terça-feira, 30 de abril de 2013
Cortinas de fumo
No que toca a direita fanática, o blogue Blasfémias, de José Manuel Fernandes, Helena Matos, Carlos Abreu Amorim e eminências afins, é outra louça. Ali, mesmo que não haja cortinas de fumo, assobia-se frequentemente para o lado. No caso Relvas, já não havia vigarista em Portugal que não se escandalizasse com o ex-ministro quando no blogue se começou, timidamente, a achar indigna a presença do homem no Governo. Agora tenho espreitado, mas ainda não vi uma pálida reacção ao affaire Rogoff. Vi, como de costume, muitas anedotas sobre o PS (e achei bem), mas isso talvez sejam afinal cortinas de fumo.
Tavares, Reinhart e Rogoff
Não voltei a ler artigos de João Miguel Tavares, essa irritante representação do neoliberalismo tuga e da direita economicamente fanática, mas tenho curiosidade. Tenho curiosidade porque entretanto Kenneth Rogoff, o ás da economia que os neoliberais elegeram como papa (ou branca cortina de fumo, não sei bem), veio dizer num artigo no The New York Times que, afinal, defende desde há muito o perdão parcial das dívidas de países da periferia. Também disse que ele e Carmen Reinhart (que co-assina o artigo) sempre aconselharam que se evitasse a retirada demasiado rápida dos estímulos orçamentais à economia. Disse isto e mais umas coisas que deitam por terra a cientificidade de Gaspar, Tavares e C.ª e provavelmente merecerão de João Miguel insultos que ele em geral reserva à esquerda.
É claro que o diz-que-sempre-disse de Rogoff é a sua tentativa de se demitir de pai de uma austeridade cega que entretanto falhou. E é um diz-que-sempre-disse carente de comprovação cronológica. Mas, ainda que estas sejam na realidade afirmações pós-fracasso, prognósticos de fim de jogo, não deixam de ser uma posição interessante que nos põe expectantes quanto à reacção de discípulos beatos como João Miguel Tavares. Será que o cronista do Público vai descobrir um tijolo ainda maior do que This Time Is Different: Eight Centuries of Financial Folly para nos arremessar? Ou é desta que desiste do bullying e modera a ferocidade de zelota do templo?
P.S. Sobre este assunto, leia-se este texto de um blogue da New Yorker.
quarta-feira, 24 de abril de 2013
3. (Ainda o João Miguel Tavares)
Afinal a saída de Pedro Lomba da última página do Público não devolveu um moderado de direita àquela secção do jornal, oportunidade que referi há dias por ironia descrente ou cinismo. Pelo contrário. Desconfio que a mudança até fará empalidecer Vasco Pulido Valente (colunista que, embora por conveniência a uma velha historiografia in progress, até já aceita haver no aprofundar da crise europeia um dedo ou pelo menos uma alegria alemães; que talvez a Deutschland não seja sempre apenas um território de dignos e inquestionáveis credores).
2. Prestidigitadores
O post anterior não rouba toda a razão a João Miguel Tavares na sua defesa da
austeridade. Não é essa a questão. Contesta é o seu precipitado argumento de
autoridade.
No que toca à austeridade, não adianta muito estar contra ou a favor: ela
impõe-se se o dinheiro escasseia. E ninguém em rigor pode negar pertinência a
Tavares quando afirma que «sim, foi a imprudência em tempos de vacas
gordas […] que nos trouxe até aqui». De resto, outra sua afirmação no mesmo
artigo é também verdadeira, embora no seu facciosismo ele restrinja um defeito
nacional apenas à esquerda: «Boa parte da nossa esquerda ainda acredita que o
verdadeiro líder político é aquele que consegue dobrar a matemática e a
economia com a força da sua vontade.» Infelizmente, esta é uma característica
geral lusitana, entre outras coisas responsável por termos Passos Coelho como
primeiro-ministro — e Vítor Gaspar como ministro das finanças. A promessa do
prestidigitador é o salvo-conduto para ganhar eleições (vide Junho de 2011),
mas é igualmente o que tem sido vendido para sair da crise. A matemática e a
economia não se têm mostrado mais dúcteis perante os passes de Gaspar do que
perante os truques da esquerda antes dele. Isto e o erro de Reinhart &
Rogoff deveriam ser suficientes para um pouco mais de humildade da direita
ultramontana. Antes de nos prescreverem os calhamaços e as sangrias desatadas
deviam talvez ir rever contas e conclusões. É que aqueles de nós que não são da
esquerda esbanjadora nem da direita impiedosa gostariam de cair no abismo
sabendo que tal não aconteceu apenas porque alguém no poder ou nos jornais
achou aceitável o sacrifício e desnecessário rever dogmas.
