Diz a Wikipédia que é «um estado psíquico
de depressão com ou sem causa específica» e se caracteriza «pela falta de entusiasmo e
predisposição para actividades em geral». Não parece a descrição da minha
patologia. Se é certo que a maioria das actividades em geral me parece repulsiva quando me inclino para ouvir “Gallows” em loop, a verdade é
que nestes momentos sinto um grande entusiasmo literário.
Os frívolos dirão que literatura não é actividade, e terão a sua razão terrena.
Mas quem se interessa por actividades quando tem as CocoRosie a sussurrar-lhe
ao ouvido canções de assombramento, uma pilha de livros à distância de um braço
e disposição para reescrever o mundo em vários tomos? Quem se interessaria por
um emprego, uma comunidade, um país ou um planeta se pudesse simplesmente permanecer
arrebatado?
terça-feira, 26 de novembro de 2013
Melancolia
segunda-feira, 25 de novembro de 2013
A carranca do vizinho
Parque de estacionamento, à espera que o portão se abra. O
vizinho chega ao fundo da rampa e o morador recua. O vizinho cruza com o seu
automóvel a entrada assim franqueada, passa ao lado do Chevrolet-dos-tesos do
morador e nem um gesto de gratidão, nem um meio sorriso de reconhecimento, nem um
aceno de cabeça que o faça descer do pedestal de repulsiva sobranceria a que ascendeu.
Também costuma, na sua impaciência de ridículo aristocrata, subir a rampa ao
mesmo tempo que as pessoas a descem a pé, obrigando-as a colar-se à parede.
O morador recorda-se de o ver no parque, «um advogado e um pastor alemão com o mesmo ar de poucos amigos, ambos sem açaimo». Felizmente
que neste jogging arrastado em dia de
alma de chumbo são outros os bichos que passeiam. Alguém traz um cão vivaço e
curioso. Trocam olhares cúmplices a propósito do bicho e abrem-se sem
resistência os sorrisos. Dois perfeitos estranhos cruzam-se e desnudam a alma
numa partilha espontânea, despretensiosa, franca, uma repentina felicidade a
propósito de nada, um nada que a carranca do vizinho obviamente desconhece e
que ao morador faz esquecer a carranca do vizinho pelo resto do dia. Até à hora
ritual em que os demónios são convocados para exorcismo. Xô!
domingo, 24 de novembro de 2013
«A esquerda sem povo»
A propósito deste pragmático artigo de Jorge Almeida Fernandes no Público, recordei uma passagem do meu ainda inédito Aranda, escrita há três anos:
«Era difícil, mesmo para alguém de esquerda como ela teimava em se dizer, refutar tal argumentação. O povo que a esquerda queria defender — as classes inocentes, oprimidas, ansiosas pela emancipação económica e intelectual — era um grupo residual ou não existia para lá do imaginário socialista; a História ultrapassara as ideias, retirara-lhes massa humana a que elas se pudessem aplicar, e essa era uma vitória do capitalismo e da democracia. Talvez por isso a ecologia tinha a importância que tinha para os pensadores de esquerda, pessoas no fundo com a consciência de que tinham perdido os humanos. Viravam-se para as outras formas de vida porque a Natureza se prestava facilmente, credivelmente, ao papel de vítima, tão necessário ao socialismo. Era o povo quem tornava as coisas difíceis. Como se podia defender mais democracia, uma maior identificação da política com a comunidade se ambas eram já o reflexo uma da outra? O que a esquerda tinha a fazer, achava Inês, era tornar-se realista e reconhecer que não tinha uma base social de apoio: o inimigo era a direita e o povo, afinal intensamente reaccionário, burguês e corrupto.»
