domingo, 28 de novembro de 2021

Identidade

Estive uma hora e picos numa conversa onde a voz (o timbre, a pronúncia, a expressão) de um dos interlocutores me era profundamente familiar, mas não conseguia perceber porquê. Estudei o rosto da pessoa diversas vezes, todos os pormenores que a máscara e a boina deixavam ver dele, mas não encontrei ali nada de reconhecível. Estudei-lhe a compleição, e parecia apenas comum, anónima. De resto, ele tinha dito a certa altura que era (genericamente, percebo agora) de uma terra onde eu não conheço ninguém e pus ali de parte as inquirições mentais. Fiquei-me apenas pela ideia de que a voz (e a linguagem corporal, na verdade) me fazia lembrar alguém, de eras passadas da minha vida ou possivelmente da TV ou do cinema.

Depois das despedidas, já eu encerrara o assunto, um amigo que tinha estado em cogitações semelhantes mas a propósito do nome da pessoa, fez-me perguntas que levaram a associações e, em dois ou três passos como num silogismo, cheguei à conclusão: era o T. de S.!

Camuflados por máscaras, cãs e décadas, estivéramos longo tempo numa farsa mal ensaiada, a fingir que dizíamos coisas novas para o outro, com uma cortesia de estranhos, quando podíamos ter estado a perguntarmo-nos mutuamente pela vida e a família, a rirmo-nos outra vez do que já lá vai e a reconfirmar esta ou aquela recordação que se nos turvou ou se vai perdendo.

Teria isto acontecido sem máscaras, ou envelhecer é esta coisa, sermos portadores de uma voz que pertenceu a outra pessoa, podermos ser vistos pelos outros como alguém sem ligações ao indivíduo que fomos?

Pergunto-me se ele passou pela mesma dúvida ou se nunca a teve e sustentou a farsa por uma questão de urbanidade, de resposta proporcional à minha frieza misantropa ou snob. Ter-me-á reconhecido e achado afectado ou está agora a registar no seu diário frases ponderosas ou absurdas como as minhas sobre o passar do tempo e esta coisa estranha que é a vida e nós nela?

Caldeirada de cogumelos

Conversas sobre o assunto ou uma pesquisa na Internet revelam que os nomes dos cogumelos, além de múltiplos, são intermutáveis. O que num sítio é conhecido por frade, noutro é conhecido por tortulho, e o que eu conheço por tortulho conhecem outros como míscaro, que por sua vez era o meu tortulho. Percebo agora porque é que na minha família só se comiam frades e, mais raramente, tortulhos (dos nossos). Comia-se o que se conhecia directamente, por já alguém ter comido e sobrevivido para o testemunhar, não o que outros dissessem que era comestível. Porque sendo os nomes tão intermutáveis, a possibilidade de alguém estar a chamar um nome comestível a um cogumelo venenoso não era de excluir. Lá na aldeia havia quem comesse também sanchas e míscaros (que outros chamam de tortulhos) e tudo indica que sobreviviam, porque no dia seguinte víamo-los na rua. Por vezes eu e os meus irmãos apanhávamos o que conhecíamos por míscaros e sanchas (que nunca levávamos para casa) e dávamo-los a rapaziada em cujas casas sabíamos que se comiam míscaros e sanchas. Não me recordo que alguém no bairro tivesse morrido intoxicado pela nossa dádiva, mas é verdade que a medicina e os registos de óbitos não eram o que são hoje.
Pelo sim, pelo não, em minha casa a certa altura já só se comia frades. E cozinhados sempre de forma rigorosamente alquímica, com uma colher de prata dentro do tacho.

sábado, 27 de novembro de 2021

Romances imperfeitos

 


Está a começar a ver a luz do dia o meu Villa Juliana, numa edição da sempre generosa Língua Morta.

Terminado em Abril de 2019, é mais um dos meus romances imperfeitos, pistas para o que podiam ser e nunca serão, mas que (acredito nisso, senão não o editava) podem ainda assim proporcionar algum deleite estético a quem se dispuser a lê-los.

O romance divide-se em quatro livros, ou andamentos, ou capítulos, ou partes, nem sei bem, com certa autonomia entre si, mas que formam um todo com diferentes perspectivas e contributos para as histórias e a caracterização das personagens que as viveram. Foi feito a partir do prazer de narrar, do prazer da linguagem, do prazer de contar pequenos episódios e sondar as grandes histórias, do prazer ou do inelutável ímpeto de explorar a introspecção própria e a alheia.

