terça-feira, 31 de março de 2020

Casas mal-amadas

Numa zona de lameiros havia na minha infância, à margem da estrada, duas casas com graça: uma com alvura e estilo Raul Lino e outra construída numa simetria de pedra à vista e portadas sangue-de-boi que, pela majestade aparente, se diria senhorial mas, pelo estilo arquitectónico e época de construção, o não era. Ambas tinham nos seus lotes de terreno árvores que as emolduravam e ramadas que as ladeavam. A casa de pedra na verdade não tinha árvores, tinha o seu próprio bosque, de que ela era o centro, como clareira encantada que se entrevê. Era, também por isso, uma casa toda mistério e promessas que provocava desejo de posse.
Nenhum de nós amantes pueris que por ela passávamos e anelávamos quotidianamente logrou na vida ganhar dinheiro para compras assim, e isso irmana-nos, a nós e à casa, no infortúnio.
Como a vida não é um conto de fadas mas quase sempre epopeia reles de videirinhos, o novo proprietário fez nela obras de renovação que incluíram derrubar as árvores e a ramada. É agora uma desolação e um embaraço vê-la. No descampado dos lameiros surge frágil, exposta às intempéries, e nua, o que nos obriga a desviar os olhos por pudor. E se o não fazemos, se a espreitamos (e devassamos), notamos como a arquitectura é afinal menos nobre do que parecia, mais grosseira. Falta-lhe a moldura verde a dar vida à pedra bruta e arte à cantaria tosca, a interromper a monotonia cinzenta e a encobrir com mistério de folhagem o que nela há de menos conseguido.
Virá o Verão e a inclemência do sol, mas só a casa, habituada a muitas décadas de sombras frondosas e acolhedoras, nos há-de merecer pena, com a sua pele fina agora sujeita ao melanoma das casas mal-amadas; os proprietários, esses, hão-de decerto resistir bem à canícula — com bonés de basebol, amplos e coloridos guarda-sóis da Super Bock e, talvez, infame evocação da velha latada, uma rede de plástico verde sobre os carros.

segunda-feira, 30 de março de 2020

Paisagem com Proust

Detenho-me agora, ao olhar pela varanda, em pormenores da paisagem em que até há pouco não me demorava ou ignorava. Acontece isto não exactamente por haver mais vagar para a contemplação (ainda não encontrei essa benesse na quarentena), mas por se ter insinuado no meu espírito por instantes um sentimento de reclusão, com uma nota ou outra de ameaçada irreversibilidade, imaginários corvos pousando a sua negrura nos ramos em frente. Penso, entre o extasiado e o taciturno, que há ainda um privilégio em ter vistas tão desafogadas e amplas no lado poente da casa; que são piores as janelas que esbarram em feia arquitectura ou frontarias intrusivas (como as minhas do lado nascente) ou em cercas de prisão e piores ainda mais as vistas sem sequer janelas, como as dos condenados na solitária. Olho por isso a serra e o céu acima dela com avidez — como em certa ocasião, também num Março, deitado a espreitá-los numa viagem de ambulância, me imaginei fazendo-o pela última vez, com o mesmo grau de exagerada dramatização que me encorajava a rir de mim próprio a disfarçar o mesmo grau de plausibilidade.