«Era difícil, mesmo para alguém de esquerda como ela teimava em se dizer, refutar tal argumentação. O povo que a esquerda queria defender — as classes inocentes, oprimidas, ansiosas pela emancipação económica e intelectual — era um grupo residual ou não existia para lá do imaginário socialista; a História ultrapassara as ideias, retirara-lhes massa humana a que elas se pudessem aplicar, e essa era uma vitória do capitalismo e da democracia. Talvez por isso a ecologia tinha a importância que tinha para os pensadores de esquerda, pessoas no fundo com a consciência de que tinham perdido os humanos. Viravam-se para as outras formas de vida porque a Natureza se prestava facilmente, credivelmente, ao papel de vítima, tão necessário ao socialismo. Era o povo quem tornava as coisas difíceis. Como se podia defender mais democracia, uma maior identificação da política com a comunidade se ambas eram já o reflexo uma da outra? O que a esquerda tinha a fazer, achava Inês, era tornar-se realista e reconhecer que não tinha uma base social de apoio: o inimigo era a direita e o povo, afinal intensamente reaccionário, burguês e corrupto.»
quinta-feira, 21 de novembro de 2013
Já estou a notar o vosso olharzinho irónico
Nesta fotografia de uma leitora, tirada na FNAC (Chiado?), Os Idiotas estão entalados entre a
Margarida Rebelo Pinto e o Valter Hugo Mãe.
(clique)
segunda-feira, 18 de novembro de 2013
Conservador
Nos anos do Independente
sentia-me um pouco de direita. Não exactamente por partilhar de ideais politicamente
conservadores. Mas porque, consciente ou inconscientemente, queria estar do
lado da inteligência, do humor, da rebeldia, da iconoclastia, e estas coisas,
como se sabe, no Portugal dos anos 90 estavam no Indy (e na Kapa). Posteriormente,
aprendi que o liberalismo da direita era final bem pouco liberal em demasiados
assuntos e afastei-me. De qualquer modo, o jornal e a revista tinham acabado. E
a direita estava a ficar cada vez mais estúpida também no que se referia às
artes e à paisagem, coisas para mim caras. Com a crise iniciada em 2008, um
decidido misantropo como eu descobre a sua paradoxal costela humanista e solidária e chega-se
mais à esquerda do que nunca, embora a nenhuma esquerda organizada
politicamente.
Hoje sou sobretudo um desiludido do capitalismo, essa oligarquia, e um
conservador. Sim, leram bem, um conservador. O que se vê na foto é parte do que
eu conservaria rigorosamente sem alterações, sem uma árvore abatida, caso mandasse.
Claro que se mandasse, também restringiria implacavelmente o acesso ao local. Todos os conservadores são na verdade antropófobos, e o direito à propriedade, que aqui reivindico, é instrumental para o cumprimento da vocação.
[Romanas, 17.11.2013]
As costas largas da crise
A Lua este domingo pôs-se antes de nascer. Cerca de 12 horas antes.
Como ela, também tenho dias de acabar antes de começar, apesar de todos os planos,
de todas as expectativas. Mas no meu caso não há nada daquela exuberância da
lua cheia, que inspira e promete quer esteja a subir no firmamento, quer esteja
no seu ocaso. Comigo é um balão a esvaziar-se, com o silvozinho embaraçoso e
tudo. Um desânimo, uma desistência, um drama de nada vale a pena nem que a alma
seja grande.
Que sorte haver uma crise a quem deitar as culpas — e isso não ser completamente
mentira.
(clique)
domingo, 17 de novembro de 2013
Casal a vozes
Nos sessentas, bem-parecidos, melhor vestidos, ele tem voz de castrato e ela, por um daqueles
mecanismos compensatórios da natureza ou pelo espírito de contradição habitual entre
alguns casais, dir-se-ia que imita Tom Waits. São por isso um par curioso mas
verdadeiramente complementar. A cantar a vozes não ficariam nada mal perante a
dupla Simon & Garfunkel, mas a discutir desafiam os nossos mais embaraçosos
preconceitos. Sobretudo quando ele guincha que as mulheres são todas iguais e
ela, com uma baforada e voz cava, lhe chama machista de merda.
Amigos
São clientes um do outro e como a jornada de trabalho se prolongasse
acabaram a jantar juntos. Entre as manteiguinhas e o prato foram as juras de
amizade. «Tu sabes que eu sou teu amigo.» «Fiz aquilo porque sou teu amigo.» «Com
os meus amigos é assim.» «Digo-te isto porque sou teu amigo.» «Se não fossemos
amigos…» À sobremesa a amizade entrara num outro nível. «Ouve, eu sou teu
amigo!» «Se és meu amigo…» «Um amigo não…» «Não é por seres meu amigo que…»
«Teu amigo o caralho!» Depois do café e do bagaço tiveram de ser separados pelo
chefe de mesa, com a ameaça de que chamaria a polícia.
