sexta-feira, 29 de julho de 2011

A arte de demolir

Talvez não seja culpa dele (não é certamente), mas pelo que se vai lendo na imprensa o Secretário de Estado da Cultura parece mais um liquidatário, alguém contratado pelo Governo para conduzir o processo de falência de uma pasta. Começou pela auto-despromoção: Viegas deve ser o único convidado para um cargo que impôs como condição prévia a imediata regressão na carreira. Nos últimos dias, a imprensa citou-o a determinar que Portugal tem equipamentos culturais a mais. Deverá seguir-se, naturalmente, o anúncio de que a SEC cabimentou uma verba para explosivos.


Era uma ideia antiga pensar-se que os ministros e os secretários de estado concebiam e aplicavam políticas de gestão e de fomento da área que tutelavam. Hoje sabe-se que não é assim. Um ministro do ambiente não é necessariamente alguém que se preocupa com o ambiente. Pode simplesmente ser o tipo que facilita a aprovação dos PINs, pouco mais do que o funcionário que põe os carimbos, uma espécie de insider a trabalhar para a indústria.

Na cultura, um secretário de estado pode ser apenas alguém que vem corrigir a malta, acabar com veleidades. Chama-se secretário de estado mas poderia chamar-se, à boa maneira antiga, inspector, o tipo que vinha de fora observar o comportamento de determinada classe profissional e, geralmente, levantava uns autos e recomendava umas punições exemplares.

Segundo a imprensa, o Secretário disse que não há público para tantos equipamentos. A gente, iludida, esperaria ler no parágrafo seguinte as medidas que o Estado iria pôr em prática para formar públicos (porque, ao que parece, população ainda vai havendo). Mas não, ingénuos. A Secretaria de Estado, tanto quanto é sabido, não se deteve nesse item — talvez ocupada a trocar impressões com a Secretaria das Obras Públicas sobre os melhores métodos de demolição.

Numa entrevista ao I em 14 de Maio, o futuro SEC perguntava-se: «Como é que é possível ter público se as escolas não têm educação artística?» Imaginava a gente que isto era uma pergunta programática, algo que enunciava uma estratégia. Agora sabe-se que não. Era apenas uma constatação. Na verdade, o que ali se dizia era: uma vez que as escolas não têm ensino artístico, não é possível ter público. Não havendo público, há equipamentos a mais. Logo, implodam-se equipamentos.

Não estava na entrevista, mas a gente, seguindo aquela linha de pensamento (errónea, como já vimos), poderia ser levada a fazer outras perguntas. Tipo: como é possível haver público se as televisões, com a RTP1 à cabeça, são monumentos à indigência intelectual, super-activas agências de promoção da cultura pimba? Como é possível haver públicos se na própria RTP1, que os nossos impostos pagam, qualquer coisa que cheire a bom gosto (para não falar em arte ou qualidade) é de imediato banida?

A resposta a esta questão parecia-nos ser já conhecida, parecia estar no programa eleitoral do PSD: imploda-se a RTP1… Ok, não era bem isto. O que aquelas almas liberais propunham era a privatização de um canal da RTP. (Repare-se: um canal da RTP. Assim desta forma vaga. Teriam a esperança de que alguém pegasse por elas na RTP2 e fizesse o serviço público que o Estado não faz? Ou foi apenas a maneira bizarra que arranjaram de dizer que vendiam um canal mas ficavam com a máquina de propaganda?)

A privatização de um canal da RTP não é bem uma implosão. O edifício destruído não serve para mais nada, enquanto o edifício privatizado, e isto é importante, permite que a merda continue a ser feita. (Felizmente já sem os nossos impostos.) De resto, ao Estado não compete formar (ou proteger) culturalmente os cidadãos, dirão.

Mais à frente na mesma entrevista ao I, o Secretário de Estado acrescentava: «Não podemos ter gente culta se não tivermos quem tenha contacto com bens da cultura.» Ora, isto pode resolver-se, pensou a SEC. Pode resolver-se pela, por assim dizer, disseminação de equipamentos. Isto não é incoerência, trata-se de outro tipo de disseminação. Tal como milhares tiveram contacto com a História quando guardaram o seu recuerdo do Muro de Berlim, milhares poderão ter o seu pedaço de cultura se os equipamentos forem redistribuídos — depois de implodidos.

Sabendo-se que, ao contrário do que o vulgo acredita, o Estado não tem investido praticamente nada nos equipamentos culturais do país (pelo menos fora de Lisboa e Porto), intriga um pouco esta preocupação com o excesso de equipamentos. Terá afinal a SEC em mente uma política de, digamos, fomento cultural? É um bocado estranho, mas pode acontecer, sabe-se lá.

