sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

O eleitorado de Ventura segundo Helena Matos

Um blogue de cujo nome não quero lembrar-me remete para o comentário de Helena Matos (no Observador e no Blasfémias) sobre as eleições presidenciais. Comentário que é, na verdade, um exercício de delimitação de um eleitorado para Ventura, algo a que ela chamou «o pais invisível», «um país que foi destratado nesta campanha». O bom povo, em suma. Não o povo português, todo ele — os resultados eleitorais não permitem tal generalização e as pessoas são tão variadas que até Helena Matos sabe que não pode abusar de simplismos. E além disso precisa de uma boa quantidade de portugueses não-povo para vituperar regular e terapeuticamente. Se não existisse uma esquerda (ou um centro), que vida triste não seria a de Helena?
Ainda assim, Helena encontrou o seu povo, não em Tróia como reza o mito, mas no eleitorado de Ventura, fazendo como tantos sociólogos e políticos (olhem, o próprio líder do Chega, por exemplo), que definem o grupo de estudo em função das suas interpretações.

Como qualquer cidadão português por estes dias, Helena de Esparta, estava munida de um cardápio de eleitores de Ventura e escolheu em função do seu paladar e das suas necessidades nutricionais. (Não se lhe pode censurar querer seguir a sua própria dieta, não é?) Escolheu as seguintes pessoas: «gente que vive com baixos rendimentos. Lêem poucos livros e certamente nenhum que tenha a ver com o fascismo.» Pessoas que sabem que a «noite é mesmo noite» e «isolamento é mesmo isolamento» «nesse país que fica longe». Pessoas que «não vêem as suas vidas nas notícias». Homens brancos sem curso universitário residentes em zonas rurais do midwest e estados interiores, crackers, rednecks e desempregados da rust belt… Esperem, não, isto é a interpretação de outras eleições, desculpem.

Helena não indica as suas fontes, não é fácil perceber onde encontrou os dados que lhe permitem sustentar a definição poética que encontrou, mas talvez se a pudéssemos dissecar (não podemos, moderem o entusiasmo) encontrássemos boas pistas dentro da sua própria cabeça. Percebemos, contudo, que Helena não procurou nas caixas de comentários da imprensa e nas redes sociais, onde tantos se anunciaram eleitores de Ventura. Ou, se o fez, investigou exaustivamente cada um deles e concluiu que não, aqueles não eram legítimos eleitores de Ventura. Ou se o eram, não foram votar, porque os 11,9 por cento de André Ventura nos cadernos eleitorais são pessoas de baixo rendimento esquecidas pela CMTV na noite e no isolamento. Sem acesso ao mundo moderno e à Internet, presume-se.

As suspeitas de que andavam eleitores de Ventura nas caixas de comentários do Observador e do Blasfémias — quiçá até no quadro de colaboradores de ambos os órgãos — são igualmente infundadas, garante Helena. Aquilo é gente demasiado urbana, formada, com leituras (não é nenhuma ralé, ia eu dizer). E alguns até leram livros que têm a ver com o fascismo. Estão portanto fora do belo quadro telúrico que mostra o eleitor-tipo venturesco segundo Helena.

Eu, que ao contrário de Helena, não vivo em Lisboa, mas em Trás-os-Montes, e frequento talvez mais um bocadinho do que ela o país que vive com baixos rendimentos e não vem nas notícias, julguei ter visto aqui alguns eleitores de Ventura diferentes, mas, como eram típica classe média com carro em primeira mão, avessos a impostos e declarações de rendimentos e razoavelmente xenófobos, devo ter-me enganado, claro. No país «invisível» de Helena não há disso.
 
https://blasfemias.net/2021/01/25/a-derrota-da-realidade-virtual/

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P.S.: Numa coisa a Helena Matos tem indirectamente razão: é absurdo e contraproducente insistir que todo o eleitorado de Ventura é "fascista". 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Barco Negro

[O trecho abaixo faz parte de um work in progress ainda à procura de rumo. Não quebro decerto nenhuma cláusula contratual ao publicá-lo.]