A manchete do JN
Ainda não percebi se o vizinho do rés-do-chão deixa quotidianamente o
jornal à sua porta depois de o ler ou se lho entregam tarde e ele apenas o
recolhe no dia seguinte. Seja como for, todos os dias leio a manchete do JN ao regressar
a casa — e, graças sejam dadas aos cinquenta e quatro degraus que entretanto
venço, todos os dias a tenho já esquecida quando entro em casa.
quarta-feira, 13 de novembro de 2013
A perdulária arte de chegar tarde
Depois de quase todos o literatos do país terem dado o seu contributo
para o debate facebookiano que espoletou um post
de José Mário Silva sobre um comentário (crítico) de Luís Quintais a uma
crítica (elogiosa) de José Mário Silva no Actual,
a coisa provavelmente esmorecerá. Mais uma vez, cheguei tarde. Damn it!
terça-feira, 12 de novembro de 2013
De donde és?
Aquelas duas aldeias eram conhecidas pelo afinco que os habitantes
tinham à terra, particularmente a rapaziada mais nova. Numa altura em que a
juventude estava toda a emigrar, os moços e as moças dali permaneciam,
raramente se afastando das povoações, aliás. Também eram conhecidos pela
timidez, mas nunca ninguém ligou muito as duas coisas. Ou se ligavam era com um
raciocínio incompleto: imaginavam que a timidez se devia a nunca terem saído, a isso lhes ter gravado no carácter um proverbial acanhamento provinciano. A verdade era um
pouco diferente. Não saíam porque tinham vergonha de responder se alguém nos
longes onde fossem parar lhes perguntasse de onde eles eram — e eles eram, sem
culpa disso mas embaraçados por isso, do Monte das Pitas e do Sítio da Éguas.
(Ideia de e dedicado a A. P.)
segunda-feira, 11 de novembro de 2013
Talvez coisar
Ouço no programa do provedor de uma rádio que ouvintes se queixam de
passarem ali músicas com palavrões. (Um dos exemplos é “Anos de bailado e
natação”, o belíssimo tema dos Mundo Cão com letra feliz de Valter Hugo Mãe de
que já aqui falei.) Isto no mesmo santo
dia em que a televisão dedica todo o período da tarde a fazer desfilar um
inesgotável repertório de grosseria e brejeirice.
Pergunto-me se os provedores das TVs (existem?) recebem queixas de
badalhoquices verbais no pequeno ecrã, mas suspeito que não. A cultura pimba é
ali hegemónica ou exclusiva. E, mesmo que não primem pela subtileza ou pela
elegância, os letristas pimba conseguem nos seus trocadilhos soezes evitar nomear
as coisas de que obsessivamente se ocupam. Ora, a hipocrisia nacional tolera o
mau-gosto, o machismo, a misoginia, a homofobia, o kitsch mais obsceno e a mais estridente ausência de talento — mas
nunca o vernáculo radiotransmitido.
Se não tivesse há muito sido banida qualquer forma de arte da TV lusa,
os Mundo Cão teriam na conjugação do verbo foder, ainda que poética, a razão do
seu ostracismo hertziano.
sábado, 9 de novembro de 2013
O elogio do grupo
(Ensaio de um ex-baixista frustrado)
Não sei se por ter sido baixista e na definição clássica um baixista ser um guitarrista sem talento e frustrado, sinto grande simpatia pelos membros esquecidos das bandas. Por exemplo, fico retrospectivamente contente quando leio que Morrissey perdeu o diferendo jurídico que manteve com o baterista dos Smiths. É que, embora se saiba que o génio de um grupo é quase sempre individual ou, vá lá, bicéfalo, não é menos verdade que na maior parte dos casos tudo o que de realmente genial esses génios individuais fizeram aconteceu enquanto estavam no grupo. O que são Lloyd Cole sem os Commotions, Roger Hugdson sem os Supertramp, Roger Waters sem os Pink Floyd, John Lennon e McCartney sem os Beatles, o próprio Morrissey sem os Smiths? Génios, é verdade. Mas génios menores. Talvez eu pudesse idolatrar o trabalho deles a solo se não os tivesse ouvido antes, quando tinham um grupo. Assim, apenas posso amar as suas carreiras a solo.