1. O argumento do tijolo
João Miguel Tavares é um conhecido e enérgico defensor da austeridade. No
seu artigo desta terça-feira no Público
pretendeu arrefecer os ânimos dos que se alegraram por ter sido descoberto um
erro no célebre ficheiro Excel de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff,
frequentemente citado pelos promotores da austeridade. E que argumentação usou
Tavares? Uma de peso. Ou de volume. De número de páginas. É que, diz o
jornalista, ao contrário do que pensa a massa ignara, aquela dupla de economistas
não se tornou famosa pelas «26 páginas de Growth
in a Time of Debt», o artigo que continha o erro, mas sim pelas 512 páginas
de This Time Is Different — Eight
Centuries of Financial Folly, «um tijolo que se distingue precisamente pela
avassaladora quantidade de dados que os autores foram capazes de coligir».
Ora, isto parece mais bullying
do que argumentação. Como se alguém dissesse: «Não levam a sério as minhas
palavras? Experimentem o meu peso», sentando de seguida os seus 120 quilos de hambúrgueres
sobre o adversário para o calar.
A lógica de João Miguel Tavares pretende que o leitor, conhecido o erro
de um artigo, ceda com alegria ao argumento da quantidade de informação em vez
de, preventivamente, precavidamente, alertado pelo exemplo, se perguntar como e que informação foi coligida, e que influência isso teve nas conclusões
alcançadas pelo cartapácio. Como se um erro em 26 páginas, e a interpretação
fragilizada dele resultante, fosse mais improvável em meio milhar delas.
João Miguel Tavares quer enfim que nos verguemos perante a autoridade
do calhamaço. É muito comum nos dogmáticos. Tome-se a Bíblia, por exemplo.
quinta-feira, 18 de abril de 2013
Agora a cultura será efervescente
«Filomena Cautela apresenta magazine cultural na RTP2» (DN)
Afinal a RTP2 ainda pode acolher um magazine cultural. Esta é uma forma
de ver as coisas. A outra é que a administração da RTP decidiu dar forma ao
sonho de uma menina.
Filomena Cautela, parece que apresentadora e actriz, tinha o sonho de ser
apresentadora de um “programa cultural”. Vai daí, apresentou a ideia à RTP e a
estação achou-a tão necessária e inovadora (um programa cultural!, quem
imaginaria?) que não viu como podia recusá-la, abraçou-a de imediato.
A ideia parte de boas intenções — mas não consegue parar por aí; como em todos
os sonhos adolescentes, entra em delírios. Por exemplo: «Quero fazer com que as pessoas percebam que a cultura não é
aborrecida e que o teatro é bom, muda mentalidades, sociedades». Até aqui todos
de acordo, certo? (Mais ou menos, pronto.) Só que a frase está incompleta. A
apresentadora também acha que o teatro (ou a cultura) «nos pode tirar da crise»,
mas, lamentavelmente, não explica se é através do clássico deus ex-machina ou de outro artifício cénico. Num segundo exemplo, revela-nos
que «o mote do programa é falar de cultura e de arte de uma forma acessível,
directa, estimulante». Poderíamos achar isto redutor mas aceitável — se ela não
acrescentasse que também quer falar de cultura de uma forma «efervescente».
Ora, uma coisa que é a concretização de um sonho, que acredita no
fim da crise pela arte e pretende falar de cultura de uma forma «efervescente» parece
um discurso de Miss Portugal, não um programa para levar a sério.
Esta generosidade cheira a legado do ex-ministro Relvas. Mas agora
que ele saiu não poderíamos ter de volta a Paula Moura Pinheiro ou outra pessoa
que não ache que a cultura tem de ser descomplicada, traduzida para dialecto
púbere e apresentada buliçosamente, com câmara irrequieta, como se fosse o Top+?