«Numa das digressões pelo Youtube fui parar à canção “Barco Negro”, na versão de Amália Rodrigues. Ao terceiro verso já chorava. A interpretação de Amália era perfeita, comovente, de uma beleza que tocava os sentimentos de quem a ouvia, mas o que actuava em mim, na minha sensibilidade, não eram só as suas qualidades artísticas, a estética sublime da sua voz: era a incrível semelhança com a voz da minha mãe. A forma como as notas subiam e pareciam precipitar-se para aquele brado de alma na palavra “olhos” era a da minha mãe. Nesse verso, na totalidade dele, nesse pedaço de transcendente oferecido aos mortais, que os deuses tinham encarregado algumas pitonisas de passear pelo mundo, estava um pouco da própria face de Deus, um centímetro cúbico (não sei como se exprimem as medidas de lugares com quatro ou mais dimensões) do paraíso infinito. Não eram as palavras que importavam — por mais que devêssemos admirar o poema de David Mourão-Ferreira ou o de Antônio Amábile que no Brasil o antecedeu —, o que importava não eram os sentimentos ou as emoções que as palavras transmitiam embaladas pela música, não era o lamento verbal, a catarse pela tragédia que as histórias propunham: era a própria música, os sons, as notas, a sequência delas, a percepção da fórmula divina que eles próprias representavam, cuja estrutura cósmica elas quase tocavam, por instantes adivinhavam.

«Matheus Nunes (Caco Velho, o compositor) teve essa visão, é dele o mérito, ou foi a ele que Deus confiou uma linha breve do seu próprio código genético. Mas só quando o brasileiro transmitiu a Amália a “ideia”, para evocar Platão, é que ela ganhou a sua expressão verdadeira, se revelou. Talvez o justo fosse que Amália interpretasse a letra original, lamentasse o sofrimento da Mãe Preta em vez de o da viúva do pescador, mas, que a mesma estrutura melódica, a mesma insinuação metafísica possa abraçar várias formas de dor é admirável e provavelmente significativo.

«É portanto para a minha mãe que a canção, a voz de Amália remetem, talvez porque a minha mãe é agora parte da deidade, incorporou-se a ela há uns anos. Quando Amália a gravou parecia apenas mais um momento na sua carreira, um dos brilhantes, mas era na verdade um passo num guião que alguém escrevera preventivamente para ela com outra finalidade. Prevendo-se que a minha mãe não seria gravada, que a sua voz, exprimindo-se num local e num tempo onde nem a mitologia, pagã ou católica, fazia descer deuses à Terra que se apaixonassem pela pastora que era a minha mãe e lhe dessem um sopro de celebridade, prevendo-se por isso que não integraria as listas da rádio, não andaria em digressão e não se registaria em discos ou cassetes, haveria o Universo de a imortalizar por outra via e essa via foi Amália.

«Foi para que eu chorasse ao terceiro verso e pudesse assim sentir da minha mãe mais do que a memória dela, para que pudesse ter a minha epifania além da retórica literária, que Amália recebeu de Matheus a canção e entrou num estúdio para a gravar. Sim, foi com Amália que a minha mãe aprendeu a canção, era a Amália que as pessoas a comparavam quando ela cantava no dia-a-dia anónimo da sua existência, mas isso é apenas porque houve uma dobra no espaço-tempo, uma singularidade, um ouroboros; Deus perverteu a sequência cronológica dos anos em homenagem à minha mãe, é ela a Mãe Preta que chora todas as injustiças do mundo e eu sou a mulher do pescador que diz, que sente
Eu sei meu amor
Que nem chegaste a partir
Pois tudo em meu redor
Me diz que estás sempre comigo.»

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Rescaldo eleitoral

A sensatez venceu largamente nestas eleições. Marcelo aumenta a sua votação (com votos da direita e da esquerda), Ana Gomes é a mulher mais votada de sempre (não é feito de desprezar, como sabemos) e o partido reles fica aquém das suas próprias expectativas. Ou seja, há menos eleitores vis ou ingénuos do que André Ventura imaginava (embora haja demasiados, sim).