Villa Juliana é o quarto na cronologia das edições e o quinto que escrevi. Permanecem inéditos o desditoso Aranda, sucessor do primogénito Hotel do Norte, e Salvar o Mundo, recém-nascido, com título ávido mas menor ambição do que a do apolíneo protagonista da Bíblia, cujo nascimento se celebra trocando prendas daqui a um mês. Por falar em prendas… façam o favor de oferecer este Villa Juliana apenas a quem mostre propensão para o ler.

Preâmbulo para uma conversa a propósito da exposição “48 HORAS”


«Quando gentilmente me convidaram para participar numa conversa à volta do tema desta exposição, o meu primeiro impulso foi declinar, gentilmente, o convite. Isto porque não sou especialista em nenhum dos tópicos da exposição: a raça maronesa, o transporte de mercadorias no século dezanove, a águas das Pedras ou mesmo as Termas das Pedras.

Contudo, deram-me três argumentos para aceitar o convite: nasci e cresci nas Pedras Salgadas, sou filho de um homem que dedicou a maior parte da sua vida àquela terra — e que hoje está de certa maneira ele próprio musealizado no Pedras Experience — e um dos romances que publiquei foi em parte construído a partir de memórias e experiências das Pedras Salgadas em três épocas distintas.

Aparentemente, isto qualifica-me para estar aqui hoje. Isto e talvez o facto de, durante as minhas primeiras duas décadas de vida, ter bebido tantos litros de água das Pedras que a partir de certa altura o meu organismo deixou de tolerar qualquer bebida com gás. Sou um pouco como o Obélix: caí em pequeno dentro do caldeirão mágico da água das Pedras e deixei por isso de ter direito a bebê-la. Infelizmente, tal incidente não me deu forças sobre-humanas como ao Obélix.

Depois de aceitar o convite, pensei um pouco no tema da exposição, nesta viagem de 48 horas entre Pedras Salgadas e a Régua, e a primeira imagem que me veio à memória foi precisamente de quadrúpedes, mas de uma outra espécie animal. Nem foi bem uma imagem, mas toda uma experiência sinestésica, que incluiu visão, cheiro e, antes de tudo, som. Essa memória evocou, não o gado maronês, mas cavalos. Cavalos que faziam a mesma viagem entre a Régua e as Pedras, só que em vez de puxarem carroças tinham o privilégio de viajar de comboio. (Comboio esse, já agora, movido a cavalos-vapor, num comboio ainda a vapor.)

A lembrança que mencionei retrata um momento especial de cada ano na história de Pedras Salgadas: a temporada do Concurso Hípico, um dos muitos elementos que singularizavam aquele lugar no Verão. Os cavalos que participariam nas provas, tantos deles das forças armadas, chegavam às Pedras na sua maioria de comboio e faziam o último troço do percurso, a partir da estação, pela estrada de paralelos que passava em frente à casa onde cresci. Quando as crianças do bairro começavam a ouvir ao longe o som dos cascos ou das ferraduras no granito da calçada, ninguém as podia deter, saíam todas para a rua a ver passar o desfile. Durante largos minutos, passavam, levados pela arreata, algumas dezenas de cavalos, mais altos, esbeltos e briosos do que os animais que estávamos acostumados a ver. Largavam poios como o gado que diariamente usava aquela estrada (daí o cheiro na memória), mas até a fragrância desses poios era ou parecia-nos diferente de tudo o que estávamos habituados a cheirar. Quando aquele festival dos sentidos (visão, som e cheiro) regressava para um desfile na direcção oposta, depois de terminados os dias do Concurso Hípico, uma pequena melancolia toldava o fascínio com que saíamos à rua outra vez.

E isto, esta melancolia, remete-me para a mística nostálgica de Pedras Salgadas. Talvez todas as terras tenham os seus mitos, as suas velhas glórias, mas nem todas serão territórios de fronteira, ou melhor, pontes entre diferentes mundos sociais e diferentes tempos históricos, como as minhas Pedras Salgadas foram e continuam a ser. Naquela aldeia, hoje vila, vivíamos nos anos setenta e oitenta do século XX numa espécie de portal onde o espaço-tempo se baralhava. Era um mundo rural em volta de um território murado (o Parque das Termas) onde no Verão se respirava urbanidade, trazida pelos hóspedes dos hotéis, oriundos sobretudo de famílias da burguesia do Porto. Em simultâneo, pairava em permanência sobre aquela terra a memória do período áureo da «mais bela estância termal portuguesa», como era chamada nas primeiras décadas do século XX, quando era visitada também pela aristocracia.

