quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Crise da imprensa: os meus contributos

A minha relação com a imprensa no último ano não tem contribuído nada para a sua saúde económica. Deixei de comprar o Público quando me incutiram a sensatez de considerar um euro e sessenta e cinco dinheiro a mais para um jogo de Sudoku (só comprava ao fim-de-semana, o baixo nível de dificuldade dos jogos de segunda a quinta não era estimulante). A única outra razão que me fazia (e faz) comprar o jornal era o suplemento Ípsilon. Há alguma possibilidade de entusiasmo e fascínio nas artes que não encontro no quotidiano político e social do país, na sua nefasta e maçadora previsibilidade. Sem me atrever a uma reflexão como a da Alexandra Lucas Coelho, julgo que, se o jornal diminuísse drasticamente o número de páginas e colunistas dedicados à vidinha e transformasse em caderno diário o Ípsilon, o número de compradores aumentava. Não subestimem a quantidade de pessoas que se está nas tintas para o futuro de Paulo Portas e dispensa a redundância de quotidianamente lhe darem as mesmas más notícias sobre o seu próprio futuro. Há, apesar de tudo, mais efervescência e diversidade na literatura, no teatro ou na música do que na vida da república. Desta, um resumo mensal dificilmente deixaria de fora qualquer novidade. Aliás, um almanaque anual ao género do Borda d’Água, com as suas tabelas de ciclos e reiterações e os mesmos provérbios e mezinhas, seria suficiente periódico nacional. 

Pirotecnia precoce

Às cinco da manhã houve fogo-de-artifício na rua ali atrás e não fui eu que o lancei. Podia ter sido: partilho da mesma insónia e do mesmo desejo de adiantar a pirotecnia e os ponteiros, da mesma pressa em sair deste ano velho e de maus-fígados.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Miasma

«Também havia a voz. A madrinha tinha uma daquelas vozes afectadas de lady inglesa, oscilando entre agudos e graves como um adolescente a amadurecer, mas com o sotaque carregado, as vogais rudes e as interjeições dum lavrador. Agora que dedico algum tempo a pensar nisso, não era com a nobreza britânica que a madrinha mais se parecia, mas com as preceptoras da nobreza britânica. Quando lhe ouvíamos a voz a progredir pelos corredores e pelas divisões da casa, espécie de miasma que se infiltrava por qualquer frincha e a qualquer hora, o nosso estremecimento não era de súbditos receosos do alcance do poder real, mas de pupilos que odeiam e temem a velha ama germânica que a família mantém como tradição orgulhosa nas folhas de pagamento mensais. (Qualquer comparação com bruxas verrugosas e histéricas teria igualmente cabimento: a madrinha parecia ter sido concebida ou treinada para ser prova de verosimilhança de todos os clichés.)
Um verdadeiro fenómeno era a sua gargalhada. Já imaginaram alguém dar sonoras gargalhadas sem que no seu rosto houvesse um indício de riso ou divertimento? A madrinha não tinha humor (embora utilizasse doses regulares de sarcasmo), mas isso não a impedia de acompanhar (e na verdade suplantar) as reacções a certos comentários ou piadas que se produziam à mesa. Ela gargalhava com a mesma força de quem expele um osso de frango da garganta, percutindo as paredes da sala como o equipamento sobredimensionado de uma discoteca ou fazendo drapejar os cortinados como um vento dos que activam avisos da meteorologia, mas os seus olhos mantinham a mesma vigilância censória e fria sobre os circunstantes, não traíam um único momento de cumplicidade ou empatia.   
A madrinha zelava pela casa e pelas tradições com o empenho exacerbado e anacrónico de aias e ministros de casas reais que na devida altura advertiram os senhores para os perigos dos caminhos que trilhavam. Ela tivera razão antes de tempo, mas não lhe cabia tomar as decisões (era uma matriarca que reconhecia a legitimidade do poder patriarcal), e quando o pôde fazer, demasiado tarde para evitar a queda em desgraça, já não conseguia deixar de agir como o último dos miguelistas — o ódio, a frustração e o desejo de vingança a dominarem cada segundo do dia.»