P.S. Desconfio, mas pode ser apenas mau-feitio, que mostrar que «a
cultura não é aborrecida» e falar dela «de uma forma acessível, directa»
implicará omitir o “aborrecido” e tudo aquilo que não seja acessível e directo
segundo os padrões de um público “efervescente”.
terça-feira, 16 de abril de 2013
Ghostwriting
Depois de muitos anos a escrever para a gaveta a horas mortas, como o
fantasma do bloco de apartamentos onde vivia, decidiu que chegara a altura de
começar a ganhar algum dinheiro com o seu trabalho. Publicou um anúncio no
jornal. Dizia: «Escritor inédito procura assinatura mediática para livro. Sigilo
garantido.»
Na acepção de ghostwriting que
a sua aversão a escrever os livros dos outros assim inaugurava, não eram as celebridades
que procuravam competentes escritores-fantasma, mas escritores espectrais que
procuravam nomes corpóreos aos olhos de editores e público. Os mercenários da
escrita eram substituídos por mercenários da Parker ou da Montblanc dispostos
a vender o seu autógrafo. Havia nisto um claro benefício para os leitores, afirmou
desassombradamente alguma (rara) crítica.
segunda-feira, 15 de abril de 2013
BD, literatura, fantasia e sexo
«Suponho que em algum momento da minha vida deveria ter acontecido
uma evolução do meu interesse da BD para a literatura. Não necessariamente uma
evolução que rejeitasse as anteriores etapas; um progresso com alargamento de
horizontes, acumulação de interesses e curiosidades. Estava claro para mim que
a ficção iria ser sempre um suporte de que não me separaria, como se na
infância me tivesse sido diagnosticada uma deficiência num dos membros
inferiores e aquela fosse a bengala adequada para me deslocar. Mas, com o
crescimento, esperar-se-ia que reivindicasse uma bengala maior, proporcional à
altura que entretanto adquirira. Não o fiz, porém, e talvez me devesse
perguntar se a isso se atribui a forma desequilibrada como avancei na vida.
Não me fiquei pelas revistas juvenis, embora nunca as abandonasse;
ganhei também interesse por álbuns de maior erudição e exigência, com um humor
adulto e subtil, desenhos sofisticados, artisticamente relevantes, histórias
mais complexas e personagens mais densas, com narrativas de maior profundidade
dramática. Ganhei interesse, em suma, por muito do que a literatura representa,
mas a leitura de romances foi prática a que me dediquei com pouca frequência e,
quando ocorria pegar num livro, na maior parte das vezes preferia a ficção
científica. Um sintoma, terei de dizer, de que mais do que a ficção me
interessava a fantasia.
A capacidade de sonhar é tida como um dom, aquilo que nos permite
superar as limitações, encontrar alegria onde ela não existe. O sonho compensa
a vida. Pelo que se podia inferir que um livro — um livro de BD, no meu caso —
seria uma extensão do sonho, ou algo que substituía o sonho, se essa nossa
faculdade estivesse atrofiada. Mas talvez sonho
seja também, ou sobretudo, sinónimo de refúgio.
Ler revelar-se-ia, então, menos uma forma de sonhar do que de nos escondermos,
nos pormos a salvo da vida. A leitura não como entretenimento mas como
suspensão do tempo, da existência. Trazer uma revista de BD no bolso de trás
das calças era como, para utilizar imagens adequadas, transportar tecnologia
avançada, um aparelho onde poderia digitar a ordem de teleportação quando
estavam iminentes ocorrências ameaçadoras.
(…)
Era previsível que um espírito
tão prolongadamente ancorado na fantasia como o meu adquirisse vícios e
posteriormente não soubesse muito bem como viver sem a bengala da ficção.
Quando comecei a frequentar prostitutas fi-lo não tanto por incapacidade de
arranjar outro tipo de parceiras sexuais, mas porque apenas elas, algumas
delas, aceitavam, sem questionar, pôr a cabeleira ruiva que eu levava comigo.
Isso aconteceu numa altura em que eu já consumia regularmente drogas (outra
forma de viver em fantasia) e não era evidente para mim se o fazia para consumar
através de terceiras o meu flirt
gorado com Rita ou se porque não encontrava outra maneira de manter uma erecção
por um tempo razoável.»
Pedro, in Aranda
sábado, 13 de abril de 2013
Custos políticos
«Em termos de distribuição dos custos políticos, o Governo não foi muito inteligente», disse há dias o novel ministro Miguel Poiares Maduro. O problema foi o Governo ter optado por reduzir os salários no sector público em vez de ter seguido a via dos despedimentos. É que assim «acabou por alargar o leque dos descontentes».