A existência nas Pedras, sobretudo económica, era definida em função das suas termas, e por isso as sagas familiares eram (e são) também marcadas pela memória das Termas. As famílias que ali moravam, as sucessivas gerações, na sua maioria serviam a Empresa das Águas e as Termas, nas mais diferentes profissões. Daí que, àquilo que testemunhávamos com os nossos olhos, estivéssemos sempre a adicionar as histórias e as memórias dos mais velhos. Não tinham sido vidas fáceis, as deles, mas o glamour do Parque e dos seus hotéis de certa maneira amenizava o esforço de quem muito trabalhara para pouco ter. E o convívio de perto com figuras que pareciam saídas de romances ou filmes trazia, sobretudo a posteriori, uma pequena recompensa que se somava ao salário ou à reforma. A dureza dos tempos era de certa forma relegada pelas histórias das Termas e das Águas de que cada um se fazia contador.

A singularidade das Pedras Salgadas teve um outro momento especial no pós 25 de Abril, quando uma vaga de cosmopolitismo cobriu a povoação. Como em vários outros locais do país, os hotéis das Termas foram requisitados para acolher pessoas vindas das ex-colónias, aqueles a quem na altura se chamou «retornados». Durante esse período, mais uma vez o território rural das aldeias em volta dos muros do Parque foi posto em contacto com um universo social novo, mais exótico, que lentamente se entronizou, acrescentando mundo à sociedade local.

Foram estas distintas épocas e dinâmicas sociais que procurei retratar no romance Hotel do Norte, que foi buscar o título ao nome de uns dos hotéis que existiam nas Termas de Pedras Salgadas, entretanto demolido. No romance, como na vida real, as Termas são uma fonte permanente de mistério e investigação histórica, uma fonte de arqueologia. Quem habita ou habitou naquela terra está ou esteve imerso em história e arqueologia. Até no sentido técnico do termo, porque, a partir de certa altura, com a decadência do turismo termal e o desinteresse das sucessivas empresas concessionárias, vários edifícios e espaços das Termas ficaram acessíveis à visita e ao saque de quem por ali vivia. Inúmeras das minhas memórias e fantasias de criança têm como origem espaços e objectos concretos das Termas, retirados das suas sobrepostas camadas geológicas. Cada um dos habitantes das Pedras tem dentro de si (e alguns dentro das suas casas) o seu próprio museu, o seu próprio Pedras Experience, repleto de objectos e memorabilia.

Ainda hoje, quando visito as Pedras, visito não apenas a família (quase toda ela ligada à empresa das Águas), mas aquele mundo híbrido, composto, que continua a concentrar em si, nos vestígios que ainda restam, uma multiplicidade de tempos históricos e vivências sociais. Há, de resto, um turismo de nostalgia à volta das Pedras Salgadas, não totalmente aproveitado. Quando as empresas que vão explorando o filão da água procedem à demolição de edifícios, estão a destruir e a desbaratar um património. Todos gostavam que o turismo fosse ali plenamente reabilitado, para felicidade e benefício económico geral, mas é para mim um erro que isso se faça terraplanando o que existe, mesmo que se construam no seu lugar maravilhas. Na ausência de recuperação, os edifícios deviam pelo menos ser consolidados e mantidos como testemunhos observáveis de uma era. Roma não seria Roma sem as suas ruínas.

Termino esta evocação, mas não sem fazer uma referência à raça maronesa, que também marcou a minha época de formação nas Pedras Salgadas. A minha casa ficava entre o Parque das Termas e a casa de um lavrador. De um lado, eu tinha a sofisticação e o ócio do universo balnear; do outro, a dureza e a força telúrica do mundo rural. De um lado, citando um dos textos disponíveis na exposição, estava a obra de «homens de espírito empreendedor, de largas vistas e grandes aspirações» e, do outro, espécimes da «raça maronesa, exemplo de rusticidade, resiliência e mansidão». Essas duas influências construíram também a minha identidade cultural. Em certos dias, as minhas aventuras levavam-me a descobrir os segredos do Parque; noutros, montava em carros puxados por juntas de bois iguais aos que se vêm nas fotos da exposição — e que chiavam estridentemente na subida para o combarro onde se descarregava o milho. Houve dias ainda, há que lembrá-lo também, que apanhei bosta fresca daquelas vacas maronesas para isolar a porta do forno onde a vizinha cozia pão. E posso dizer, em abono da raça, que as broas saíam saborosas.»