O lado mais negro (não foi a descida do BE e do PCP, que recuperarão, descansem) foi simultaneamente o mais patético: o show burlesco de Rui Rio que, com a sensibilidade e a subtileza que se lhe conhecem, achou que o melhor que tinha a fazer em noite de discursos pós-eleitorais era escancarar as portas do PSD ao Chega, insistindo como um louco desesperado (contei cinco vezes, mas talvez tenham sido mais) que o partido reles era uma instituição séria e respeitável porque os comunistas do Alentejo votavam nele. Como argumento central para uma coligação não está mal. 
Vejamos se o próprio partido, que decerto testemunhou a alucinação de Ventura na recta final da campanha, não lhe reserva algumas surpresas.

Lembremos: há menos eleitores vis ou ingénuos do que André Ventura imaginava. Passa por aqui a sua derrota.

sábado, 23 de janeiro de 2021

Escrever

A escrita, se não de olhos obsessivos no alvo e bem fornecida de estímulos ou livre de tentações, e sobretudo se o autor não encontrar forma de se ludibriar a si mesmo quando relê, derrota-nos. Derrota-nos a dimensão da empresa necessária. Ter uma ideia e depois ao vertê-la para o papel perceber que ela tem mil nuances que é preciso apanhar no turbilhão dos pensamentos, mil implicações. Que para a ideia ser devidamente encontrada e trabalhada no seu eixo e nas suas ramificações precisaríamos de nos demorar ao teclado horas em concentração total, sem ceder a distracções ou pensamentos laterais que nos façam perder o fio à meada, as várias componentes da ideia, da mais humilde à nuclear. Que mesmo assim é preciso escrever por tentativa e erro para chegar à transcrição mais aproximada da ideia.

Só damos por terminado um parágrafo, uma página, um capítulo porque a determinada altura, muitas vezes cedo demais, nos enganamos a nós mesmos, consideramos acabada, ou suficientemente conseguida, a abordagem ao tópico que nos ocorreu, à cena, impressão ou pensamento que queríamos descrever. Ser escritor de génio é conseguir no mesmo número de linhas chegar mais profundamente à ideia. Ou conseguir que o logro da aparente suficiência se exerça também sobre o leitor.

Felizes são os leitores de poesia (julgo que não os poetas, prováveis pacientes do mesmo mal) porque acreditam alcançar num verso o que o prosador não consegue num capítulo. Talvez porque o verso, para quem se consiga entregar a ele, espolete as reacções químicas e nervosas adequadas, inicie a mesma cadeia de raciocínios impalpáveis que levam o leitor a chegar na sua mente ao vislumbre que levou o poeta à mesa. Comunicação por indução. E então o ponto estará menos em ser escritor do que aguilhão. Sugerir, não tentar contar. Ser, enfim, um tipo diferente de escritor.
Uma impossibilidade. Somos o que somos. Escrever é derrota, portanto.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Eleições

Quem quer dar sinais de descontentamento ou sugerir ao regime a necessidade de inflexões ideológicas, tem um leque razoável e simpático de candidatos e candidatas para o fazer, da esquerda à direita (excluindo o chegano). Nenhum deles ou delas é um Churchill? Bem, nós também não somos a Inglaterra de 1940 (nem a Inglaterra hoje é a mesma de quarenta, bem vistas as coisas…). Um eleitorado tantas vezes medíocre e absentista devia ser mais humilde nas exigências.

Em todo o caso, não julgo que estamos mal servidos. E quem se quer divertir ou está mesmo zangado até tem uma opção interessante, um candidato que sabe contar uma parábola com seixos que, essa sim, devia orgulhar um povo.

Os outros descontentes que andam à procura de um príncipe encantado, deviam ter cuidado, porque está à vista de todos que o príncipe é afinal um sapo.

Se os neurónios estiverem um pouco enferrujados e precisarem de ajuda para perceber isso, deixo aqui duas pistas, dois posts do blogue Antologia do Esquecimento.