Não interessa, portanto, se a opção do Governo era mais justa ou não. Nem sequer interessa, afinal, se a opção do Governo era mais justa do que a interpretação do Tribunal Constitucional. E não interessa, claro, a dureza dos custos sociais face à soberana importância dos custos políticos. Interessa é que o Governo foi estúpido. Se tivesse sacrificado sem hesitação algumas dezenas de milhares em vez de ter prejudicado um pouco umas centenas de milhares teria circunscrito o descontentamento. Maquiavel não diria melhor. E agora Maquiavel está no Governo.
Não interessa, portanto, se a opção do Governo era mais justa ou não. Nem sequer interessa, afinal, se a opção do Governo era mais justa do que a interpretação do Tribunal Constitucional. E não interessa, claro, a dureza dos custos sociais face à soberana importância dos custos políticos. Interessa é que o Governo foi estúpido. Se tivesse sacrificado sem hesitação algumas dezenas de milhares em vez de ter prejudicado um pouco umas centenas de milhares teria circunscrito o descontentamento. Maquiavel não diria melhor. E agora Maquiavel está no Governo.
quarta-feira, 10 de abril de 2013
Justiça
Apesar de todos os erros e mistificações do Governo, há um ponto onde,
por justiça, ele tem de ser louvado: a demissão de Relvas. É certo que pecou
por tardia, absurdamente tardia; é certo que outros ministros de outros
governos se demitiram ou foram demitidos por bem menos; é certo que o ministro
não foi demitido, demitiu-se (permitiram-lhe essa última honra); é certo que a pressão
pública foi inaudita; é certo que o ministro da educação é Nuno Crato. Tudo
isto e mais umas coisas é certo, mas um governo avançar com um processo de
averiguação sobre um seu ministro e não adiar ad aeternum ou esconder os resultados, nem recusar assumir as
consequências da averiguação, é novidade que deve ser saudada. Por vezes
neste país o cumprimento de deveres e a coerência de decisões, de pessoas e instituições,
têm de ser saudados, porque raros.
(E pronto, agora podemos voltar a vituperar o mau governo que nos calhou
em sorte nestes dias de chumbo.)
O mecânico
Como antes dele o gerente de uma churrasqueira e o escriturário de uma empresa, o mecânico, com apenas um pouco mais de vernáculo do que os grandes liberais dos blogues, declara que não se pode adiar mais, é preciso despedir funcionários públicos, essa corja. Não uma pequena quantidade para troika ver. Milhares, centenas de milhares. Talvez isso não resolva o problema do país de imediato, concede, mas resolve-o a médio prazo. Não diz se por milagre.
O mecânico não se lembra de que grande parte dos seus clientes são funcionários públicos e que o negócio pode afundar se os seus funcionários públicos deixarem de conduzir carros por muito tempo. Ou para sempre. O mecânico não se lembra de que funcionários públicos são os professores dos seus filhos, os médicos e os enfermeiros que mantêm a sua mãe viva e lhe permitem continuar a receber a reforma dela. São os tipos que lhe apanham à porta o lixo que ele deixa espalhar-se pelo passeio. E são aqueles gajos que conduzem a frota cuja manutenção lhe foi entregue por amigo bem colocado na câmara. O mecânico esquece-se, a bem dizer, de que o bem-estar e a economia do concelho estão por enquanto, para o mal e para o bem, dependentes do funcionalismo público. E, na sua precipitação, o mecânico esquece-se de que a própria esposa é funcionária pública (sem formação, desqualificada, na primeira linha dos despedimentos).
O mecânico não o sabe, não pensou a sério no assunto, mas fala dos funcionários públicos como de uma abstracção. Muito à anos vinte do século passado, fala dos funcionários públicos como de "os outros", como de uma raça expiatória.
Ainda bem que, à escala nacional, o Governo e os seus liberalíssimos e cultíssimos bloggers não são deste aziago jaez.
