segunda-feira, 27 de junho de 2022

Encontros imediatos de terceiro grau

Ver os abutres e os grifos no Salto del Gitano é um espectáculo fascinante mas não surpreendente, porque esperado; visitamos o sítio com esse objectivo. Um grupo de cegonhas apanhado pela visão periférica a planar à distância de um salto de trampolim no céu da minha varanda, porque raro, é disruptivo. Por uma fracção de segundo o mundo habitual é perturbado sem que fique claro se o é por uma ameaça se por um fenómeno benigno, um milagre ou uma revelação. Gosto desse sentimento que dura um tempo demasiado curto mas autoriza a hipótese de transcendência. Um sentimento que, permitindo uma fugaz intuição de possibilidades inimaginadas ou intimamente desejadas, insinua que a vida neste planeta é uma espera, uma espera por vida alienígena, um anjo anunciador ou o mistério da morte.

Ao contrário de outras regiões do país, nos locais onde vivi os meus primeiros vinte e poucos anos não havia cegonhas e quando elas começaram a aparecer foram recebidas, não apenas por mim — com absoluta propriedade, no sentido literal e metafórico —, como avis rara. Um dia segui de carro o voo de um espécime solitário enquanto as estradas e os caminhos permitiram circular e depois continuei a pé, até o perder de vista. Era dessa dimensão o meu assombro. Tenho da mesma altura uma memória que não sei se é de um incidente se de um sonho: presenças espectrais pressentidas ou vislumbradas — ouvidas, também —, grandes asas e longas pernas espreguiçando-se de madrugada na outra margem de uma pequena albufeira, a poucas dezenas de metros. Na altura pensei em cegonhas, se fosse hoje imaginaria grous. Havia whisky à mistura, pelo que pode ter sido apenas uma alucinação, no local ou no leito que lhe sucedeu. Não me importa, ficou-me essa experiência como uma possibilidade e isso é mais reconfortante ou inspirador do que milhares de experiências comprovadas que lhe sucederam.

Vivem biliões de seres humanos no mundo, mas raramente a visão central ou periférica capta um que provoque impressões similares, não apenas em mim. Partindo, abusivamente ou não, da minha experiência, concluo que há talvez desde sempre uma misantropia endémica no mundo, caso contrário não haveria tanta gente entusiasmada com a possibilidade de vida inteligente noutros planetas ou a de uma vida depois desta. Ou com a entrada de aves raras no território ordinário.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Com o perfume das tílias em Junho, é assaz difícil refrear o impulso de plantar um parque, escavar umas ruínas, fundar uma nação, travar um duelo e, enfim, morrer de amor. Ou de tuberculose.

«Demasiado ocupados para embarcar nas artes da fruição»

No trecho que transcreverei abaixo, poderão ler Mark Fisher (em 2014, creio) a constatar como a tecnologia comunicacional do século XXI comprometeu as artes da fruição. Reparem que Fisher falava de música e de dança em discotecas — imaginem o quão comprometida está a fruição de outras artes. Hoje ninguém senão Fisher ou os semelhantes que lhe sobreviveram (alguns dos quais são leitores redundantes ou autores igualmente improfícuos de posts como este) sequer percepciona como negativas as «exigências incessantes das comunicações digitais».

«Demasiado ocupados para embarcar nas artes da fruição» é portanto um bom epitáfio colectivo. A colocar na vala comum desta era.

