João Miguel Tavares
Trump, o Trump híbrido de Berlusconi e Mussolini que discursou no dia 6, poderia ter ele mesmo encabeçado como Moisés* a multidão depois de a ter incitado a atravessar o Mar Vermelho, podia ter sido «bravo» de acordo com os seus padrões em vez de assistir pela televisão e comentar pelo
Twitter, como costuma, podia ter-se sentado com chapéu e cornos na cadeira de Nancy Pelosi, poderia ter acossado polícias renitentes ou feito
selfies com polícias complacentes enquanto partia mobília, podia ter entrado na sala do Senado para proclamar ele mesmo o golpe, no que provavelmente seria seguido pelos ratos republicanos que agora saltam borda fora, Trump poderia, enfim, por uma vez ter sido consequente e ilustrativo e auto-evidente que nem assim António Barreto deixaria de ter escrito o que escreveu** e nem assim João Miguel Tavares teria deixado de saltar na cadeira de largo sorriso a aplaudir Barreto como criança a que lhe servem a sobremesa***.
E o que diz Barreto lá do fundo da sua resmunguice, do seu ressentimento ou do que lhe habita a alma? Que a culpa da invasão do Capitólio é das «esquerdas», pois claro. Ou, vá lá, de «democratas-cristãos, socialistas e sociais-democratas». Ou antes, na versão matizada, a culpa é dos «erros, defeitos e vícios» dos democratas****. Um dia em que se empolgue na indignação e no moralismo, ainda havemos de o ler a culpar a esquerda pelo pecado original de Adão e Eva, em que decerto se dispõe a acreditar.
Poderia Barreto ter-se ficado, por uma vez, como as pessoas sem segundas intenções, pela condenação da coisa em si e dos responsáveis directos por ela? Poderia, depois de ter listado retoricamente como listou uma série de atributos de Trump, afirmar inequivocamente que sim, este
é Trump, em vez de dizer apenas «Tudo isto
pode ser verdade» (itálico meu) e acrescentar um longo
mas? Claro que podia. Mas como perder uma oportunidade de verberar o «sistema» (sem de facto falar do «sistema»)?
A lengalenga barretiana é agora antiga e não é totalmente errada. Sem esquecer nunca a culpa
activa dos republicanos e dos promotores dos Trumps deste mundo (que Barreto amavelmente desvaloriza ou em que participa), é preciso considerar que as democracias têm de facto sido absurdamente complacentes com a corrupção e as desigualdades, por exemplo. Mas como mencionar isto sem falar do capitalismo, proeza que Barreto facilmente realiza?
Nas últimas décadas, com o surgimento de uma nova geração de direita, que aprendeu, nos melhores casos, pelos manuais do conservadorismo britânico e, nos piores, pelos manuais do neo-liberalismo americano, criou-se na Europa e exacerbou-se na América, com o regozijo de velhos ressentidos que aproveitaram para sair do armário, uma raiva ao «socialismo» (termo discricionariamente usado para englobar todas as esquerdas e o centro), uma raiva ao «socialismo» (que soa quase a comunismo, o comunismo estalinista) como fonte de todos os males, ao «socialismo» como demónio na Terra.
Não interessa que alguns dos principais pecados atribuídos a este «socialismo» sejam na verdade de índole não doutrinária. A corrupção e a manutenção ou agravamento das desigualdades têm sido muito democraticamente praticados pelos vários partidos que chegam a entrar em governos ou outros níveis de poder. As variações de grau da prática da corrupção devem-se mais, temo, ao contexto e às oportunidades concretas com que cada um se depara do que a subtilezas de carácter ou filiações partidárias ou doutrinárias. Contudo, esses flagelos sem pátria ou partido foram invocados com toda a lata por uma vasta multidão de opinativos mundiais (de que tivemos a nossa parte generosa) para criar o ambiente favorável à eleição de Trump e Bolsonaro pela rejeição violenta dos candidatos que se lhes opunham. Quando o mais simples bom senso dizia que, na ausência de candidatos melhores, a ter de se escolher o mal menor, haveria o eleitor que se resignar
provisoriamente com a mediania ou mediocridade de Hillary ou de Haddad, eis que o mundo assiste estupefacto à farsa inimaginável de ter de tomar Trump e Bolsonaro como candidatos de fora do «sistema» capazes de combater a corrupção e as desigualdades.
Na verdade, a corrupção e as desigualdades são uma inevitabilidade do capitalismo como ele vem sendo praticado (e que poucos se atrevem a questionar sem desvio doutrinário bafiento), e são uma inevitabilidade em que, deve dizer-se, além de demasiados políticos, participa à sua escala uma boa parte da população anónima (incluindo, naturalmente, aquela mui puritana que vota em Trump, Bolsonaro ou no
Doutor Sapo de Loiça).
O que estava em causa com a eleição de Trump e Bolsonaro não era, para os mais condescendentes com a dupla de ogres, esse combate, mas o cultural. Sim, ainda que encha a boca com os problemas económicos das populações rurais americanas, o que levou aquela gente a ser complacente com Trump e Bolsonaro foi a possibilidade de os ter como campeões de um combate que a maioria não queria assumir ou travar completamente às claras: a reacção a reformas sociais e culturais, à transformação da sociedade. (Um ogre é por definição um ser atávico, logo escolha certa se queremos preservar o mundo mítico que conhecemos.)
É verdade que a esquerda e o centro têm colocado um menor empenho no combate à corrupção e à pobreza do que nas causas culturais e sociais. O combate à corrupção e às desigualdades falha claramente porque, além de um raro carácter honesto e solidário, exige uma coragem muito maior: a de enfrentar o desconhecido (o que propor para mudar ou substituir o capitalismo actual?) e a de enfrentar o poder dos grandes agentes económicos. Já as reformas sociais apenas exigem enfrentar uma parte da população sem uma fracção desse poder.
Significa isto, esta pequena grande cobardia das democracias, que as reformas sociais deveriam ser postas de parte? Claro que não. Tal como é errado desprezar as dificuldades e o sentimento dos eleitores inocentes de Trump seria errado, por exemplo, desprezar os problemas ancestrais das várias minorias e desaproveitar a oportunidade de os corrigir, e de corrigir atavismos nacionais. Mas o que nos é proposto pelos que toleram Trump é que façamos essa escolha, que tomemos como problemas reais ou «sérios» os que a América rural simboliza e como meros caprichos burgueses as questões sociais ou culturais e as que afectam as minorias ou as mulheres, por exemplo. É, portanto, caracterizar a rejeição de uma parte da população como egoísmo e snobismo urbano, apelando, com uma suposta superioridade moral, à rejeição de outra parte dessa mesma população.
Percebo o receio de certo mundo conservador, e partilho do desagrado que sente, perante excessos e idiotices que à esquerda se praticam, como o fenómeno
Cancel Culture e outros. Mas estes, mesmo quando graves, são
equívocos, não são as causas de quem rejeita Trump e Bolsonaro.