O mecânico não se lembra de que grande parte dos seus clientes são funcionários públicos e que o negócio pode afundar se os seus funcionários públicos deixarem de conduzir carros por muito tempo. Ou para sempre. O mecânico não se lembra de que funcionários públicos são os professores dos seus filhos, os médicos e os enfermeiros que mantêm a sua mãe viva e lhe permitem continuar a receber a reforma dela. São os tipos que lhe apanham à porta o lixo que ele deixa espalhar-se pelo passeio. E são aqueles gajos que conduzem a frota cuja manutenção lhe foi entregue por amigo bem colocado na câmara. O mecânico esquece-se, a bem dizer, de que o bem-estar e a economia do concelho estão por enquanto, para o mal e para o bem, dependentes do funcionalismo público. E, na sua precipitação, o mecânico esquece-se de que a própria esposa é funcionária pública (sem formação, desqualificada, na primeira linha dos despedimentos).
O mecânico não o sabe, não pensou a sério no assunto, mas fala dos funcionários públicos como de uma abstracção. Muito à anos vinte do século passado, fala dos funcionários públicos como de "os outros", como de uma raça expiatória.
Ainda bem que, à escala nacional, o Governo e os seus liberalíssimos e cultíssimos bloggers não são deste aziago jaez.
segunda-feira, 8 de abril de 2013
O cartomante Quim Zé
Nos últimos dois dias vi propostas de ajuda de um cartomante coladas
com fita-cola em caixas automáticas e portas de bancos. Num primeiro momento,
pensei que a oferta se dirigia ao próprio sistema financeiro, interpelando-o nos
seus santuários ou pontos onde ele se insinua junto dos mortais. Depois
lembrei-me que cartomantes são espíritos apenas dedicados a previsões, e suspeitei
que a ajuda era afinal proposta a Vítor Gaspar (com o cartomante, pobre
info-excluído, a imaginar que um multibanco é um terminal com ligação directa
ao ministro das finanças). A certa altura soube que o TC chumbara o
orçamento e concluí que aquilo eram já papéis de Gaspar à procura de emprego. Que
o cartomante assinasse Quim Zé não me
espantou: era a ultima tentativa do ministro de se distinguir de um Zé
qualquer.
P.S. Não podemos pôr de parte a possibilidade de o cartomante Quim Zé
estar na verdade a informar os empreendedores necessitados de financiamento de que,
entre os bancos e o euromilhões, mais valia arriscarem no jogo, onde a ajuda de
um cartomante pode ser realmente útil.
O teu rosto será o último
Li esta tarde metade de O teu
rosto será o último, prémio Leya 2011, e senti-me apaziguado. Um
grossista do papel impresso pode ter um prémio que cria um bestseller em vez de premiar um livro que foi escrito para ser um bestseller. O livro de João Ricardo
Pedro, tanto quanto posso julgar, é bom e honesto. Alimenta-se de contos para
ser um romance e, na parte que li, tem pelo menos dois excelentes momentos: O Índio e O barbeiro Alcino.
(Para relativizar e armar um pouco, ia dizer que não conheço os
restantes livros concorrentes e perdedores, mas não é totalmente verdade: escrevi
um deles, mais perdedor do que concorrente.)
quinta-feira, 4 de abril de 2013
Causa e efeito
Na contracapa: «A colaboração entre os Ministérios da Justiça e da
Saúde permitiu já detectar fraudes (…) que ascendem a 25 milhões de euros.»
Na capa: «Paula Teixeira da Cruz e Paulo Macedo de saída do Governo?»
No interior, pág. 6: «Miguel Relvas contrata comunicador que conheceu
no Youtube» e, pág. 4: gabinete de Miguel Relvas diz que é «falsa» a informação
sobre a sua saída do Governo.
Talvez tenhamos de esperar, pobres de nós, que Relvas faça alguma coisa
bem para se cansar e se demitir ou ser demitido.
Público e notório
1.
Uma apologia: «auto-suficientes no vinho e na cerveja.»
2.
Um epitáfio: «apenas
auto-suficientes no vinho e na cerveja.»
3.
Um jornal cujo problema talvez já não seja apenas a falta de revisores:
«Auto-suficientes no vinho e cerveja, ao contrário dos cereais.*»
4.
Se o Público queria dizer que
os cereais produzem pouco ou bebem mais do que produzem, a frase está certa — e sejamos um pouco solidários com eles, com os cereais: ninguém devia ter
de importar para beber (a não ser por desejo de experimentar beberagens finas
ou exóticas).
5.