O primeiro reúne um conjunto de perguntas que cada um deve fazer a si mesmo. Só com isso a resposta virá com a evidência de um murro nas trombas.
https://universosdesfeitos-insonia.blogspot.com/2021/01/tenho-duvidas.html

O segundo apresenta uma lista dos «portugueses de bem» que fazem parte do Chega:
https://universosdesfeitos-insonia.blogspot.com/2021/01/portugueses-de-bem.html

Bem sei que a preguiça é muita, mas basta ler meia dúzia de linhas de cada um dos posts. Meia dúzia de linhas do princípio, do meio ou do fim, tanto faz. Trinta segundos de atenção a cada texto são suficientes. Se depois disso ainda acharem que há algo de positivo no indivíduo e no seu partido, bem amigos, o vosso é um caso perdido, sois burros por gosto. Ou sois má rês como ele.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Há marcianos no Sol

João Lemos Esteves, o marciano que escreve no Sol, publicou num dos seus artigos mirabolantes, misto de comédia louca e fluxo desviado a montante de uma ETAR, um rol de acusações a Pacheco Pereira.
Pacheco Pereira, que podia ter ignorado o tonto, decidiu agir de outra maneira, igualmente adequada. Listou as acusações e limitou-se a acrescentar a cada uma delas: «Falso. Prove.»
No final, disse: ou há um pedido de desculpa ou um processo em tribunal. Simples.
O alucinado retirou o artigo e pediu desculpa — tal era a força da sua argumentação e tal o valor dos «factos» que apresentava.
Podia aproveitar e pedir desculpa por todos os artigos que escreve. Não necessariamente por serem abjectos, mas por não serem suficientemente cómicos. Todos acreditamos que ele consegue ir mais longe.

P.S.: Diria que o Sol o mantém como cronista para que, por contraste, os textos do arquitecto Saraiva, pareçam fundamentados e sensatos.

https://sol.sapo.pt/artigo/721026/pedido-de-desculpa-de-joao-lemos-esteves-a-jose-pacheco-pereira

«A condição humana pode ser muito cínica»

«A condição humana pode ser muito cínica. Existem pessoas que têm medo de mudanças evidentes e rápidas, que detestam o feminismo, a transformação social, a queda de certas hierarquias, e querem vê-las restabelecidas.»
A citação é de Anne Applebaum e resume indirectamente a simpatia pelo Chega.

Sim, há os trolls que saíram das caixas de comentários dos jornais para a luz do dia e concordam com as boçalidades do líder. Sim, há pessoas no geral estimáveis mas zangadas com a vida e a política e que se iludem com as mentiras de um paladino de fancaria que uma criança é capaz de detectar. Mas os mais perigosos são os cínicos, para quem os fins justificam os meios. Para esses, André Ventura é o idiota útil, o testa-de-ferro, o magarefe que trata do trabalho sujo. Eles ficam a aguardar para colher os despojos.

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A entrevista de Anne Applebaum pode ser lida aqui:
https://brasil.elpais.com/brasil/2021/01/07/eps/1610037420_550433.html

«Interessante»

Quem ficou perplexo com um post que aqui publiquei há tempos sobre a forma como era visto o Dr. Sapo de Loiça a partir de Estevais de Mogadouro, talvez sinta curiosidade por esta sequela:

http://tempocontado.blogspot.com/2021/01/canhestro-mas-certo-e-perttinente-no.html

Notem, por favor, que as palavras não são do escritor, só o comentário: «Interessante». E, claro, a escolha da citação para título do post.

Cada um tem a sua via-sacra. A minha leva-me sucessiva e vãmente àquele blogue à espera nem sei bem de quê.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

O Alvão ao final do dia

Ao final de um dia de Janeiro, o Alvão — de perfil tão bem delineado contra um céu pálido que brilha na linha do horizonte como um halo — é na sua ilharga de um azul-escuro tornado vaporoso por múltiplos farrapos de fumo que o esbatem e aparecem no ecrã da janela onde leio não como emanações das últimas queimadas do dia ou das primeiras lareiras da noite mas como reminiscências de um passado que houve, memórias de dias que foram. Na verdade, pequenas cedências do olhar à nostalgia abstracta e a um telurismo pouco sustentado em provas e factos, mera retórica do espírito.

