Estive uma hora e picos numa conversa onde a voz (o timbre, a pronúncia, a expressão) de um dos interlocutores me era profundamente familiar, mas não conseguia perceber porquê. Estudei o rosto da pessoa diversas vezes, todos os pormenores que a máscara e a boina deixavam ver dele, mas não encontrei ali nada de reconhecível. Estudei-lhe a compleição, e parecia apenas comum, anónima. De resto, ele tinha dito a certa altura que era (genericamente, percebo agora) de uma terra onde eu não conheço ninguém e pus ali de parte as inquirições mentais. Fiquei-me apenas pela ideia de que a voz (e a linguagem corporal, na verdade) me fazia lembrar alguém, de eras passadas da minha vida ou possivelmente da TV ou do cinema.
Depois das despedidas, já eu encerrara o assunto, um amigo que tinha estado em cogitações semelhantes mas a propósito do nome da pessoa, fez-me perguntas que levaram a associações e, em dois ou três passos como num silogismo, cheguei à conclusão: era o T. de S.!
Camuflados por máscaras, cãs e décadas, estivéramos longo tempo numa farsa mal ensaiada, a fingir que dizíamos coisas novas para o outro, com uma cortesia de estranhos, quando podíamos ter estado a perguntarmo-nos mutuamente pela vida e a família, a rirmo-nos outra vez do que já lá vai e a reconfirmar esta ou aquela recordação que se nos turvou ou se vai perdendo.
Teria isto acontecido sem máscaras, ou envelhecer é esta coisa, sermos portadores de uma voz que pertenceu a outra pessoa, podermos ser vistos pelos outros como alguém sem ligações ao indivíduo que fomos?
Pergunto-me se ele passou pela mesma dúvida ou se nunca a teve e sustentou a farsa por uma questão de urbanidade, de resposta proporcional à minha frieza misantropa ou snob. Ter-me-á reconhecido e achado afectado ou está agora a registar no seu diário frases ponderosas ou absurdas como as minhas sobre o passar do tempo e esta coisa estranha que é a vida e nós nela?
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