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Sílvia

«Quando a Sílvia cresceu não o fez apenas em sentido figurado, como acontece a tantas mulheres, cujo corpo de adolescente se transforma e enche de curvas mas não se estende verdadeiramente em direcção aos céus. Com Sílvia o crescimento ganhou expressão e significado, foi botânico, os seus membros cresceram como troncos e ramos de árvores mas ao ritmo de pés de feijão, ávidos de sol, competindo com os adultos pelo domínio do espaço aéreo. Nesse processo de grande consumo energético, tornou-se magra, por vezes demasiado magra, e a herança feminina da madrinha, sua avó, aqueles seios fartos mas rijos, parecia um equívoco, uma perturbação no perfil longilíneo, um lastro à última hora adicionado à sua anatomia para a impedir de se perder nas nuvens antes de a hipófise determinar o fim do crescimento.
Ter um peito daqueles não lhe concedeu porém uma silhueta recurvada; algo na sua estrutura óssea e muscular resistia à gravidade, a Sílvia deslocava-se de nariz bem emproado e sentava-se num perfeito ângulo recto que surpreendia. O primeiro bofetão que lhe dei, depois de me ter deixado, foi também em paga daquela perfeição ergonómica (talvez um ressentimento inconsciente da promessa de corcunda que eu era). Há algo de irritante numa mulher que parece quotidianamente a ilustração viva de um manual de etiqueta. Mesmo que na maior parte do tempo nos encha de vaidade (e até desejo) o seu talento para a elegância — expresso na materialidade das roupas e adereços que adquire sem interrupção, assegurando um fluxo de aquisições permanente e vital como soro para moribundos, e na imaterialidade da sua postura, fisionomia, gestos de antebraços, pensamentos e locuções de profunda vacuidade —, mesmo que nos sintamos envaidecidos e distintos por ter uma mulher assim, há sempre momentos em que vivermos com a Ava Gardner ou a Audrey Hepburn nos cansa. Cansa contracenar diariamente, sentir a obrigação de ser Gregory Peck das abluções matinais ao último escovar de dentes do dia. Um bofetão é um grito de liberdade, ainda que dado fora de tempo.»

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Swamp Thing

«(...) Eu fazia isso em algumas noites, com o impulso gótico de me vir enrodilhar depois nas algas ou nas ervas das águas menos profundas, sentindo a repugnância da sua viscosidade, as suas carícias arrepiantes de seres vivos asquerosos, a sujidade do lodo a levantar-se do fundo e a procurar envolver-nos numa nuvem perceptível de sanguessugas. Eram banhos de podridão com que eu procurava purgar-me, em noites de lua nova, da benfazeja luz solar que no Douro nos faz sentir príncipes destinados ao ócio e ao amor cortesão numa eternidade descomprometida, leve, a conjugar verbos apenas no único tempo interessante, o presente.
Desci ao cais nessa noite com o mesmo propósito de mergulhar, de me espolinhar nas águas rasas da margem e regressar ao quarto pingando lama, para desespero do pessoal da limpeza no dia seguinte. Mas a lua estava agora muito avançada no seu quarto crescente, iluminando com uma proficiência de lua cheia aquele troço de rio ainda livre do excesso de iluminação pública que já se verificava em tantas estradas desertas da região. A presença da Adèle, nos seus habituais trajes etéreos, dedicando-se na beira do cais a seduzir o firmamento nocturno com o mesmo ritual dervixe que lhe vira no primeiro dia, fez-me mudar de planos. Inicialmente pensei que podia ficar apenas a observá-la, com aquele deslumbramento juvenil de rapaz que pela primeira vez descobre os contornos de um corpo feminino, mas depois agi como agem os homens adultos, se suficientemente cheios de si, e fui meter conversa.
Não era uma surpresa que a Adèle estivesse receptiva à conversa — não havia por ali muita gente com quem falar e eu ainda não estava transformado como habitualmente no Swamp Thing. As constelações, se formos competentes nisso e o céu estiver descoberto, são um bom tema de conversa. Há outras possibilidades, além dessa mostra extravagante de erudição cosmológica, como por exemplo a deriva para a Antiguidade Clássica — com os seus deuses, os seus mitos, as suas metamorfoses, os seus amores e a sua excitante promiscuidade — ou para assuntos de foro místico, como os signos do Zodíaco, igualmente prenhes de insinuações amorosas e preliminares sexuais.
A temática estelar interessou Adèle, seria aliás uma surpresa que não interessasse a alguém tão eminentemente espiritual, mas ela quis ver os astros do meio do rio. Que esse desejo tivesse uma plausibilidade geométrica, digamos, assente no cálculo intuitivo de que no ponto mais equidistante de ambas as margens arborizadas a cúpula celeste se revelaria de uma forma mais ampla, não diminuiu o meu sentimento de que havia uma intenção romântica na vontade dela. Tanto mais que me perguntou, delicadamente, se sabia remar.
Deslizámos em silêncio para o meio da corrente, que, apesar de fraca, não permitia que o bote permanecesse estacionário como num lago. Preocupei-me, por isso, em orientar a proa no sentido da corrente, corrigindo o nosso avanço involuntário com ocasionais movimentos dos remos. A Adèle reclinara-se na popa, com as pontas dos cabelos de nórdica submergidas no Douro e oferecendo a sua garganta branca à Lua e ao meu olhar.
Esgotado o meu conhecimento sobre constelações, e ainda com os contornos fantasiosos da casa da Quinta à vista, como se estivéssemos no meio do Lago Léman, a rapariga belga, inspirada por essa mesma divertida imagem nocturna de uma Suíça duriense, enveredou pela história de Mary Shelley, de que parecia ter decorado longos parágrafos da Wikipédia. Falou da mãe da escritora, a feminista Mary Wollstonecraft, e do seu pai, o filósofo William Baldwin. A Adèle estava simplesmente a fruir um tema que a entusiasmava e, com intenção ou não, a dar-me a conhecer a sua adesão a ideais de amor livre, mas eu ficara retido umas passagens atrás, na entrada do seu dicionário que falava dos escritos de Baldwin sobre o casamento enquanto «monopólio repressivo».
A linhagem Wollstonecraft/Baldwin/Shelley era algo mais do que eu poderia suportar. Toda aquela gente de espírito livre, tão sensata e avançada quanto às relações entre homens e mulheres, parecia ter sido convocada para me fazer enfrentar os meus fantasmas recentes. Se a Adèle tencionava ter comigo o seu caso amoroso no Douro Superior dera um passo em falso com aquela digressão de enciclopédia online. Eu teria sido facilmente seduzido, naquele tão agudo estado de carência, mas, pelo menos de momento, ocorria-me tudo menos ter sexo com ela no fundo impermeabilizado do bote da Quinta de Pompeia. Antes que, de Shelley, me viesse à inspiração Frankenstein, um ser de um romantismo menos delicado, remei com furiosa urgência até ao cais, alegando efeitos secundários do jantar, de costume tão saboroso e serenamente digerível.»

