«Aos domingos, a minha mãe era capaz de passar as primeiras horas da manhã a ler um livro de poesia e levantar-se a seguir do seu sofá junto à janela para ir matar um coelho ou uma galinha para o almoço. Segurava os coelhos pelas pernas traseiras, de cabeça para baixo, e aplicava-lhes uma pancada seca na nuca com a mão em cutelo. Por vezes precisava de meia dúzia de pancadas e, entre os golpes, o animal ficava a contorcer-se, em agonia e espasmos. Às galinhas metia-as debaixo do braço, dobrando-lhe o bico para o pescoço com a mão esquerda, de modo a expor-lhe a parte de trás da cabeça, onde iria cortar com uma faca até à morte do animal. (…) As crianças eram levadas a ver os pintainhos, mas depois de eles crescerem e ganharem penas, se assemelharem às galinhas adultas, não recebiam mais afectos, eram simplesmente tolerados à solta pelo quintal. Os coelhos, contudo, tinham um estatuto próximo dos animais de estimação. Embora raramente saíssem das suas coelheiras assentes em pernas de madeira, onde eram mantidos até ao dia em que fossem chamados a ser a iguaria na refeição, estabelecíamos com eles uma relação mais duradoura. Eu não percebia como depois a minha mãe era capaz de lhes pegar com toda a frieza ou indiferença para os espancar até à morte.
VILLA JULIANA, Rui Ângelo Araújo, Língua Morta, 2021
«…ao fim da tarde [a esposa do chefe da estação], costumava sentar-se na sala de controlo a fazer croché (…) e daquele seu croché emanava um silêncio tranquilo, e de debaixo dos seus dedos estavam sempre a aparecer mais flores e mais passarinhos; tinha diante dela, na mesa do telégrafo, um livrinho sobre o qual se debruçava a procurar novas instruções acerca de como lançar fios, como se tocasse cítara lendo a pauta. Contudo, todas as sextas-feiras matava um coelho, tirava um coelhinho da coelheira, colocava-o sobre as pernas e depois enfiava-lhe uma faca romba no pescoço e degolava pouco a pouco o animalzinho, que guinchava, guinchava durante muito tempo, até a vozita começar a fraquejar, mas o olhar da esposa do chefe da estação era o mesmo de quando fazia o seu grande napperon em croché. (…) Eu já estava a antever como ela iria matar aquele ganso, como iria escarranchar-se nele e apertar-lhe o bico laranja contra a garganta, como quem fecha um canivete; primeiro arrancar-lhe-ia uma penazita no topo da cabeça, e depois o sangue escorreria para o tacho…»
COMBOIOS RIGOROSAMENTE VIGIADOS (1965), Bohumil Hrabal, Antígona, 2022
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