terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Greased Lightnin'

De saia plissada e blusa de golas a espreitar da camisola de lã, a liceal pairava no passeio, em simultâneo tímida e desafiadora, expectante como um ser sem tempo. Mal tinha eu acabado de notar o figurino, já surgia do nada, como o DeLorean de Regresso ao Futuro, um vintage de motor rouco, com um improvável dragão em labaredas na porta e um pintas ao volante. Enquanto ele fazia esperar o trânsito para trocar olhares e sinais com a moça, aguardei que Travolta e Newton-John encetassem um dueto e me confirmassem assim que acabara de sair da pastelaria para o Grease. Ainda puxei um caracol para a testa, por impulso.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

A angústia do Hawk-Eye antes do primeiro serviço

No seu primeiro dia no emprego, depois dos meses de estágio, Hawk-Eye estava nervoso. O caso não era para menos, tinha uma grande responsabilidade: ia ser juiz num dos maiores torneios do mundo. Na verdade, como boa máquina que era, ia desempenhar sozinho as funções de mais de meia dúzia de juízes humanos, e teria uma autoridade que ninguém disputaria. Mas isso, que o enchia de vaidade, era também a fonte da sua angústia. É que, a despeito de o regulamento do torneio não prever qualquer revogação das suas decisões — Hawk-Eye passara com distinção em todos os inúmeros testes e beneficiava daquela velha superstição humana de que os computadores não falham —, ele teria de deixar exibir nos ecrãs do estádio, de forma não vinculativa, para mero benefício das emoções do jogo, a repetição em slow motion e close up das bolas que, apesar da sua decisão soberana, dividissem opiniões quanto a terem ou não batido do lado certo da linha.

Enquanto no court se desenrolavam os rituais que habitualmente precediam os jogos, Hawk-Eye deu por si a roer os chips, como um novato. Tinha de pensar rápido, muito rápido. O que não representava nenhuma dificuldade para si, bem vistas as coisas: ele era por definição um dos processadores mais rápidos do mercado de trabalho.

Uma vez que era ele também quem estava encarregado de gerir a gravação e a reprodução de todas as imagens do jogo e tinha acesso ao enorme arquivo de jogos televisionados, treinos e testes com que o tinham amestrado para a profissão, Hawk-Eye tomou num milionésimo de segundo uma decisão pouco ética mas que deixaria todos, não só ele, descansados quanto à fiabilidade dos seus juízos. Procurou e encontrou — e quando não encontrou exactamente o que queria fez algumas montagens rápidas como um editor de efeitos especiais de cinema — arquivos com bolas que batiam em quase todos os centímetros quadrados do court, vindas de todos os ângulos possíveis e com toda a variedade de spin e velocidade que uma geração de tenistas conseguira até à data imprimir nas suas pancadas.

Quando o jogo começou Hawk-Eye estava já senhor da situação. Sabia que, se em alguma jogada ele próprio tivesse dúvidas quanto à decisão que seria obrigado a tomar num piscar de olhos, poderia exibir nos ecrãs e video walls do court uma repetição de arquivo (ou saída da mesa de montagem) que corroborasse a sua chamada.

Nem precisava de ser muito escrupuloso na mise-en-scène: por razões de gosto dos organizadores do torneio, as repetições deviam ser apresentadas com uma estética de simulação computadorizada, e, convenhamos, não há nada mais distante da realidade do que uma simulação computadorizada. De todo o modo, seria certamente necessária outra máquina como ele para detectar a fabricação, se em algum momento tivesse de recorrer a uma. Mas quanto a isso Hawk-Eye estava descansado, contava em última análise com a cumplicidade da sua tribo. 

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Os nomes e as coisas

Uma das funções essenciais de um aprendiz na oficina de mecânico era obedecer estremecendo à ordem «cheg’aí os esperdícios». Os esperdícios eram um utensílio indispensável na oficina, mesmo quando, devido à quantidade de óleo absorvido, já sujavam mais do que limpavam. Mecânico que se prezasse tinha a espreitar do bolso de trás do fat’macaco azul as melenas coloridas e encaracoladas de um molho de esperdícios, mas alcançar aquela parte do corpo era mais trabalhoso do que berrar ao aprendiz por esperdícios.

O termo esperdícios — ligeira corruptela de «desperdícios», um aprendiz viria a saber muito depois —, embora designasse a coisa, não a descrevia. Era então apenas um nome, como martelo ou parafuso. Um aprendiz não se punha a pensar na palavra ao ponto de descobrir a corruptela e muito menos de perceber que o nome descrevia a composição do molhinho de fios coloridos. Do mesmo modo que nunca pensava na palavra «boca» quando tinha de chegar ao mestre a chave-de-bocas ou na palavra «fenda» quando o cirurgião, debruçado de unhas encardidas sobre a cambota padecente, pedia a chave-de-fendas. As palavras eram para um estremunhado aprendiz abstractas, não continham em si a denúncia da função, da composição ou do modo de emprego. Eram meros nomes.

Sobre a primeira das duas palavras-chaves atrás referidas um aprendiz poderia ter, contudo (mas não tinha), uma epifania quando, glutão, jogava Pac-Man depois da jorna; quanto à segunda, fosse um pouco mais sofisticado o léxico das frequentes aulas de anatomia feminil na oficina e a luz talvez se derramasse, ainda que vagamente, sobre um aprendiz.

Um artista quando muito jovem era também não raro aprendiz de electricista e nessa função chegava regularmente ao mestre o «moscapolos» — muito antes de perceber porque é que aquela chave-de-fendas tinha direito a um nome próprio e o que havia de bizarro nesse nome de ressonâncias gregas.