Não sei se por ter sido baixista e na definição clássica um baixista ser um guitarrista sem talento e frustrado, sinto grande simpatia pelos membros esquecidos das bandas. Por exemplo, fico retrospectivamente contente quando leio que Morrissey perdeu o diferendo jurídico que manteve com o baterista dos Smiths. É que, embora se saiba que o génio de um grupo é quase sempre individual ou, vá lá, bicéfalo, não é menos verdade que na maior parte dos casos tudo o que de realmente genial esses génios individuais fizeram aconteceu enquanto estavam no grupo. O que são Lloyd Cole sem os Commotions, Roger Hugdson sem os Supertramp, Roger Waters sem os Pink Floyd, John Lennon e McCartney sem os Beatles, o próprio Morrissey sem os Smiths? Génios, é verdade. Mas génios menores. Talvez eu pudesse idolatrar o trabalho deles a solo se não os tivesse ouvido antes, quando tinham um grupo. Assim, apenas posso amar as suas carreiras a solo.
Há algo num colectivo que faz
o som de uma banda. Uma banda pode ter num tipo que se limita a abanar a
pandeireta um elemento fundamental. Toda a gente sabe abanar uma pandeireta,
mas só quem bebe connosco ou fuma connosco abana a pandeireta daquele jeito que
o grupo precisa. É corrente gozar-se com Ringo Starr, mas o que seriam os Beatles
se na bateria tivessem John Bonham? Diferentes, claro, mas também piores, acreditem. A genialidade dos
grupos pop/rock não está apenas no talento dos seus instrumentistas ou
compositores, mas no cozinhado que eles conseguem fazer com as diferentes
capacidades e contribuições dos seus elementos. Um hit pop é um acidente no
universo da música. Tem menos a ver com o virtuosismo das partes do que com o
cruzamento delas. Em rigor, não há filhos sem pai ou sem mãe. Frequentemente,
apenas um dos progenitores tem genes que se aproveitem (e, tantas vezes,
nenhum), mas a beleza de alguém é sempre um cocktail
que resulta da sacudidela conjugal. Ou de haver sorte no banco de esperma.
Os génios que se lançam numa carreira a solo cometem o pecado da
soberba. Se não conseguem deixar de se zangar com os bandmates, deviam ter a coragem de se reformarem ou morrerem para
deixar o mito intacto. Mas não, suas excelências acham que ainda têm muito para
dar (e é verdade) e vão para estúdio com um conjunto de tipos contratados à
espera que a magia aconteça entre estranhos como entre íntimos. Os músicos
contratados ou requisitados para acompanhar vedetas recém-divorciadas são
tratados com paninhos quentes (no caso de serem eles próprios vedetas de outras
proveniências) ou como escravos. Ora, com escravos fazem-se pirâmides, não
música. E a cordialidade entre pares dá palmadinhas e salamaleques coreográficos,
não canções.
Acresce que o génio desagrupado tende a achar que, desde que tecnicamente
correcta, é indiferente a linha de baixo, a malha de guitarra, a agitadela da
pandeireta que passam a acompanhar a sua música. Na sua arrogância recém
adquirida (ou exacerbada), julgam auto-suficiente a canção que compõem. E por
isso gravam discos sem personalidade, ou com a personalidade de um grupo de swing (um grupo de adeptos da troca de
pares sexuais, excitante, mas inconsequente). Pressente-se ali o talento
melodioso do compositor, a voz distinta, a interpretação temperamental — mas como
ecos do passado. The Pros and Cons of
Hitch Hiking podia ser um bom álbum, mas sem os Pink Floyd é um fraco sucedâneo
de The Wall. (Pelo seu lado, A Momentary Lapse of Reason por não ter Roger
Waters tem muita dificuldade em parecer música.)