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Preâmbulo para uma conversa a propósito da exposição “48 HORAS”, que documenta o transporte da água das Pedras, em carros de bois, até à estação de comboios do Peso da Régua, no final do século XIX e principio do século XX. Organização: Museu Pedras Experience | Projecto Terra Maronesa.

Galeria de Artes do Auditório Municipal do Peso da Régua, 26/11/2021



segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Alucinação outonal

Regressando de uma caminhada outonal, resolvo, imprudentemente, atravessar a cidade para ir comprar uns víveres antes de subir ao castelo. Cruzo-me aqui e ali com pares ou pequenos bandos de seres meio cambaleantes, maltrapilhos, cabelos escorridos, roupas molhadas, cheiro intenso. Mudo de passeio. E logo a seguir mudo de rua, quando vejo ao fundo um bando maior. Intuindo de onde vêm, recalculo o trajecto, como um GPS antigo quando lhe trocamos as voltas. Mas não adianta mudar o percurso, não param de vir, por todos os lados, e penso num ataque de zombies.
Ao chegar ao centro, a que faço uma tangente arriscada para não ter de dar uma volta ainda maior, vejo no meio da praça o grosso da seita, dezenas de espécimes muito juntinhos, aos pulinhos, como a “ninhada” num qualquer filme de série Z, entoando mantras. Quando lhes passo à ilharga, como que obedecendo a uma ordem mental do titereiro que os comanda e que me deve ter cheirado, uma ala inteira deles, cor uniforme, começa a descer na minha direcção, qual claque saltitante e urrante pastoreada pela polícia em dia de derby. Num primeiro momento fico apenas fascinado com aquela mole que vive e age em uníssono, como se partilhasse o mesmo cérebro. Depois, ainda dentro do meu filme de zombies, penso que, ao avançarem tão juntinhos, só me facilitam a vida e dispensam a mira — assim me tivesse lembrado de trazer a HK21 e duas ou três fitas de munições.
Continuo para o supermercado pensando que é melhor que na caixa não impliquem comigo por levar a fruta sem sacos de plástico.
Quando finalmente saio do transe, reconheço naquelas figuras que vagueiam e agora ultrapasso estudantes a regressar da latada. Alguns levam, não o ar ufano de quem venceu uma prova de iniciação, mas o ar indiferente ou entediado de quem cumpriu uma tarefa burocrática.

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Against All Odds

Formam um par e andam comigo há uns bons vinte e cinco anos. Juntos, somos uma fidelíssima trindade, um threesome bem aconchegado nas noites de Inverno. Hoje uma perdeu-se no caminho de ida. Só dei pela sua falta quando me preparava para regressar, horas mais tarde.
Pressenti a mágoa da perda, mas não perdi logo a esperança. Era agora de noite e era remota a hipótese de não ter sido entretanto tomada por ninguém, remota a hipótese de ter conseguido esconder-se de forma suficientemente eficaz para que a não agarrassem e fizessem sabe-se lá o quê com ela ou não a deitassem numa valeta por a acharem sem préstimo. Ainda assim, retrocedi sobre cada um dos meus passos o melhor que pude e me lembrava, de candeia na mão nua a iluminar o caminho. Quase no fim do trajecto, ou seja, quase no início do trajecto, lá estava ela, caída e espezinhada numa rua de muito movimento, com marcas de lhe terem passado com o carro por cima — mas viva. Julgo que levantou um dedito quando eu hesitava quanto ao lugar onde tinha atravessado a rua e por isso a vi.
Vinte e cinco anos depois, o par não se desfez senão por umas horas e continuamos por isso a ser um triângulo amoroso, as minhas luvas e eu. As minhas duas luvas e eu. Sem sentimentos de traição, ciúme ou amor não correspondido — e, contra todas as probabilidades, sem a mágoa da perda. Não vale a pena invocar Phil Collins, afinal.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Memorabilia