Aqui fica a citação:
«Há que lembrar que, segundo Berardi, estamos tão assoberbados com as exigências incessantes das comunicações digitais que nos sentimos demasiado ocupados para embarcar nas artes da fruição — as excitações têm de vir de modo hiperbólico, sem chatices, para que possamos voltar rapidamente a ver o e-mail ou as actualizações nas nossas redes sociais. As observações de Berardi podem oferecer-nos uma perspectiva das pressões a que tem sido sujeita a música de dança na última década. Ao passo que a tecnologia digital dos anos 80 e 90 alimentou a expectativa colectiva da pista de dança, a tecnologia comunicacional do século XXI comprometeu-a, conseguindo até pôr os frequentadores de discotecas a verificar os seus smartphones. (“Telephone”, de Beyoncé e Lady gaga — que coloca as duas a implorar a alguém que está a ligar que pare de as chatear para que possam dançar —, parece agora uma derradeira tentativa falhada de manter a pista de dança a salvo da intrusão comunicacional.»*

* Fantasmas da Minha Vida, 2020, pp.265 e 266, VS Editor, tradução de Vasco Gato.

domingo, 19 de junho de 2022

Entrevista com o vampiro

Mesmo que, na corrida por um lugar no Inferno, os Estados Unidos fossem à frente da Rússia, o regime de Putin, todos hão-de reconhecer, continuaria a ser candidato a um lugar no pódio, pelo que custa ver a forma obsequiosa como Oliver Stone entrevista o novo czar. Não é a cortesia e a hipocrisia diplomática a que os jornalistas por vezes se vêem obrigados se aceitam falar com alguém não recomendável; é uma cegueira e um fascínio que dão vergonha alheia. Putin é adversário dos EUA e isso para Stone é música celestial — e o interlocutor o anjo que a executa. (É certo que a entrevista foi feita há anos, mas mesmo então só um marciano confundiria Putin com um querubim.)
 
Na entrevista, que vou vendo aos pedaços com curiosidade histórica e certa morbidez, Oliver Stone tem longos momentos em que na verdade não entrevista Putin. Não falo das partes em que lhe serve de pé de microfone ou de marcador para realçar as deixas, mas dos momentos em que, sem olhar o entrevistado, faz as perguntas ao intérprete, referindo-se a Putin na terceira pessoa, como se mantivesse com o intérprete uma conversa de inconfidências. Mas nem assim, com esse filtro, com essa forma indirecta, diferida e patética de falar como se o czar não estivesse presente, como se falasse nas costas dele, nem assim Stone é capaz de fazer perguntas verdadeiramente embaraçosas. Não se lhe pedia que o fizesse pelo prazer de embaraçar, mas por sentir uma curiosidade mínima pela verdade.

terça-feira, 14 de junho de 2022

O que há de mais perverso na insónia é que gastamos, a ruminar madrugada dentro na forma como havemos de transformar ou resistir ao mundo, a energia de que de dia necessitaríamos para empurrar ou enxotar o mundo.

segunda-feira, 13 de junho de 2022

À luz de um candeeiro (2)

Quis regressar ao lugar onde foi feliz. Muniu-se do livro, orientou os passos pela Lua, antecipou o prazer da leitura à luz do candeeiro, preferencialmente sem adormecer, e entregou-se ao murmúrio do rio.
Mas desta vez havia gente nos bancos, um casalinho, jovens, contentes por estarem juntos e vivos. Tão cheios de contentamento, na verdade, que ela, amazona, não parava de dar pulinhos de alegria no colo do rapaz, cabelos esvoaçantes como morcegos num festim entomófilo.
Ele desviou o percurso oportuna e silenciosamente. Parecia-lhe algo impudico perturbar com a sua presença soturna aquela inesperada alegria alheia.

sábado, 11 de junho de 2022

À luz de um candeeiro

Na noite em que meio Portugal estava na sua terapia catártica com o Dr. Cave, dormitava ele sobre o livro no parque da cidade. No parque da sua cidade.
Nem sempre faz de propósito para desacertar o passo, há extravagâncias que vão ao seu encontro. Acontece que regressava a casa do trabalho, a noite ia avançada e apetecível e ele trazia o livro. À beira rio havia bancos iluminados, gorjeios de noitibó, uma impressão de quinta agustiniana no Douro e nem uma alma no horizonte. Sentou-se a ler e, como vem padecendo de insónias, ao fim de umas páginas adormeceu.
Se passaram por lá àquela hora, não era um hermeneuta talmúdico com o estudo em atraso nem um indigente a destilar o bagaço o que viram naquele banco. Era ele. Sóbrio como um carvalho centenário, ressonando como motosserra que o derrubasse.
Há talvez maneiras piores de comprometer a dignidade.