Quando se esteve num grupo, não se devia pretender a arrogância de uma carreira
a solo. Quem quer uma carreira a solo chama a si próprio desde o início David
Bowie e calça-lhe os sapatos de plataforma.
Fica aqui o meu elogio aos grupos — e a minha frustração por, enquanto ex-baixista,
não ter um grupo a quem pedir indemnização.
sexta-feira, 8 de novembro de 2013
«Vá cortar as unhas!»
Coisas que me dispuseram bem no Facebook hoje:
- Chamarem Tico e Teco aos dois neurónios de Margarida Rebelo
Pinto.
- Dizerem-lhe: «Vá cortar as unhas»
Coisas que me dispuseram mal:
- Um link para um artigo do Público onde Pedro Lomba mostra como
também sabe ser hipócrita. Ou parvo.
Há uns tempos o problema era a produtividade, a função pública
precisava de trabalhar mais horas. Hoje soubemos que afinal a função pública
pode trabalhar menos horas e que isso, levar mais horas mas menos dinheiro para
casa, é bom para as famílias. O empobrecimento passou de necessário a bom.
É como a demografia: a direita tonta que Lomba frequenta (e que, por
contágio, o entonteceu) não se cansou durante anos de alertar para a o problema
de uma demografia envelhecida, era preciso combater o aborto e fazer filhos,
ter grandes e sólidas famílias tradicionais, monárquicas também podia ser.
Depois os tontos, muito educadinhos e aperaltadinhos e sabujinhos, abriram a
porta à tia troika e foram para o poder com pins
na lapela (ler a crónica de Lobo Antunes é imprescindível) e afinal já não
importava nada envelhecer o país mandando os jovens emigrar.
Estes bebés prematuros, espermatozóides de gravata ao pescoço, acham
que os outros tiveram o mesmo tipo de desenvolvimento intelectual que eles, que
também formaram pensamento e currículo na incubadora da Alfredo da Costa. A
desfaçatez é tão grande e tão óbvia que num acesso de ternura, como os que por
vezes se tem perante os tolinhos da aldeia, somos inclinados a pensar que
tomarem-nos por parvos é a maneira deles um elogio, é dizerem-nos que nos
consideram seus iguais.
É que tipos destes chegam a acreditar nas imbecilidades que dizem. Não
se importam de ser parvos em nome da causa.
Sacrificam a sua inteligência (considerando a possibilidade de terem mais do que
um Tico e um Teco debaixo da melena beta) e a sua honra em nome de um bem superior (uma entidade tão
insondável quanto os mercados, possivelmente um heterónimo destes). Tais secretários de estado
e assessores so british, com muito
ciência política à inglesa (a francesa é hó-rro-ro-sa!), são as tias louras da
direita tonta portuguesa.
terça-feira, 5 de novembro de 2013
Portugal na cauda da Europa
Sobre esta notícia, se alguém lhe ligar, haverá duas escolas analíticas.
A vasco-pulidiana dirá que é assim porque somos um país subdesenvolvido
economicamente: só o bem-estar económico favorece o ócio e a curiosidade intelectual
ou cultural. A oposta dirá que temos uma economia fraca porque somos subdesenvolvidos cultural e intelectualmente. E, enquanto
as elites debatem entre si o velho e na verdade fútil enigma da galinha e do ovo,
o país, entregue a si próprio, contínua desinteressado quer da cultura, quer da
economia.
sábado, 2 de novembro de 2013
sexta-feira, 1 de novembro de 2013
O amor em Portugal
— Não ficavas feliz se te saísse [o euromilhões]?
— Feliz fiquei foi quando a conheci.
A confidência, inesperada, embaraçou por instantes os comensais. O tom era rude, mas segundo se diz nada impede os brutos de amarem.
Na verdade, havia uma cumplicidade amorosa entre o casal. Corroboravam-se mútua e jovialmente na conversa animada que mantinham com o resto da mesa, nas histórias que contavam. Havia um ligeiro tom dissonante: os episódios acerca da mulher eram quase sempre elucidativos da dureza dela — eram os feitos ao volante, os feitos ao balcão, a sua resistência física ao esforço e os copos que ela aguentava —, mas quem não está disposto a dar uma oportunidade ao amor?
