domingo, 31 de julho de 2022

Padrões desportivos

Não se percebe porque dá na RTP2 e não na RTP1 a final do Campeonato Europeu de Futebol Feminino. O estádio está cheio e vibrante e o jogo cumpre os padrões: tem o número regulamentar de faltas consumadas e fingidas, a adequada intensidade dramática e teatral, o futebol é igual e tem a mesma toada rufia, cumprem-se os mínimos do regimento de tatuagens e até se levantam camisolas para limpar o suor. Só o hairstyle é menos variado e exuberante.

P.S.: Também se despem camisolas para celebrar golos. Quod erat demonstandum.

Malefícios do calor excessivo

O tipo vem pelos caminhos do parque a praguejar. Imagina-se, pelo passo acelerado e a expressão irritada, que tenha tropeçado num contratempo de que agora foge ou que o aguarde adiante uma chatice sem mais remédio do que a pega de caras; encontrou há pouco o que não quis ou tem à sua frente o que não deseja.
Quando nos passa à ilharga, ouve-se: «Que calor do caralho! Foda-se, que calor! Puta que pariu! Calor do caralho!» E a ladainha prossegue em fade out, com a sua figura a diminuir na distância — sem que tenhamos nós o benefício estético e ele a panaceia mental de estar próximo o pôr-do-sol.

Les beaux esprits...

«Aos domingos, a minha mãe era capaz de passar as primeiras horas da manhã a ler um livro de poesia e levantar-se a seguir do seu sofá junto à janela para ir matar um coelho ou uma galinha para o almoço. Segurava os coelhos pelas pernas traseiras, de cabeça para baixo, e aplicava-lhes uma pancada seca na nuca com a mão em cutelo. Por vezes precisava de meia dúzia de pancadas e, entre os golpes, o animal ficava a contorcer-se, em agonia e espasmos. Às galinhas metia-as debaixo do braço, dobrando-lhe o bico para o pescoço com a mão esquerda, de modo a expor-lhe a parte de trás da cabeça, onde iria cortar com uma faca até à morte do animal. (…) As crianças eram levadas a ver os pintainhos, mas depois de eles crescerem e ganharem penas, se assemelharem às galinhas adultas, não recebiam mais afectos, eram simplesmente tolerados à solta pelo quintal. Os coelhos, contudo, tinham um estatuto próximo dos animais de estimação. Embora raramente saíssem das suas coelheiras assentes em pernas de madeira, onde eram mantidos até ao dia em que fossem chamados a ser a iguaria na refeição, estabelecíamos com eles uma relação mais duradoura. Eu não percebia como depois a minha mãe era capaz de lhes pegar com toda a frieza ou indiferença para os espancar até à morte.

VILLA JULIANA, Rui Ângelo Araújo, Língua Morta, 2021


«…ao fim da tarde [a esposa do chefe da estação], costumava sentar-se na sala de controlo a fazer croché (…) e daquele seu croché emanava um silêncio tranquilo, e de debaixo dos seus dedos estavam sempre a aparecer mais flores e mais passarinhos; tinha diante dela, na mesa do telégrafo, um livrinho sobre o qual se debruçava a procurar novas instruções acerca de como lançar fios, como se tocasse cítara lendo a pauta. Contudo, todas as sextas-feiras matava um coelho, tirava um coelhinho da coelheira, colocava-o sobre as pernas e depois enfiava-lhe uma faca romba no pescoço e degolava pouco a pouco o animalzinho, que guinchava, guinchava durante muito tempo, até a vozita começar a fraquejar, mas o olhar da esposa do chefe da estação era o mesmo de quando fazia o seu grande napperon em croché. (…) Eu já estava a antever como ela iria matar aquele ganso, como iria escarranchar-se nele e apertar-lhe o bico laranja contra a garganta, como quem fecha um canivete; primeiro arrancar-lhe-ia uma penazita no topo da cabeça, e depois o sangue escorreria para o tacho…»

COMBOIOS RIGOROSAMENTE VIGIADOS (1965), Bohumil Hrabal, Antígona, 2022

sábado, 30 de julho de 2022

Duas no cravo. Ou na ferradura.

Eu sei que hoje, ao contrário do que aconteceu no resto da História, os leitores preferem que os escritores e os intelectuais se mantenham longe da política. Eu próprio, que não sou um intelectual e talvez nem sequer escritor, perco simpatias de cada vez que molho a pena nas tintas da guerra. É melhor ser poético ou irónico; distante, em todo o caso. Escrever sobre estados de alma ou pores-do-sol; sobre leituras serenas ou quadros bucólicos do quotidiano; fazer piadinhas. Mas o velho editorialista que há em mim não morreu e de vez em quando pede a palavra. Concedi-lhe dois parágrafos.

1. A invasão do Iraque pelos Estados Unidos, além de uma tragédia assente em mentiras, foi o maior erro estratégico do Ocidente no século XXI. Num momento de boa vontade mundial, depois dos atentados de 2001, em que os EUA poderiam ter aproveitado para purgar a alma e a sua história de manipulação e cinismo, fazem exactamente o oposto, ou seja, o mesmo de sempre, mas a uma escala maior. Associando-se àquela cruzada idiota e obscena, uma parte do Ocidente, ao arrepio da opinião pública, comprometeu a credibilidade das democracias em geral. Bush, Blair, Aznar e Barroso, e todos os que tiveram responsabilidades na farsa, deveriam ter sido julgados. Ainda o poderiam ser.