terça-feira, 29 de setembro de 2015

A Zona de Interesse


A Zona de Interesse, de Martin Amis, é um livro belíssimo. É talvez um dos melhores que li de Amis e no entanto é também aquele onde o escritor se afasta mais do seu estilo pessoal, onde abdica mais de ter um estilo. Isto dito, não se consegue esquecer que é uma obra de arte feita a partir do pior dos episódios da história da humanidade — e isso, que tem em si algo de Amis way, não representa qualquer mal. Alguns editores recusaram-se a publicar o livro. Ou são patetas ou não o leram. Ou ambas as condições são verdadeiras. Em momento nenhum do romance o leitor consegue ou pode sentir-se autorizado a esquecer o que foi o Holocausto, a relativizá-lo, banalizá-lo, achá-lo coisa de um passado pitoresco a preto e branco como as histórias de piratas, onde vida e morte, crimes e violações são décor. Não. Sai-se do livro como se sai dos livros de História: horrorizado com a Alemanha nazi. Sim, num momento ou noutro inquietamo-nos por estarmos a ter prazer estético com uma história de amor num campo de concentração, uma história de amor que se passa na zona dos carcereiros e dos carrascos. Mas isso não faz de nós (nem do autor) aberrações morais. Apenas mostra que temos emoções e predisposição para a beleza — e que tê-las não chega para fazer de nós boas pessoas, estão ali os nazis para o evidenciar. (Na verdade, talvez o livro até tenha outras sugestões, mas este aspecto não o posso explorar sem cair em revelações sobre o enredo.)
Há o risco de leitores menos familiarizados com a História ficarem a achar que as atrocidades nazis não passam de ficção, cenário para romances e filmes, no máximo uns contratempos aborrecidos para personagens secundárias, contribuindo assim o livro para banalizar o Mal e relativizar os crimes nazis? Não. Primeiro porque Hollywood já se encarregou disso há muito tempo. Segundo porque leitores menos familiarizados com a História dificilmente lerão Martin Amis. Terceiro porque esses leitores, na eventualidade de lerem o livro, teriam de ser também insensíveis, incapazes de empatia e sobretudo pouco familiarizados com a inteligência (pelo menos pouco treinados nela). Há leitores assim, que devamos proteger do terrível Amis? Há. Chamam-se geralmente adolescentes (mesmo que alguns tenham passado a idade púbere) e são já várias as gerações deles que têm vindo a ser poupadas a conhecer a História. Há leitores assim, mas não os devemos proteger de Amis. Devemos protegê-los das televisões, dos Ministérios da Educação, da robotização neoliberal em curso — e dar-lhes muitos, muitos livros de História para ler. E depois dar-lhes também o livro de Amis para ler.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Nunca tinha pensado nisso