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Michel Houellebecq, o gentil

Há uma impressão de alívio na forma como está a ser apresentado ao mundo o último romance de Michel Houellebecq, Aniquilação. O «enfant terrible», o «mais polémico escritor francês» escreveu um livro «que permite entrever um raio de luz e esperança no futuro». Aniquilação, apesar do título, é «uma ode ao que é bom e belo neste mundo, ao que ainda pode ser salvo na humanidade». A aproximar-se dos setenta anos, Houellebecq encontrou «se não uma esperança pelo menos novos valores». O futuro ancião agora «propõe-nos uma moral que torna possível habitar o mundo e suportar a vida».

Ainda vou a meio do livro, mas posso testemunhar que o autor parece, pelo menos por enquanto, genuinamente curioso, não com a possibilidade de uma ilha milénios no futuro, mas com a possibilidade de reconciliação e redenção no presente. Compreende-se o alívio geral.

A foto na badana ainda é a do anacoreta, do belzebu, com aquela cabeleira rala e encrespada à la Gollum, mas o iconoclasta, o misantropo, o «profeta depressivo», parece hoje suavizado, optimista, empático. Uma das suas antigas personagens talvez especulasse que finalmente Houellebecq conseguiu foder sem ter de ir à Tailândia ou às putas (pardon my french). Outra poderia concluir, incrédula ou horrorizada, que se calhar Michel está apaixonado e tornou-se romântico.

Todavia, um crítico mais pragmático poderia propor que não foi Houellebecq que se moveu, mas o mundo. Com tanta gente a querer ser (e a ser) politicamente incorrecta, à esquerda e à direita, o marginal, o irreverente é talvez hoje aquele que, sem perder de vista a realidade dura e bruta do mundo, se atreve à bonomia, ousa uma certa gentillesse. Estou longe dos setenta, mas eu próprio tenho personagens que se perguntam: «que mal há numa educação para a gentileza? Não a gentileza protocolar, cavalheiresca, mas a verdadeira, a que transforma o dia do outro.»

Ou talvez Houellebecq continue igual a si mesmo e tenha escrito este livro apenas para se rebolar a rir com a forma como o mundo se agarra candidamente ao engodo como a uma inútil tábua de salvação.

Há ainda a hipótese verosímil de Aniquilação lhe ter escapado ao controlo, de o próprio escritor ter sido surpreendido com o mundo no processo de investigação e escrita do romance. Leia-se a forma como encerra os agradecimentos, na última página: «Por casualidade, acabo de chegar a uma conclusão positiva. O melhor é ficarmos por aqui.»

quinta-feira, 2 de junho de 2022

Pensar e agir fora da caixa de supermercado

(A propósito de Realismo Capitalista: Não Haverá Alternativa?, de Mark Fisher)

O que há de escusado ou até patético em enfiar um melão ou um cacho de bananas dentro de um dos sacos de fina película plástica transparente que os supermercados disponibilizam em abundância aos seus clientes é menos perturbador do que o que revela da existência pavloviana que o capitalismo reserva às pessoas. O apocalipse ambiental é uma realidade ao virar da esquina; os muitos loucos ou fanáticos religiosos que durante décadas ostentaram cartazes a dizer «O fim do mundo está próximo» tinham provavelmente razão, apenas não foram suficientemente perspicazes ou precisos quanto às causas.
E contudo o problema é muito menos o uso desnecessário, desmesurado e nefasto de sacos de plástico para enfiar artigos que deles não necessitam do que a longa cadeia de gestos irreflectidos onde ele se insere.