Riam bastante das coisas um do outro e em nova tirada repentina, como que a sublinhar o entusiasmo e o orgulho nela, ele anunciou à mesa que nessa noite pinariam.
Tudo era afeição e brejeirice e picardia. Como quando, respondendo a uma pequena divergência num relato, ele anunciou no mesmo tom folgazão, com a mesma aparente intencionalidade histriónica, que lá em casa ela apanharia. Ou quando, ela reincidindo, o eufemismo e o verbo mudaram para enfardar. À terceira originalidade da mulher ele perguntou-lhe, como antes lhe revelara o desejo sexual, se ela queria ser humilhada já ali na frente de todos.
Talvez ele estivesse, de novo, a ser apenas jocoso, certo de que o seu rude e provocador sentido de humor tinha já sido percebido por todos. Talvez a insinuação de bruteza fosse instrumental, constitutiva da persona dominadora mas apaixonada que ele interpretava.
Ou talvez ela não tivesse ensaiado mais nenhuma dissidência por ter notado que nenhum dos circunstantes contestara que apenas ela seria humilhada se enfardasse ali diante de todos. Ou onde quer que fosse, incluindo mais tarde, em casa.
— Feliz fiquei foi quando a conheci.
A confidência, inesperada, embaraçou por instantes os comensais. O tom era rude, mas segundo se diz nada impede os brutos de amarem.
Na verdade, havia uma cumplicidade amorosa entre o casal. Corroboravam-se mútua e jovialmente na conversa animada que mantinham com o resto da mesa, nas histórias que contavam. Havia um ligeiro tom dissonante: os episódios acerca da mulher eram quase sempre elucidativos da dureza dela — eram os feitos ao volante, os feitos ao balcão, a sua resistência física ao esforço e os copos que ela aguentava —, mas quem não está disposto a dar uma oportunidade ao amor?
Riam bastante das coisas um do outro e em nova tirada repentina, como que a sublinhar o entusiasmo e o orgulho nela, ele anunciou à mesa que nessa noite pinariam.
Tudo era afeição e brejeirice e picardia. Como quando, respondendo a uma pequena divergência num relato, ele anunciou no mesmo tom folgazão, com a mesma aparente intencionalidade histriónica, que lá em casa ela apanharia. Ou quando, ela reincidindo, o eufemismo e o verbo mudaram para enfardar. À terceira originalidade da mulher ele perguntou-lhe, como antes lhe revelara o desejo sexual, se ela queria ser humilhada já ali na frente de todos.
Talvez ele estivesse, de novo, a ser apenas jocoso, certo de que o seu rude e provocador sentido de humor tinha já sido percebido por todos. Talvez a insinuação de bruteza fosse instrumental, constitutiva da persona dominadora mas apaixonada que ele interpretava.
Ou talvez ela não tivesse ensaiado mais nenhuma dissidência por ter notado que nenhum dos circunstantes contestara que apenas ela seria humilhada se enfardasse ali diante de todos. Ou onde quer que fosse, incluindo mais tarde, em casa.
Hermenêutica futebolística
O amigo chegou, encomendou a sandes e a mini ao balcão e virou-se para
a TV, onde passava um jogo de campeonato estrangeiro. O outro, quando se deu
conta, arrastou-se lá do fundo e, depois do cumprimento, atirou:
— O árbitro está a ser tendencioso a favor dos azuis.
O tom era neutro, indiferente, de quem invoca as condições climatéricas
para início de conversa.
Reflectindo nas palavras, fiquei na dúvida se aquela observação de circunstância
significava que:
a) É possível dedicar-se uma atenção mecânica mas minuciosa a um jogo de
futebol mesmo que se desconheça os clubes ou eles não sejam suficientemente importantes
para merecerem ser fixados;
b) A parcialidade da arbitragem ou a crença de que há parcialidade na
arbitragem são tão inerentes aos jogos quanto a rotundidade da bola;
c) Os rituais de desculpabilização e a hermenêutica televisiva mudaram
o foco do jogo para a incidentalidade.
d) O autor da observação era um irredimível benfiquista.
Mas, pensando bem, talvez fosse apenas verdade que o árbitro estava a ser tendencioso
a favor dos estrunfes.
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