domingo, 10 de janeiro de 2021

O grande barrete

João Miguel Tavares 

Trump, o Trump híbrido de Berlusconi e Mussolini que discursou no dia 6, poderia ter ele mesmo encabeçado como Moisés* a multidão depois de a ter incitado a atravessar o Mar Vermelho, podia ter sido «bravo» de acordo com os seus padrões em vez de assistir pela televisão e comentar pelo Twitter, como costuma, podia ter-se sentado com chapéu e cornos na cadeira de Nancy Pelosi, poderia ter acossado polícias renitentes ou feito selfies com polícias complacentes enquanto partia mobília, podia ter entrado na sala do Senado para proclamar ele mesmo o golpe, no que provavelmente seria seguido pelos ratos republicanos que agora saltam borda fora, Trump poderia, enfim, por uma vez ter sido consequente e ilustrativo e auto-evidente que nem assim António Barreto deixaria de ter escrito o que escreveu** e nem assim João Miguel Tavares teria deixado de saltar na cadeira de largo sorriso a aplaudir Barreto como criança a que lhe servem a sobremesa***.

E o que diz Barreto lá do fundo da sua resmunguice, do seu ressentimento ou do que lhe habita a alma? Que a culpa da invasão do Capitólio é das «esquerdas», pois claro. Ou, vá lá, de «democratas-cristãos, socialistas e sociais-democratas». Ou antes, na versão matizada, a culpa é dos «erros, defeitos e vícios» dos democratas****. Um dia em que se empolgue na indignação e no moralismo, ainda havemos de o ler a culpar a esquerda pelo pecado original de Adão e Eva, em que decerto se dispõe a acreditar.

Poderia Barreto ter-se ficado, por uma vez, como as pessoas sem segundas intenções, pela condenação da coisa em si e dos responsáveis directos por ela? Poderia, depois de ter listado retoricamente como listou uma série de atributos de Trump, afirmar inequivocamente que sim, este é Trump, em vez de dizer apenas «Tudo isto pode ser verdade» (itálico meu) e acrescentar um longo mas? Claro que podia. Mas como perder uma oportunidade de verberar o «sistema» (sem de facto falar do «sistema»)?

A lengalenga barretiana é agora antiga e não é totalmente errada. Sem esquecer nunca a culpa activa dos republicanos e dos promotores dos Trumps deste mundo (que Barreto amavelmente desvaloriza ou em que participa), é preciso considerar que as democracias têm de facto sido absurdamente complacentes com a corrupção e as desigualdades, por exemplo. Mas como mencionar isto sem falar do capitalismo, proeza que Barreto facilmente realiza?

Nas últimas décadas, com o surgimento de uma nova geração de direita, que aprendeu, nos melhores casos, pelos manuais do conservadorismo britânico e, nos piores, pelos manuais do neo-liberalismo americano, criou-se na Europa e exacerbou-se na América, com o regozijo de velhos ressentidos que aproveitaram para sair do armário, uma raiva ao «socialismo» (termo discricionariamente usado para englobar todas as esquerdas e o centro), uma raiva ao «socialismo» (que soa quase a comunismo, o comunismo estalinista) como fonte de todos os males, ao «socialismo» como demónio na Terra.
Não interessa que alguns dos principais pecados atribuídos a este «socialismo» sejam na verdade de índole não doutrinária. A corrupção e a manutenção ou agravamento das desigualdades têm sido muito democraticamente praticados pelos vários partidos que chegam a entrar em governos ou outros níveis de poder. As variações de grau da prática da corrupção devem-se mais, temo, ao contexto e às oportunidades concretas com que cada um se depara do que a subtilezas de carácter ou filiações partidárias ou doutrinárias. Contudo, esses flagelos sem pátria ou partido foram invocados com toda a lata por uma vasta multidão de opinativos mundiais (de que tivemos a nossa parte generosa) para criar o ambiente favorável à eleição de Trump e Bolsonaro pela rejeição violenta dos candidatos que se lhes opunham. Quando o mais simples bom senso dizia que, na ausência de candidatos melhores, a ter de se escolher o mal menor, haveria o eleitor que se resignar provisoriamente com a mediania ou mediocridade de Hillary ou de Haddad, eis que o mundo assiste estupefacto à farsa inimaginável de ter de tomar Trump e Bolsonaro como candidatos de fora do «sistema» capazes de combater a corrupção e as desigualdades.