Talvez a SEC, num devaneio, tenha pensado: «Ora vamos lá contribuir para o desenvolvimento, para a descentralização cultural, para a democratização do acesso à cultura.» Depois, a SEC pegou na máquina de calcular e descobriu que o que tinha para investir era uma miséria, se tivesse de o dividir nem para uma bica dava. Portanto: implodam-se equipamentos culturais.

Ainda na (pela minha mão agora famosa) entrevista ao I, lia-se «…as câmaras patrocinam através das empresas [municipais] a música pimba.» Eis uma preocupação séria. E não se pense que a SEC deixou de estar preocupada com o assunto. Não. Continua muito, muito preocupada. A SEC sabe que, sem o Estado e em época de crise, as câmaras cortarão no seu investimento cultural (como aliás lhes é pedido). A SEC sabe que os equipamentos culturais (que nos últimos dez anos deram uma ilusão de cosmopolitismo e descentralização ao país) correm o risco de ficarem sub-orçamentados. E a SEC sabe que as câmaras patrocinam a música pimba. A SEC sabe que música pimba será quase tudo o que os equipamentos culturais darão ao país. A SEC não quer isso, mas, claro, está impotente. Portanto, a SEC não tem dúvidas que o melhor é (isso mesmo, todos em coro) — implodir equipamentos culturais. Quem sentir falta pode sempre deslocar-se ao Porto ou a Lisboa, consoante der mais jeito. Era assim antigamente, que mal tem se voltar a ser?

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Os EUA não são Portugal, apenas viajam no mesmo barco

Não vale a pena perder tempo a ponderar de que modo as palavras de Obama se relacionam com o brio nacional (luso e grego). Também não é crucial saber se em algum momento da história outro presidente dos EUA teve de lembrar a grandeza daquele país comparando-o com minorcas. E se isso revela um presidente enfraquecido ou desesperado. O que ressalta da famosa frase de Obama é o seu carácter involuntário de alarme, de sinal de falha da máquina. Algo está a colapsar no admirável mundo da economia: talvez afinal o sistema tal como o têm vindo a conceber não funcione.

Antes de privatizar o país, Passos Coelho devia deitar um segundo olhar à América, questionar a receita, duvidar da eterna bondade e eficácia dos mercados. Poupava-se algum trabalho quando, dentro de algum tempo, alguém tiver de apanhar os cacos na Europa e na América. 

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Notas para que a namorada não mais me acuse de ser direitista.

1. A conjuntivite da direita
De repente, a Moody’s (para já ela) está errada, é mal intencionada, tem uma agenda, a bandida. Sócrates, percebemos agora, não era só um mau primeiro-ministro — era um argueiro no olho da direita portuguesa. Ou isso ou Passos Coelho é um colírio. Aquilo que nós, simples cidadãos ignorantes de economia, tínhamos intuído há meses, descobriu-o agora com horror a cândida direita lusa. Foi o país a eleições para quê? Para aliviar a conjuntivite da direita? Mas isso não devia ser função de um sistema de saúde privado? Como justificar perante a troika tamanho mau uso dos recursos nacionais?

2. O casus belli
Alguma da direita portuguesa que bloga ou opina nos jornais não é mal intencionada — é cândida. Ou estúpida. (A restante é estúpida e mal intencionada). A invasão do Iraque foi a primeira prova. Que candidez. Que deslumbramento. Que emoção. Desde os soldadinhos de chumbo nos egrégios mosaicos do solar-lá-nas-berças-onde-se-vai-uma-vez-por-Verão que não havia adrenalina assim. Depois, quando o embuste deu à costa, o espectáculo foi comovente. Houve confissões de candura que eram, por si só, epitáfios de um cérebro que se preza, a carta de despedimento que antecede um harakiri. (E contudo, como diria Galileu, esta direita continuou a mover-se.) Houve, em alguns casos, contorções que não envergonhariam as antigas ginastas… soviéticas. E, naturalmente, houve cinismo: precisamos do petróleo, não é? O dirty job que alguém tem de fazer — a direita mais que todos.

3. Mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma
Agora a mesma direita achou que o que fazia falta a Portugal era mudar de políticas, mudar de paradigma. Daí termos um governo mais troikista do que a troika — um herói trágico, peripatético, um Zezé Camarinha de estola a quem afinal as agências dizem I’m not in the mood.
Não ocorre a estas irrequietas sinapses de direita que o que faz falta a Portugal é mudar de práticas. A incompetência, o despesismo, o compadrio, a corrupção, o arrivismo são os grandes males da economia portuguesa, não a social-democracia que querem enterrar. Talvez Passos Coelho, depois de ter passado pela reunião dos autarcas portugueses (esmagadoramente PS e PSD, como se sabe), possa ter recordado algumas verdades sobre este assunto que nas últimas décadas tem unido laboriosamente tantos socialistas e pepedês.

4. Liquidação total
Esta direita em Portugal não deveria ser governo — devia ser liquidada num mercado de (penas) capitais.