Se o Público queria dizer
outra coisa, devia ter escrito: «Auto-suficientes no vinho e na cerveja, ao contrário de nos cereais.»
6.
Talvez o Público quisesse na
verdade dizer que passou de um jornal de referência a um jornal de referência
de Belmiro de Azevedo: baixos salários, baixo QI, muita auto-insuficiência.
* Destaque na última página do Público de hoje.
* Destaque na última página do Público de hoje.
quarta-feira, 3 de abril de 2013
Warpaint
Ouço-as e lembram-me coros adolescentes em grupos religiosos ou de escuteiros, meninas de saia rodada cantando a várias vozes, por vezes num só
tom, a mesma melodia de thriller enquanto
abanam as tranças. Ouço-as e as suas músicas parecem-me imperfeitas, inacabadas,
jam sessions insistentes à procura da
forma final de uma canção, várias canções à luta na mesma música, algumas boas
ideias reunidas a outras estranhezas. Ouço-as e lembro-me das minhas próprias jam sessions adolescentes, a obsessão com
uma frase, uma melodia, um som, uma malha, uma sequência de acordes, um ritmo, obsessão
não raro cruzada com certa embriaguez movida a Super Bock. Ouço-as e vejo-as como
me vi a descobrir um instrumento, deslumbradas com os sons, o minimalismo repetitivo
resultante do domínio incipiente da guitarra e do fascínio da descoberta, da
necessidade de ouvir e reouvir um truque recém-aprendido, um acorde encontrado,
uma harmonia conseguida. Ouço-as e julgo reconhecer amostragens de diferentes
camadas geológicas de uma parte do meu próprio território, punk de setenta, underground depressivo dos eighties, os anos de Seattle, alternativos
90s e seguintes. Ouço-as e por vezes não consigo parar de as ouvir, também eu
preso na espiral obsessiva que se inicia em “Exquisite Corpse” (EP) e continua
por “The Fool” (álbum).
Certa música imperfeita tem uma acção hipnótica sobre mim. Se eu fosse
uma serpente, o indiano que me quisesse encantar teria de ler a história do
rock alternativo e não ser um virtuoso no
seu instrumento.
terça-feira, 2 de abril de 2013
Sinto, com certa alegria, que vamos dar um estoiro com esta austeridade
Tenho um amigo que, há um ano, para minha ilustração e conversão, me abastecia
de vídeos e artigos de Medina Carreira. Chegou a oferecer-me um livro do
ex-ministro, por escárnio (e mania de gastar acima das suas e, no caso, minhas necessidades).
Sempre que nos encontrávamos, entre o glorioso 5 de Junho de 2011 e a evidência-até-para-totós
do descalabro passista, as nossas conversas redundavam em histeria e cólera,
com a parte patética deste género de debates a ser assegurada por mim (tenho um
dom).
Na verdade, o meu amigo e eu concordávamos na grande maioria dos
argumentos. Era aliás ele quem mais pessimista estava em relação às políticas
de Passos Coelho, na medida em que é por natureza pessimista quanto ao futuro
da Europa e do Ocidente. De Medina Carreira, apreciava, mais do que tudo (percebe-se
porquê), o tom tremendista e apocalíptico — les
beaux esprits se rencontrent.
Pelo meu lado, se via pertinência em afrontar o meu amigo e o governo
PSD/CDS não era porque acreditasse sem hesitações em alternativas, ou numa
solução indolor. Era também, reconheço, para me confortar, escolhendo como os
religiosos o diáfano para apaziguar os dias.
Mas fosse como fosse, tinha as minhas ideias. Não acreditava que um
plano de reforma radical funcionasse num prazo tão curto. Como todas as pessoas
sensatas postas perante a verdadeira dimensão do problema (que curiosamente as instituições
financeiras e políticas, com raras e individuais excepções, foram estimulando e
ocultando nos anos anteriores), estava disponível e sabia que eram inevitáveis
sacrifícios, perdas de rendimentos. Mas achava que uma reforma do Estado capaz
de enfrentar eficazmente a dívida e o défice precisaria de uns dez anos e que a
Europa tinha sido mesquinha e estúpida em não criar condições para isso.