Na verdade, a corrupção e as desigualdades são uma inevitabilidade do capitalismo como ele vem sendo praticado (e que poucos se atrevem a questionar sem desvio doutrinário bafiento), e são uma inevitabilidade em que, deve dizer-se, além de demasiados políticos, participa à sua escala uma boa parte da população anónima (incluindo, naturalmente, aquela mui puritana que vota em Trump, Bolsonaro ou no Doutor Sapo de Loiça).

O que estava em causa com a eleição de Trump e Bolsonaro não era, para os mais condescendentes com a dupla de ogres, esse combate, mas o cultural. Sim, ainda que encha a boca com os problemas económicos das populações rurais americanas, o que levou aquela gente a ser complacente com Trump e Bolsonaro foi a possibilidade de os ter como campeões de um combate que a maioria não queria assumir ou travar completamente às claras: a reacção a reformas sociais e culturais, à transformação da sociedade. (Um ogre é por definição um ser atávico, logo escolha certa se queremos preservar o mundo mítico que conhecemos.)

É verdade que a esquerda e o centro têm colocado um menor empenho no combate à corrupção e à pobreza do que nas causas culturais e sociais. O combate à corrupção e às desigualdades falha claramente porque, além de um raro carácter honesto e solidário, exige uma coragem muito maior: a de enfrentar o desconhecido (o que propor para mudar ou substituir o capitalismo actual?) e a de enfrentar o poder dos grandes agentes económicos. Já as reformas sociais apenas exigem enfrentar uma parte da população sem uma fracção desse poder.

Significa isto, esta pequena grande cobardia das democracias, que as reformas sociais deveriam ser postas de parte? Claro que não. Tal como é errado desprezar as dificuldades e o sentimento dos eleitores inocentes de Trump seria errado, por exemplo, desprezar os problemas ancestrais das várias minorias e desaproveitar a oportunidade de os corrigir, e de corrigir atavismos nacionais. Mas o que nos é proposto pelos que toleram Trump é que façamos essa escolha, que tomemos como problemas reais ou «sérios» os que a América rural simboliza e como meros caprichos burgueses as questões sociais ou culturais e as que afectam as minorias ou as mulheres, por exemplo. É, portanto, caracterizar a rejeição de uma parte da população como egoísmo e snobismo urbano, apelando, com uma suposta superioridade moral, à rejeição de outra parte dessa mesma população.

Percebo o receio de certo mundo conservador, e partilho do desagrado que sente, perante excessos e idiotices que à esquerda se praticam, como o fenómeno Cancel Culture e outros. Mas estes, mesmo quando graves, são equívocos, não são as causas de quem rejeita Trump e Bolsonaro.

Temos de lhes pedir, a este tipo de conservadores, que se controlem e não deixem que o medo do fim do mundo como o conhecem os empurre para uma distopia pior, que é a de um mundo que tem como supostos campeões da liberdade e da justiça bullies idiotas, corruptos, amorais e egoístas como Trump ou Bolsonaro ou eventuais plagiários indígenas.

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* Imagens de António Muñoz Molina no excelente artigo de hoje no El País: https://elpais.com/opinion/2021-01-09/un-paisaje-de-trastorno.html
** https://www.publico.pt/2021/01/09/opiniao/opiniao/perceber-1945609
*** https://www.facebook.com/joaomiguel.tavares/posts/3635077483244744
**** Note-se que Barreto chega a dizer que a democracia tem «tantos ou mais defeitos» do que Trump e programas de gente como ele…

sábado, 9 de janeiro de 2021

À escuta

Espreito pela janela a fila de árvores que sobrou das obras da escola, agora despida de folhas excepto por dois pares de cedros. Dir-se-ia não correr a mínima aragem, mas a impressão é desmentida pela palmeira da quinta casa do lado direito cujos ramos em forma de jactos de fonte ornamental se inquietam um pouco. É um sábado à tarde e a cidade está estranhamente silenciosa. Nem a televisão do vizinho se ouve, e julgo que não é porque os canais tenham de repente ficado sem apresentadores ou convidados histéricos. O ar é de neve e talvez estejamos no «olho» da tempestade (dizem os filmes que é calmo assim). Ou está toda a gente a fingir que não conviveu no Natal, para ver se evita o confinamento anunciado. Esta ideia poderia ser confirmada se me chegassem imagens do conselho de ministros com os ditos num terraço de S. Bento equipados com tecnologia da Primeira Guerra Mundial usada para detectar aviões. Mas não chegam essas imagens e isso é que é triste.



terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Personagens com baixa auto-estima

[Escrevi este trecho para uma qualquer das personagens dos meus livros, mas creio que nunca o usei — devo ter encontrado outra forma de a fazer sentir miserável.]

«A praça em frente à estação estava cheia de punks e eu apenas consegui pensar que não poderia ter melhor recepção. Uma banda perfilada seria o que de mais impróprio o momento sugeria. Era adequado que eu desembarcasse do comboio e à minha espera estivesse aquela anarquia lânguida, um bando esfarrapado cheio de rebites, com repas inteiriçadas e coloridas e correntes de condenados, uma pequena multidão de rebeldes ociosos estendidos no lajeado sujo como focas gordas ou tartarugas despejadas pela maré numa praia vulcânica. Bebiam e derramavam cerveja enquanto insultavam ritualmente e sem ânimo os passageiros que como eu ziguezagueavam por entre eles na direcção da paragem de táxis. A diferença era que os outros viajantes faziam caretas de nojo e raiva impotente e levavam passo acelerado; eu sentia-me Darwin a descer do Beagle. Não pelo quadro alegórico que uma fotografia tirada do outro lado da rua poderia fixar, mas porque, como ele, eu olhava em volta e não podia concluir senão pelo parentesco evidente entre vermes e humanos. E repare-se que este pensamento não era uma crítica aos inúteis anarquistas, já que eu os olhava como se me visse num espelho e não conseguia deixar de pensar que o meu lugar era entre eles, bebendo cerveja até ao vómito e fazendo depois alguns assaltos sem importância para conseguir arranjar mais bebida.»

O Infinito Num Junco

Uma das muitas coisas de que estou a gostar em O Infinito Num Junco, de Irene Vallejo, é a forma como a narrativa e a estrutura do livro estão por vezes organizadas, não por ordem cronológica ou geográfica, como acontece geralmente com os livros de história ou de divulgação, mas por associação de ideias, por sugestão dos campos semântico ou lexical das palavras.

Agrada-me igualmente a atenção «feminista» que é dada ao tema, procurando e valorizando, sem empolamento, informação que noutros autores ou noutra época passaria despercebida, como por hábito patriarcal as mulheres passavam, mesmo quando o mérito era delas.

Depois de um bom romance de uma mulher (Siri Hustvedt) — e um livro feminista, na verdade —, é agradável ler um ensaio sobre livros na Antiguidade onde as «antepassadas» da escritora americana têm justa presença.

domingo, 3 de janeiro de 2021

As árvores de Janeiro

As árvores de Janeiro parecem saídas de quadros de Caspar-David Friedrich. Lúgubres e belas.

Crescei e multiplicai-vos

Na frontaria de um colégio, um painel de azulejos informa-nos que «A Virgem Maria Senhora Nossa Foi Concebida Sem Pecado Original». Parece uma daquelas mensagens de boas-vindas que indicam subtilmente o caminho da salvação.
Seriam contudo contraditórios entre si a mensagem e o local. Um estabelecimento que vive das propinas pagas pelos pais das crianças estaria condenado se os paroquianos resistissem à tentação da carne e do pecado original. Restar-lhe-ia, talvez, ampliar a fé e depositar também esperanças na lenda da cegonha.

Os vizinhos do lado

Os vizinhos do lado devem ter oferecido a si mesmos uma televisão nova este Natal e andam há dias a fazer-lhe a rodagem vendo até onde chega o ponteiro do volume de som. Ou isso ou perderam acuidade auditiva durante o confinamento. Em qualquer caso, desde o tempo em que no Alentejo tive por vizinhos dois anciães de oitenta anos bastante moucos que não estava a par do enredo das novelas e do Big Brother como estou agora