As secções de fruta e hortaliças apresentam dispensadores de sacos em lugares estratégicos e o cliente dirige-se-lhes mecanicamente, sem se questionar, numa coreografia de gestos pré-determinados. A mesma coreografia que o pôs sem hesitações, com uma eficácia comportamental que poucas campanhas estatais logram obter, a pesar a sua própria fruta e a registar as suas próprias compras, ignorando que isso é sintoma de uma de duas formas de automatização levadas a cabo pelas empresas para reduzir os custos com trabalhadores e aumentar lucros: a automatização tecnológica e a automatização do cliente. Ambas as formas de automatização se inserem na recusa paradoxal da promessa com cem anos de que o futuro e a robotização nos libertariam do trabalho, nos devolveriam o tempo. O que acontece é o contrário: a evolução tecnológica não nos reduziu a semana laboral (nem nos aliviou da chantagem moral inerente à suposta realização do homem pelo trabalho — «Arbeit macht frei», não é?) e fez-nos entregar gratuita e voluntariamente tempo e serviços às empresas que investiram em tecnologia.

As considerações anteriores surgem-me após a leitura de Realismo Capitalista: Não Haverá Alternativa? (2009), de Mark Fisher. Diz o autor, e todos o sabemos já, que «as alterações climáticas e a ameaça do esgotamento dos recursos estão a ser, mais do que recalcadas, incorporadas na publicidade e no marketing». Contudo, isso não significa que o capitalismo actual tencione, de forma alguma, fazer o que quer que seja quanto ao problema. É só uma demonstração da sua «plasticidade» (no sentido de maleabilidade). Segundo Fisher, uma das características principais do realismo capitalista (o suposto «realismo» é o artifício intelectual a que o capitalismo recorre para que o consideremos insubstituível, inevitável) é a sua capacidade de condicionar «os horizontes do pensável e, por isso, do possível». Precavido, o capitalismo não ignora os problemas e não hesita em subordinar-se «a uma realidade infinitamente plástica, capaz de se reconfigurar a qualquer momento». Mas fá-lo para garantir que as «zonas culturais» alternativas ou independentes «não designam algo exterior à cultura dominante; ao invés, são estilos, os verdadeiros estilos principais, aliás, no seio da cultura dominante».

Em rigor, ao contrário dos autoritarismos históricos, o capitalismo aceita que as mais diversas entidades, concretas ou abstractas, sugiram às pessoas o que fazer e como se comportar perante novas tendências e desafios — mas apenas se desse comportamento resultar a manutenção ou o reforço do statu quo económico e social. Com efeito, o capitalismo apressa-se frequentemente a ser pioneiro na «aceitação» dos novos tópicos, mas estabelece de imediato os limites da discussão, fingindo-se «realista».

Com uma estrutura funcional muito próxima da de uma religião ou de um estalinismo de aparência amigável, o realismo capitalista tem os seus dogmas e, claro, os seus zelotas. São eles que estabelecem que «dizer às pessoas como perder peso ou como decorar a casa é aceitável; mas reivindicar qualquer tipo de progresso cultural é ser opressivo e elitista» (p. 108). Sem o saber, ecoei esta frase de Fisher em dois textos, de 2011 e 2014, respectivamente. No primeiro*, observei como a direita neoliberal, fingindo recusar todas as formas de proselitismo televisivo (ou seja, de opressão elitista), foi na verdade permitindo um doutrinamento de massas não menos opressivo e particularmente imbecilizante. No segundo **, levei mais longe o raciocínio para sugerir que o Estado, assustado com a mera e impensável possibilidade de promover qualquer forma de elitismo cultural, se deixou sequestrar por uma ideia falsa de liberdade ou democracia, conducente na prática a uma mediocracia (na acepção pejorativa). Exactamente porque o realismo capitalista permite todas as formas de moralismo excepto o questionamento da sua própria validade moral.