Foi pois com um ar trocista e de vanglória que enviei hoje ao meu amigo
a notícia que cita Medina Carreira defendendo que «o tempo de aplicação do memorando deveria ser estendido a seis anos»,
caso contrário vamos «dar um estoiro com esta austeridade». Digo que o meu ar
era de vanglória porque conheço
o meu amigo: não concederá mérito à minha antiga intuição nem acreditará numa
extensão do prazo — vai é rejubilar com a expressão do jurista. «Dar um estoiro»
é também uma expressão sua frequente em relação ao país, e vê-la elevada a
título premonitório é algo que decerto vai excitar a sua morbidez.
E isto leva-me a desconfiar que morbidez é também patologia de Vítor Gaspar.
E isto leva-me a desconfiar que morbidez é também patologia de Vítor Gaspar.
segunda-feira, 1 de abril de 2013
«Os portugueses não estão preparados para isto»
Na peça “Três dedos abaixo do joelho” os censores de teatro do Estado
Novo foram convidados por Tiago Rodrigues a serem co-autores do texto. Na
verdade, eles são praticamente os únicos autores, o dramaturgo e encenador limitou-se
a copiar e colar inteligentemente frases dos seus relatórios e com isso
construir o guião da peça e os diálogos dos actores. Mais de quarenta anos
depois, testemunhamos como a liberdade criativa era cerceada e,
simultaneamente, como uma elite no poder se achava no direito de interpretar os
interesses dos portugueses, ou, pior, como se achava no direito de decidir o
que os portugueses conseguiam ou não perceber. A inteligência dos nossos pais e
mães, tios e avós, a que se referem vários relatórios, era ofendida com decretos
do género: «os portugueses não estão preparados para isto»; «os portugueses
quando vão ao teatro querem apenas divertir-se»; «os portugueses não querem
estas inquietações, estas perturbações do espírito».
Hoje, quando nos sentamos livremente numa plateia, estaremos a precipitar-nos se sentirmos que isso vinga os nossos antepassados. O facto de ocasionalmente nos permitirmos e nos permitirem entrar numa sala de teatro para sermos inquietados ou perturbados é uma vingança provisória, efémera, sem grande alcance e certamente não garantida.
Hoje, quando nos sentamos livremente numa plateia, estaremos a precipitar-nos se sentirmos que isso vinga os nossos antepassados. O facto de ocasionalmente nos permitirmos e nos permitirem entrar numa sala de teatro para sermos inquietados ou perturbados é uma vingança provisória, efémera, sem grande alcance e certamente não garantida.
O país já não dispõe daquelas figuras de lápis
azul e mangas-de-alpaca laboriosamente encerradas em gabinetes do Secretariado Nacional
de Informação para determinarem ao que o país pode ou não pode assistir. Dispõe
de outras: sentadas nas direcções de programação das televisões (pública e privadas)
e sentadas na vereação de cultura de uma enorme quantidade de câmaras municipais
no país. Não usam o lápis azul porque hoje os amanuenses não escrevem com lápis,
nem têm um regime ou uma moral de estado para defender.
Mas têm a mesma ignorância despótica ou a mesma aversão à diversidade e ao livre arbítrio que tinha o Estado Novo. Cidadãos que pensem e
escolham livremente são um empecilho na luta pelas audiências e uma dificuldade
evitável para uma gestão autárquica que se quer simples como umas férias de Verão.
É verdade que, ao contrário das instituições do Estado Novo, as
televisões e as vereações não visam defender um regime nacional ou uma moral pública quando exercem a sua política de estrangulamento ou afunilamento do gosto — mas
está na sua natureza defender o statu quo,
e, se a moral ganhou em muitos campos uma considerável elasticidade, não foi em geral a
suficiente para suportar interesses divergentes.
Um e outro sistema, o das ondas hertzianas e o do feudo provincial,
precisam de uniformidade para exerceram a sua influência, as televisões para
venderem os seus sabonetes, certo poder autárquico para poder manter-se com os
mesmos fracos protagonistas e a mesma atávica incompetência.
Acresce que atávica é também a relação de muitos portugueses com a
diversidade e com as coisas que inquietam o espírito. Se não houvesse tiranetes
do gosto nas TVs e numa grande quantidade de câmaras, muito povo estaria ele próprio
disposto a sair à rua a gritar que «os portugueses quando vão ao teatro querem apenas
divertir-se».
Na verdade, fá-lo frequentemente, desdenhando ou considerando uma
veleidade insustentável haver concidadãos que queiram ir ao teatro por outras
razões.
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