Hoje, talvez por ser domingo e estar a ler Proust e as suas esperadas longas referências a paisagens, flores e sentimentos pastoris, os meus pensamentos andam muito pelos campos da minha adolescência. Na estrada que descubro para os lados de Lordelo e que nunca tinha dado conta de existir para esta varanda (também porque dantes havia mais árvores entre mim e as faldas da serra) vejo um caminho que evoca outros que em algum momento percorri ladeados de flores ou de uma paleta de verdes frescos, feliz como se pode ser na Arcádia.
É a Primavera a insinuar-se, com as suas promessas de alegria, desta vez menos verosímeis, e é o manto de benfazeja irrealidade que, na nossa memória, cobre quase tudo o que alguma vez vimos e vivemos.
Ao contrário do adolescente Proust, os rapazinhos da minha aldeia não davam passeios pós-prandiais em família; não hesitavam depois do pernil, consoante a meteorologia, entre o lado de Swann e o lado de Guermantes, excepto num raro domingo de festa ou feriado, mas então com planos menos bucólicos e certamente menos literários. Sobretudo não estavam os rapazinhos da minha aldeia, mesmo os que como eu tinham o privilégio de vaguear pelos campos, educados por um acumular de leituras e observação de telas para apreciar uma explosão de flores ou um entardecer — o pôr-do-sol, que os apanhava geralmente desprevenidos, uns a trabalhar, outros em actividades de gang inofensivo, se tinham liberdade para isso, era pouco mais do que a hora a que regressavam para o descanso os primeiros ou a que tinham de decidir os segundos se havia ou não proveito em desafiar a autoridade materna (o domínio paterno, e a consequente fúria, estava reservado para insolências mais severas).
Contudo diria que recordo os rapazinhos da minha aldeia, alguns deles, pelo menos, igualmente propensos a estacarem perante Gilberte, se o acaso os pusesse em presença dela. Imagino-os depois parados num campo (numa pausa da sementeira, uns, apoiados na enxada; numa interrupção do jogo da bola, outros, os mais privilegiados) à espera que o vento que faz ondular a vegetação lhes traga uma mensagem de Gilberte. Vejo-os sobretudo, eles que como o jovem Proust a acharam bela e não suportam a humilhação de serem ignorados ou rejeitados, capazes de facto de a ofenderem ou dela escarnecerem para que lhes dê atenção — não porque tenham mais tempo ou inspiração do que teve o narrador de Do Lado de Swann, mas porque há de todo o modo o hábito desse comportamento na genética de grupo, a que até os mais sensíveis demoram a escapar.

quinta-feira, 26 de março de 2020

Ioga para seniores ou do terço à saudação ao sol

Nesta quarentena ainda não corri uma maratona na varanda, como fez Elisha Nochomovitz, mas, porque nas saídas profissionais vou geralmente fechado no carro como num escafandro e, cidadão exemplar, evitei até agora correr no parque com receio de incentivar outros, tenho vindo a submeter-me todos os dias a vinte minutos de ioga para tot…, perdão, para seniores, instado por quem comigo partilha a cela.
Não vou cometer publicamente a desfaçatez de dizer que não aprecio a modalidade (sobretudo porque já o fiz em privado) e na verdade, depois da tortura inicial, a sessão tem vindo a ser suportável, mesmo proveitosa, e abriu-me a mente para outras práticas e horizontes que até há pouco não imaginava possíveis (comecei também, por exemplo, a preparar-me para a Volta à França numa bicicleta estática). No entanto, a súbita constatação, ao acordar todas as manhãs, de que depois das abluções me irei voluntariar sorrindo para a aula online da Miss Cole Chance ainda me deprime mais do que a ideia, também subitamente concretizada, de ser agora uma personagem distópica dum filme série Z.

A contrariedade (já um pouco escusada) que se instala no meu corpo e no meu espírito recém-levantados da cama é semelhante à que me oprimia nos jantares de Maio da década de setenta, quando antecipava os quinze minutos de tortura que me eram servidos como sobremesa durante todo o tempo que durava o «mês de Maria». Consta que a Nossa Senhora, quando apareceu na trip bucólica e famélica dos três pastorinhos, penteando o cabelo e colorida como um arco-íris jaggeriano, lhes pediu «insistentemente» que rezassem o terço todos os dias. O povo português, que tem uma tara por tradições instantâneas, logo instituiu que dali em diante em Maio, mês da primeira aparição, se rezaria diariamente o terço em todas as casas católicas. Nos anos setenta a minha ainda era uma casa católica e eu uma criança a quem o 25 de Abril não trouxera a liberdade prometida. Sentava-me com os meus irmãos e irmãs numa roda ao lado da mesa da cozinha, a ver os dedos da minha mãe, que liderava a sessão, devorarem com uma lentidão desesperante as contas do terço (como um Pacman sádico ou instalado numa máquina com um processador fraquito), ganhando um pouquinho de ânimo de cada vez que ela chegava àquelas contas maiores que, como metas volantes, marcavam etapas no mantra interminável das Avé-Marias e introduziam, como falsas pausas, a variante nada refrescante do Glória-a-Deus seguido do Pai-Nosso, ansiando então pela terceira meta volante, que nos permitia iniciar com olhos silenciosos (os lábios sempre em ladainha) a contagem decrescente para a meta final, representada pela cruz como num Calvário e na verdade adiada por umas Salve-Rainhas e uns Credos também eles repetidos interminavelmente e ainda intercalados por mais três Avé-Marias (não eram consideradas suficientes as cinquenta anteriores) e — por que não? — um Pai-Nosso, até que, finalmente, com as seis crianças quase desfalecidas e a implorarem progressistas por uma lei da eutanásia infantil, mais pálidas do que as da família Adams, finalmente, dizia eu, a minha mãe enrolava o terço numa das mãos e com um sorriso talvez beatífico dava por concluída a sessão.
Não demorávamos a amar de novo a minha mãe (as crianças esquecem rápido), mas não me recordo de as agruras do terço me terem aberto o espírito como as do ioga me abrem o peito na «saudação ao Sol» que, de estores abertos, ofereço gratuitamente como artista-em-casa aos vizinhos do prédio fronteiro.