Da revista Bravo, escrita numa língua que não entendíamos mas que ilustrava algo que intuíamos, com o cheiro singular das páginas da revista Bravo, tipograficamente diferente do cheiro de tudo o que se imprimia em Portugal, respeitável ou furtivo, um poster dos U2 antes da queda, outro dos Bon Jovi (para haver nisto alguma coisa de que ter vergonha), um fio de utilidade esquecida pendurado de um prego, adereço esquecido ou falhado, por baixo uma cama de ferro e outra de madeira, duas camas desirmanadas que ainda há pouco eram duas camas para quatro irmãos, uma cabeceira de cama onde bem se vê que faltam barras verticais de ferro por onde se escapa a imaginação, uma parede que é um palimpsesto familiar, tribal, estratos geológicos de tinta e eras descascando, um quadro sobrante de outra geração com uma nesga de mar vista através das dunas (rimando com GNR, 1985, e férias em Setembro sem dinheiro), uma paisagem nevada da Suíça que não se vê na imagem como tantas outras coisas que não se vêem na imagem e no entanto estão lá, um verde-escuro na parede a escurecer inapelável e redundantemente com manchas da humidade e do tempo, uma coberta de cama florida que ainda aguentará uns Invernos a inteiriçar-se com a geada que entra pelas frinchas sem perder pétalas, uma fronha de almofada que irá na bagagem das primeiras mudanças (e duas fronhas das outras, que, miseráveis, nos largarão na primeira oportunidade), entre as camas uma mesinha de cabeceira e sobre ela um leitor de cassetes, uma cassete com os nossos primeiros sucessos e um livro, quem diria, sobre a barra do fundo da cama de madeira todo o guarda-roupa de um dos dois (travel light), as camas e os pés que marcam o ritmo assentes num soalho ventilado, nós da madeira já sem nós, buracos por onde espreitam da cave, boquiabertos (de pasmo, de fome, de raiva), os futuros brilhantes por consumar, duas guitarras, emprestadas, pois claro, por mecenas generosos, em que, com a ânsia de começar e de chegar, perdemos a pele dos dedos e deixámos marcas de sangue, duas guitarras onde rigorosos trabalhos arqueológicos ou de medicina-legal também encontrarão suor e lágrimas, suor e lágrimas e tudo isto e nós os dois, espelhados, a olhar o destino de frente ou a enfrentá-lo de olhos fechados, tu e eu, penteados e tudo no ponto — a ensaiar para o Live Aid.



segunda-feira, 8 de novembro de 2021

"Olhò Toino Escadeirado"

Liguei a televisão para ver a final do English Open entre John Higgins e Neil Robertson e durante a sessão passei pelos canais da RTP. No primeiro, num programa chamado “O Pimba É Nosso”, Quim Barreiros e uma senhora cujo nome não fixei discordavam sobre a possibilidade de trocarem mutuamente de gaitas. No segundo, num festival chamado FNAC Live Lisboa 2021, tocava um grupo cuja estética visual e musical me fez recordar gloriosos bailes no pós-25 de Abril com grupos como o 25.ª Hora. Ainda fiquei à espera de ouvir a então omnipresente “Nho Antone Escaderode” que a todos soava como “Olhò Toino Escadeirado”, mas o programa, ainda que a noite da RTP parecesse uma viagem no tempo e uma visita à barraca das cassetes de feira, não aceitava discos pedidos telepaticamente, e por isso, depois de ver como a classe média urbana do século XXI se encontrou com os foliões de um Carnaval de sociedade recreativa dos anos setenta, numa espécie de vitória de Pirro do proletariado, lá me resignei a ir ver como Higgins perdia.