2. A história sanguinária de Putin começa em 2000 (está documentada na própria imprensa russa) e ao fim de vinte e dois anos ele enceta um movimento de sinal e magnitude pelo menos semelhantes aos de Bush. E contudo os comunistas do mundo — que são em geral boas pessoas, bem-intencionadas, e estiveram na primeira linha das manifestações de 2003 — resolvem desta vez contemporizar. Não é que sejam favoráveis às atrocidades de Putin — é, suspeito, que encaram a ideologia como uma religião e a Rússia como o seu santuário. Nada que vem da pátria ou da casa de Deus é mau: quando muito, é incompreensível para o entendimento humano. Foram necessárias décadas para que muitos intelectuais e plebeus se desvinculassem do mau comunismo soviético e da sua pátria terrena. Alguns nunca o fizeram. Não podem por isso ser acusados de cederem à mística de Putin (não lhes façam essa injustiça), mas de permanecerem devotos a um paraíso artificial, embriagados sem causa. Ou casa.

sexta-feira, 29 de julho de 2022

Pescador do futuro perdido

Para ver a bóia, o pescador debruça-se sobre a amurada da ponte. Não porque a altura seja muita, mas porque a água é pouca. O rio vai secando e o contumaz pescador aponta a cana verticalmente a uma poça que parece pouco mais do que o resultado de uma chuvada num caminho de pó, onde não cabem carpas nem trutas e na verdade talvez nem sequer haja peixe. É a imagem de uma seca que perdura, mas talvez seja também o vislumbre de um futuro não muito distante em que das premissas da pesca apenas sobram a cana, o pescador e uma fome pouco gastronómica.

domingo, 24 de julho de 2022

Hotel do Norte revisitado

Rui Almeida, na sua página de Facebook, sobre o Hotel do Norte:

«Estará, neste final de Julho, a completar 46 anos uma das personagens deste romance, 'Hotel do Norte' (Companhia das Ilhas, 2017), de RUI ÂNGELO ARAÚJO, que acabei de ler ontem à noite. Seria fácil nomear o edifício que dá nome ao livro como a personagem principal, pois é a presença permanente em todo o enredo, nos vários tempos distintos em que se desenrola. Mas não: há uma sobreposição das personagens ao espaço, não são apenas figuras a movimentarem-se num cenário – antes pelo contrário, cada uma delas (as seis ou sete que mais importam à história, mas também outras) são pessoas a quem podemos vislumbrar o mais fundo do perfil psicológico, as motivações, as dúvidas, as angústias, os sonhos.
O núcleo temporal da história é 1975 (continuando para o ano seguinte), com a presença no Hotel do Norte de cerca de centena e meia de homens e mulheres vindos das antigas colónias portuguesas, agora independentes – os chamados "retornados". Mas a narrativa desloca-se alternadamente para 2008 e para 1941 (e, apenas uma vez, para 1970), num exercício de apelo à perspicácia do leitor para ir percebendo os pontos de ligação entre eles. Há uma história que é contada, há pessoas, cada uma delas com a sua complexidade, há um cenário que as congrega. Há depois momentos que nos trazem luz a situações que poderiam ser de outro qualquer contexto e passam despercebidas: o racismo quase inconsciente a aflorar de raivas sufocadas; o desequilíbrio nas relações entre homem e mulher, com suas pequenas e grandes violências; a hipocrisia banalizada.
É um belíssimo livro, que se lê com muito gosto, mas que exige disponibilidade para pensar.»

sábado, 2 de julho de 2022

Dilema moral em modo Matrix

Na corrida de ontem o meu dilema foi maior e tive de pensar rápido. À minha frente na vereda por onde seguia, o chão estava pejado de formigas, tantas e numa distribuição tão densa que não havia para onde desviar o pé. Elas tinham os meios para evitar o desastre (eram formigas com asas), mas por alguma razão não estavam a socorrer-se deles. A inércia da corrida e a inércia de cinco décadas encaminhavam-me para uma carnificina, e nos segundos de que dispunha antes de passar pela concentração formigueira como duriense em lagar pensei nas hipóteses que havia. Saltitar pé ante pé nos espaços em branco não era possível, os bichinhos espalhavam-se no saibro como nós de rede de pesca ilegal. Passar por ali em pontas de ballet também não funcionaria, nem que a anatomia desta vez resolvesse colaborar: a rede era mesmo apertada. Ainda que fosse ultra-rápido a descalçar as sapatilhas, como o Neo na Matrix a desviar-se das balas, estava-me vedado, por razões de natureza pessoal, invocar dotes culturistas e saltitar apenas nas pontas dos dedões dos pés, como certos atletas fazem flexões. A única solução, concluí, pensando dentro do mesmo campo semântico onde tinha origem o meu dilema moral, era levitar. Na ponta extrema do último segundo antes de me tornar a chuva de meteoritos daquele mundo de formigas, meditei empenhadamente e, como por milagre, levitei durante umas fracções do segundo seguinte  por cima dos primeiros espécimes, a olhar para baixo com alívio e assombro e uma sensação épica cinematográfica. Depois acabou a fita ou algo perturbou o meu estado zen e os pés voltaram a cair um após o outro na cadência regular da corrida, quebrando exoesqueleto atrás de exosqueleto.
Ter-se-iam poupado mais vidas se tivesse tentado o triplo salto.