domingo, 22 de março de 2020

Tirando Proust da quarentena

Há livros ou formas de escrita (estou-me a lembrar de Lobo Antunes) que são como danças de salão, ou danças do mundo, se quiserem: além de conhecer os códigos, os passos que as definem, precisamos, para desfrutar as danças, de entranhar o ritmo da música, sentir que o corpo vai com naturalidade. Há poucos anos descobri ou confirmei que não tenho queda (nem na verdade gosto) para dançar tudo o que não seja mosh*, mas hoje, com certo optimismo quanto ao percurso da quarentena, reiniciei Em Busca do Tempo Perdido, consciente de que teria de me expor com persistência e tempo à lenta e arrastada melopeia proustiana para que a determinado momento pudesse ser levado gingando (em câmara lenta, claro está) por ela. Ainda não estava nesse ponto, mesmo tendo ultrapassado a marca da primeira tentativa, mas já me começava a parecer possível a dança — quando tocaram para jantar. Temo agora que o bolero se tenha desconchavado outra vez.

(Mas haja esperança: este embuste literato-aristocrático de campainhas para jantar, quando tudo o que houve a fazer foi tirar coisas do microondas pela própria mão, sem a assistência de serviçais nem campânulas de prata, pode significar já uma leve contaminação benéfica da, digamos, respiração literária do moço de Paris. Que, pensando bem, morreu de pneumonia.)

*Mentira, isto do mosh.

Vendo a coisa pelo lado positivo

Com mais ocasião para ir à varanda olhar a serra e silêncio à noite na rua (os universitários debandaram e a adolescência ainda não quebrou a quarentena, não aqui), falta pouco para me sentir um Thoreau.

Comer em tempos de cólera


domingo, 8 de março de 2020

Meta-embaraço

Na mesma sessão de jogging do post anterior, um casal caminhando à minha frente e dando-se as mãos de braços estendidos, como se preocupado apenas com a transmissão aérea do vírus, ocupa toda a largura do trilho e preparo-me para o ultrapassar usando a estreita faixa de erva entre o caminho e um atoleiro. A escassos metros, o elemento masculino do casal apercebe-se da minha chegada pelas suas costas e delicadamente tenciona deixar-me passagem pelo meio dos dois, largando a mão da amada e encostando-se à esquerda, para a faixa de erva que eu planeara usar. Quer porque a inércia da corrida e a má forma já não me permitem mudar radicalmente de rumo, quer porque gosto de passar pela vida discreto, sem perturbar ou partilhar o caminho dos outros, tudo o que consigo é não atropelar o tipo alargando um pouco mais o arco da ultrapassagem pela esquerda — o que me põe a chapinhar pesadamente no lamaçal durante todos os longos segundos que levo a deixá-los para trás. Sem me voltar, ouço o ohhh culpado e embaraçado do rapaz e embaraço-me eu também por ter os pés em equilíbrio precário e sujo na lama e por o ter deixado embaraçado a ele com a minha mania de contornar todas as multidões, mesmo que de dois. Embaraço-me ainda por lhe ter, provavelmente, salpicado as calças, que ele trazia tão estimadas e esticadas. Continuo, como faço sempre, olhando em frente, como se apenas tivesse olhos para a meta — mesmo não sabendo o que seja e a que distância se encontra.

Padecimento

Passo por ele a correr, mas a música que vai a ouvir está bem alta e percebem-se distintamente a voz e os requebros de Elvis Presley. Não tem idade para ter sido fã in illo tempore, mas parece suficientemente nostálgico para que o Rei tenha sido companhia marcante na sua juventude.
Quando regresso, encontro-o noutro sector da minha pista de jogging. Está agora sentado a uma mesa de piqueniques. Elvis canta uma daquelas que fazem chorar as pedras da calçada. Ele, de cotovelos no tampo, cabisbaixo, esfrega os olhos lacrimejantes; ouço-o fungar. Talvez a música o lembre de amores antigos. Ou então é apenas o Covid 19.
Será o Correntes d’Escritas a derradeira prova da influenza dos escritores?