domingo, 7 de novembro de 2021

O casaco de angorá

Todos os parques que se prezem têm figuras mitológicas. Aquele que atravesso para ir trabalhar ou quando resolvo correr junto ao rio também as tem e uma delas está viva, cruzamo-nos com certa frequência, até já a mencionei em dois ou três destes textinhos. Faz-se geralmente acompanhar de um aparelho de música dentro de um saco de plástico que debita êxitos melancólicos dos setenta e oitenta ou, talvez quando o humor está mais espevitado, música de baile brejeira. O volume também varia com os dias ou os humores, por vezes elevado a uma agressividade punk que não tem correspondência no rosto do portador. Hoje estava baixinho, surpreendentemente baixinho, e não foi a primeira coisa em que reparei.
Olhava um casaco à minha frente que, sendo mais rosa do que púrpura, ainda assim me fez pensar no casaco de angorá de Agnes, a mãe alcoólica de Shuggie Bain, protagonista do livro homónimo de Douglas Stuart sobre uma infância dura em Glasgow. Uma cabeça miúda encostava-se ao ombro daquele casaco e o par ia de mãos dadas, carinhosamente. Foi quando os ultrapassei que ouvi a música e vi o saco.
Era uma imagem inesperada, o habitante solitário e melancólico do parque — talvez, como Shuggie, vítima de bullying na infância, se já tinha então aqueles modos tímidos e invulgares — de mão dada com uma mulher vestida de angorá. A literatura a irromper pela vida real.
A mulher não tinha idade para ser mãe do homem da música e não tinha ar de alcoólica, mas a ternura recíproca surgiu-me ali surpreendente e redentora (e efémera) como em certas passagens de Shuggie Bain.

sábado, 6 de novembro de 2021

Anjos nada tronchos

Vejo alguns vídeos do novo disco de Caetano Veloso e ocorre-me que há neles uma certa afinidade com vídeos dos dois últimos álbuns de David Bowie, The Next Day e Blackstar. Não me tomem por agoirento ou mórbido, não falo de pressentimentos ou presságios. O que eu vejo, pelo contrário, é dois génios a quem a idade ou a fragilidade não impedem o ímpeto criativo e inovador, não impedem, enfim, a criação de obras geniais. Dois génios que também não temem expor as marcas do tempo ou da fragilidade, no rosto ou na voz ou nos gestos dos videoclips, antes os adicionam ao material com que moldam a obra, como o elemento que ali se ajusta para conseguir uma nova e bela harmonia na soma das partes. Génios que não se limitam a viver o seu tempo e os tempos, mas antes marcam o tempo, com a forma como absorvem e fundem influências e digerem o zeitgeist, sintetizando algo novo e contundente.
Os discos de David Bowie soam noir e a espaços o de Caetano também, mas, sendo brasileiro, ele encontra sempre lugar para o samba, mesmo numa música como “Anjos Tronchos” (nem que seja por dois ou três preciosos e significativos segundos — aos 2´57´´).

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

A careta de Evelyn Waugh

Kingsley Amis não desiludiu: A Sorte de Jim é a sátira hilariante que esperava. As últimas 20 ou 30 páginas são magistrais. Senti-me particularmente redimido quando o protagonista — que adopta ao longo do livro, de acordo com as situações, uma vasta colecção de esgares e expressões burlescas — ensaia «a sua careta de Evelyn Waugh». Kingsley Amis a usar Evelyn Waugh como careta é simplesmente perfeito. A mera evocação até me faz suportar a musiqueta que, vinda em ondas de algum bailarico de finados, me tenta agredir os ouvidos através da janela, como os pássaros de Hitchcock.

Problemas do teatro em Portugal

Raramente falo aqui de assuntos da minha área profissional, mas desta vez reincido, por mera irritação. O encenador Jorge Silva Melo (que também aprecio, já agora) tem-se queixado com frequência das curtas digressões dos espectáculos em Portugal, e isso é triste, de facto. Mas o lamento vem de quem em simultâneo assinala que, de Agosto até à data, andou por onze teatros (onze!). Não é assim tão pouco, acreditem. Talvez por isso o foco desse post do encenador, que podia apenas ter celebrado o feito, se virasse para outra questão: a magna desfaçatez de «apenas» quatro directores (que identifica) desses onze teatros terem ido falar com a companhia (ou com ele, não sei bem). «Vergonha», «falta de respeito» foram os expectáveis (e talvez esperados) comentários ao post.

Ora, eu pensava que o respeito se manifestava de muitas maneiras possíveis e que as hierarquias e embaixadas diplomáticas se reservavam para rituais protocolares. Há alguma falta de dignidade em ser uma companhia acolhida por empenhados técnicos e produtores — e pelo público de uma cidade? Está o director de um teatro, para além das suas específicas funções profissionais, imbuído de alguma dignidade que os seus colegas na equipa não tenham?

Já lá vai o tempo em que a chegada à província de uma companhia ou de uma diva de Lisboa era acolhida pelas autoridades civis, eclesiásticas e a fanfarra dos bombeiros, se não houvesse regimento militar nas proximidades. Os verdadeiros problemas do teatro em Portugal são mais prosaicos e contemporâneos.