquele ano bebi mais do que devia. Tinha passado quase todo o Verão e não o vira uma única vez. Achei que me devia deixar de parvoíces e divertir-me como todos os outros, não se era jovem para sempre. Ou talvez tivesse bebido pela tristeza de não o ver. Sim, claro que foi esta a razão, quem quero enganar? Passavam os dias e ele não dava sinais de vida. Talvez tivesse emigrado, talvez tivesse morrido, quem sabia? Eu não tinha coragem de perguntar.

»Havia uma música dos Smiths onde se repetia “hang the DJ, hang the DJ” e era a minha última noite e eu entrei na pista da discoteca possuída pelas fúrias a berrar aquele curto refrão. Gostava da música, pelo que, de certo modo, era uma injustiça fazer coro de um slogan assim, mas suponho que retoricamente não me importava que se matasse alguém, fosse quem fosse. Não estava era preparada para descobrir que ele era o DJ naquela noite. Eu para ali aos berros a reclamar a morte do DJ, simultaneamente eufórica pela bebida e pela música e infeliz de amores, e o DJ era ele. Os nossos olhares cruzaram-se quando eu rodopiava, e o que vi a seguir a tomar consciência de que era ele foi o meu reflexo num dos espelhos da discoteca. Eu de boca aberta, desgrenhada, braços no ar, escanzelada, sem jeito para aquilo, apenas histérica e demasiado bebida — a pedir que se enforcasse o DJ.

»Corri para o sítio onde tinha o casaco, esvaziei pelo caminho um dos copos de vodka pousados na mesa, e parti, desabrida. Era uma humilhação mostrar-me tão frágil e descontrolada, expor-me assim. Sentia-me como se a minha mãe (não: o meu pai!) me tivesse descoberto a masturbar e a gemer debaixo dos lençóis, ou como se alguém tivesse de repente aberto a porta da casa de banho e uma multidão do lado de fora me visse diligentemente sentada na sanita, cuecas nos tornozelos. Talvez ele nem tivesse reparado em mim — tentei eu apaziguar-me —, mas isso era também triste, porque eu queria que ele me visse, era o que mais queria.

»O ar fresco da noite, que me dava na cara enquanto corria para o Palácio, não teve efeito sobre a embriaguez, a vodka começava a agir sobre tudo o que bebera antes. Cheguei ao portão indisposta, o mundo a girar para um lado e as minhas entranhas para o outro. Precisava de vomitar, mas não tinha coragem de enfiar os dedos na garganta. Sentei-me num dos bancos de pedra que ali havia e creio que adormeci, porque quando voltei a abrir os olhos era muito mais tarde do que imaginava e a Tita e o Mário estavam à minha volta. Vieram descobrir-me ali, depois de terem dado a noite por concluída, não disfarçando o ar divertido enquanto discutiam como haviam de lidar comigo.

»De imediato soube o que tinha de fazer: recompor-me. Mas não me empenhar tanto nisso que evidenciasse a impossibilidade intrínseca do esforço, caindo no ridículo dos bêbados quando tentam passar por gente sóbria. Acima de tudo, mostrar-me divertida com o meu próprio estado. Bebíamos para nos divertirmos, não era? Havia mesmo alguma competição à volta do acto, em certas noites, como se o sucesso das férias se medisse pelo número de vezes que tínhamos ficado embriagados. Todos os outros faziam esta contabilidade, ano após ano.

»A golfada veio quando já me convencera de que apaziguara o estômago. Um jacto só, que no último instante consegui direccionar para as sombras junto ao muro. Encostei-me ali, com a cabeça e a auto-estima para baixo, a escorrer os últimos fiozinhos, e a Tita veio pôr-me um braço pelas costas. Tinha a pele quente, estava ainda afogueada do calor na discoteca e do tanto que deve ter dançado e saltado — em contraste comigo, que estava fria e pálida.

»Os últimos do grupo chegaram nessa altura — e, para minha maior humilhação e susto, vinha entre eles o DJ que eu quisera ver enforcado. Era uma grande alegria e um pânico tremendo, tudo em simultâneo. Ele estava ali, e isso era bom, aquecia-me por dentro. Mas talvez me tivesse visto vomitar, depois de ter visto como eu era má a divertir-me. Oh, meu Deus, quão terrível era ser-se nova e incapaz de relações normais, com rapazes normais.

»Ter esvaziado o estômago deixou-me, de qualquer maneira, mais calma e confiante, e como a embriaguez não desaparecera consegui rir-me alto de tudo aquilo, vivendo a persona como ela devia ser vivida. Mais ou menos. Já vira todos os outros muitas vezes naquele papel, tinha suficiente conhecimento teórico.

»Devo ter parecido sem dúvida recobrada, porque eles começaram a debandar, a caminho do Palácio e dos seus quartos, com tossezinhas e risinhos abafados. Todos suspeitavam de mim e do DJ, e saírem de cena era a forma de se mostrarem cúmplices. A Tita perguntou-me discretamente se eu estava bem, se queria mesmo ficar ali em baixo. Eu pensei: claro que não — mas claro que sim.

