sábado, 23 de janeiro de 2021

Escrever

A escrita, se não de olhos obsessivos no alvo e bem fornecida de estímulos ou livre de tentações, e sobretudo se o autor não encontrar forma de se ludibriar a si mesmo quando relê, derrota-nos. Derrota-nos a dimensão da empresa necessária. Ter uma ideia e depois ao vertê-la para o papel perceber que ela tem mil nuances que é preciso apanhar no turbilhão dos pensamentos, mil implicações. Que para a ideia ser devidamente encontrada e trabalhada no seu eixo e nas suas ramificações precisaríamos de nos demorar ao teclado horas em concentração total, sem ceder a distracções ou pensamentos laterais que nos façam perder o fio à meada, as várias componentes da ideia, da mais humilde à nuclear. Que mesmo assim é preciso escrever por tentativa e erro para chegar à transcrição mais aproximada da ideia.

Só damos por terminado um parágrafo, uma página, um capítulo porque a determinada altura, muitas vezes cedo demais, nos enganamos a nós mesmos, consideramos acabada, ou suficientemente conseguida, a abordagem ao tópico que nos ocorreu, à cena, impressão ou pensamento que queríamos descrever. Ser escritor de génio é conseguir no mesmo número de linhas chegar mais profundamente à ideia. Ou conseguir que o logro da aparente suficiência se exerça também sobre o leitor.

Felizes são os leitores de poesia (julgo que não os poetas, prováveis pacientes do mesmo mal) porque acreditam alcançar num verso o que o prosador não consegue num capítulo. Talvez porque o verso, para quem se consiga entregar a ele, espolete as reacções químicas e nervosas adequadas, inicie a mesma cadeia de raciocínios impalpáveis que levam o leitor a chegar na sua mente ao vislumbre que levou o poeta à mesa. Comunicação por indução. E então o ponto estará menos em ser escritor do que aguilhão. Sugerir, não tentar contar. Ser, enfim, um tipo diferente de escritor.
Uma impossibilidade. Somos o que somos. Escrever é derrota, portanto.

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