[Escrevi este trecho para uma qualquer das personagens dos meus livros, mas creio que nunca o usei — devo ter encontrado outra forma de a fazer sentir miserável.]
«A praça em frente à estação estava cheia de punks e eu apenas consegui pensar que não poderia ter melhor recepção. Uma banda perfilada seria o que de mais impróprio o momento sugeria. Era adequado que eu desembarcasse do comboio e à minha espera estivesse aquela anarquia lânguida, um bando esfarrapado cheio de rebites, com repas inteiriçadas e coloridas e correntes de condenados, uma pequena multidão de rebeldes ociosos estendidos no lajeado sujo como focas gordas ou tartarugas despejadas pela maré numa praia vulcânica. Bebiam e derramavam cerveja enquanto insultavam ritualmente e sem ânimo os passageiros que como eu ziguezagueavam por entre eles na direcção da paragem de táxis. A diferença era que os outros viajantes faziam caretas de nojo e raiva impotente e levavam passo acelerado; eu sentia-me Darwin a descer do Beagle. Não pelo quadro alegórico que uma fotografia tirada do outro lado da rua poderia fixar, mas porque, como ele, eu olhava em volta e não podia concluir senão pelo parentesco evidente entre vermes e humanos. E repare-se que este pensamento não era uma crítica aos inúteis anarquistas, já que eu os olhava como se me visse num espelho e não conseguia deixar de pensar que o meu lugar era entre eles, bebendo cerveja até ao vómito e fazendo depois alguns assaltos sem importância para conseguir arranjar mais bebida.»
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