»Ficámos sós. Ele não estava muito confortável (não o censuro), mas parecia empenhado naquilo. Um rapaz e uma rapariga num banco de pedra junto ao muro do Palácio, numa meia-luz de candeeiros que se apagavam à vez, quando as lâmpadas aqueciam demais. Havia morcegos em voos baixos e rasantes a desviarem-se de nós no último momento, quando o sonar lhes dizia que éramos maiores do que as suas goelas. Também uma lua cheia, a de Agosto, a última do Verão (Setembro era já no outro lado do país). Certamente grilos e pássaros, o estrídulo circular dos insectos como fundo musical e o gorjeio barroco do rouxinol em primeiro plano — a Natureza impelida a acasalar como num filme de Holywood. Uma noite romântica dessas.

»Na primeira oportunidade, beijei-o. Um beijo como deve ser, com a língua, e as mãos no pescoço. Depois fiquei a pensar na minha ousadia e no estúpida que tinha sido ao fazer aquilo. Era a última noite, eu partia no dia seguinte, e ele, como recordação daquele ano, ia ficar com o sabor do meu jantar regurgitado. Foi um cavalheiro, acariciou-me o rosto no fim do beijo, afastou-me os cabelos dos olhos e teve um olhar apaixonado — enquanto por dentro as suas tripas de certeza se contraíam e ele tentava fechar a válvula do esófago, ou lá onde ela está, sem que cá fora o mundo notasse, eu o notasse.

»Falou muito nessa noite. Talvez me tenha contado quem era, o que pensava, a que aspirava. Talvez me tenha dito coisas bonitas, elogiado o meu corte de cabelo, a cor da minha pele, dos meus olhos, o meu feitio romântico. Talvez isto ou nada disto, não sei dizer. Eu estava obcecada com a ideia horrenda de, em vez de uma troca clássica de fluidos, ter dado a provar os meus sucos gástricos a um homem que não odiava — e ter de viver depois disso. A embriaguez encarregou-se de me fazer esquecer tudo o que ele disse, mas deixou-me viva a memória do que eu tinha feito. Quando acordei no dia seguinte tinha um travo na boca e não era uma figura de estilo nem o sabor dos lábios dele, era a porcaria que tinha bebido e vomitado.

»Quando penso por que me acompanhou aquele homem ou rapaz toda a vida, tão presente como a minha sombra, pergunto-me se esta é uma sina que partilho com certos assassinos (não nos abandona o fantasma daqueles a quem fazemos mal, diz-se). A resposta é não. Pese o final triste (ou cómico, se quiseres), a memória dele é um prazer secreto de que não preciso de abdicar nunca. Que não me desilude. Por isso às vezes penso que quero ser enterrada ali. Quero que ele apareça, como sempre, na minha última noite. Na longa noite.»

segunda-feira, 8 de maio de 2023

Passou um corredor com um aparelho electrónico fixado a um braço e uma pequena mochila nas costas de onde saía um tubo transparente que, depois de se elevar uns centímetros, contornava o pescoço e perdia-se algures junto à boca, supus. Não vi que outros tubos o algaliassem, e só por isso não achei tratar-se de um astronauta em treino para Marte.

segunda-feira, 1 de maio de 2023

As boas tardes

Cruzam-se comigo na beira-rio algumas dezenas de pessoas e nem uma vira a cabeça para dar as boas tardes. Devo dizer que também não tomo a iniciativa — regressei a Portugal e ao meu modo bisonho.
Reflicto sobre este contraste — depois de duas semanas numa ilha onde, por reacção ou sugestão, cumprimentei certamente mais gente e mais vezes do que em toda a década anterior — quando a mulher do casal desconhecido que se levanta de um banco próximo diz «boa tarde» ao passar e admoesta o filho por não o ter feito. Aquilo, que tinha sido parte da banda sonora dos dias anteriores, soa aqui bizarro.

Um autóctone da ilha anunciara, sorridente, que lá as pessoas eram amistosas, davam sempre as boas tardes. O cliché, de que tantas terras em Portugal se reivindicam titulares e por vezes sem fundamento, era ali uma realidade, vim a descobrir. Os ilhéus nem sempre são os primeiros a saudar, notem, mas quando nos sentimos impelidos a testá-los (e sentimos muitas vezes), reagem sem hesitações e com um cumprimento claro. Não raro, vemo-los de cara fechada, até um pouco hostil, mas se dizemos «olá» obtemos resposta pronta e descobrimos um rosto a abrir-se para a simpatia como uma flor para o sol, a voz amistosa em contraste com a animosidade que suspeitávamos na expressão.

Os portugueses de visita à ilha são também exemplos de jovialidade, simpáticos da maneira que toda a gente é natural ou esforçadamente simpática quando vai de férias, em particular para destinos exóticos. Mas observar o grande espectáculo diário da troca de cumprimentos pode induzir a um espírito ocioso alucinações perturbadas como uma febre tropical, como se um remorso retroactivo de colonizador receasse ver naquela jovialidade tuga uma condescendência remanescente de colono e temesse encontrar na amistosidade natural dos nativos uma herança de brandura forçada, contrária à esperada e justa rebelião. E então o meditabundo acolhe como adequada e sobretudo redentora a fúria da cidadã da ilha que recusa aos brados e insultos ver o seu quintal da frente transformado em lugar de inversão de marcha automóvel, mesmo que nada ali fizesse supor tratar-se de um quintal.