«Nunca tinha pensado nisso, mas os mosaicos da nossa casa-de-banho, para onde jorravam clandestinas as minhas primeiras golfadas de sémen, eram iguais aos da cozinha dela. Ainda que o chão da madrinha fosse anterior, tenho a certeza de que não houve nenhuma intenção irónica da parte do meu pai quando ele se ajoelhou no local onde colocaria a retrete a assentar com ferramentas emprestadas aquelas tijoleiras que formavam um padrão geométrico trompe-l’oeil de degraus tridimensionais capaz de nos baralhar o sentido da visão como se tivesse sido desenhado por Escher. Estou convencido de que os mosaicos da nossa minúscula casa-de-banho eram sobras da cozinha dela, doadas com aquele misto de condescendência feudal e arrependimento avaro que lhe retorcia os lábios sempre que hesitava na avaliação do seu próprio acto. A madrinha gostava de se imaginar próspera ao ponto de se permitir uma prodigalidade indiferente, mas para sua infelicidade ela não tinha como ignorar a falência da empresa e o seu próprio carácter, de que não fazia parte a empatia. Daí aquela luta consigo mesma, visível e perenemente fixada no esgar do rosto. O meu pai, pelo seu lado, desconhecia as virtudes catárticas da ironia e nunca lhe ocorreriam pensamentos menos dignos ao sentar-se naquela sanita com vista para o puzzle vertiginoso que desenhava no chão a cerâmica esmolada.

A mim, sim, ocorria toda a espécie de pensamentos insultuosos, excepto os que envolviam a líbido. Quando era uma presença regular na minha vida, a madrinha não passara há muito os quarenta anos, mas para os meus olhos era uma velha, e eu atribuía o volume e a firmeza aguda — bélica, de obus alemão — dos seus grandes seios a soutiens antiquados feitos de arame e renda, não a quaisquer qualidades eróticas do seu próprio corpo.
A ironia — e também a epifania, chamemos-lhe assim — era eu ter-me recordado da madrinha quando hospedado na Quinta de Pompeia descobri que o quarto-de-banho da suite e a cozinha semi-rústica da casa principal estavam recobertos com o mesmo tipo de mosaicos, possivelmente fabricados na década em que eles eram modernos (a mesma da minha infância), tal o afã tradicionalista e o desejo de genuinidade que tinham presidido à reconstrução da Quinta.

Tenho uma propensão para reparar em mosaicos. Herdei do meu pai o carácter introspectivo e o infame hábito de manter o olhar baixo, serviçal, como as castas inferiores na sua congénita prontidão para aceitar o menosprezo, ou como os judeus demasiado perplexos com o que lhes acontecia em Auschwitz para sequer pensarem em reagir. Na selva das relações sociais, um olhar baixo é um convite aos predadores. A menos agressiva ou hostil das criaturas sente o apelo do sangue e uma força dominadora se à sua frente encontra um humilde de cerviz curvada. Não há como negar razão ao aforismo perante estes factos: todos os homens são maus, basta terem a sua oportunidade.»

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Bastardia

Kettle, uma velha snob da saga Melrose, de Edward St Aubyn, é o tipo de pessoa que encara como um dever a sua lealdade à má-disposição. Eu, espécie de morgado por bastardia antiga, sinto o mesmo galhardo e inelutável apelo. Porém falho em atendê-lo plenamente. Não por falta de intimidade com o mau-humor — mas porque ao fim e ao cabo empatizo com as pessoas e sinto remorsos quando o meu cenho franzido as perturba. Não tenho a pureza de um verdadeiro aristocrata, poor me.

terça-feira, 14 de julho de 2015

Um Pirandello para Coelho

Desde La Feria que Passos Coelho é uma personagem à procura de um papel. Infelizmente, Herman José desistiu de ter piada, senão hoje veríamos Passos como «presidente da junta». O ex-líder da JSD, melena ao vento, poderia mesmo ter sido «o maior da sua aldeia», se os Gato Fedorento não tivessem suspendido precocemente actividades.

Olhamos em volta e temos de concluir com mágoa que Passos «por-acaso-até-foi-uma-ideia-minha» Coelho só é Primeiro-Ministro por falta de papéis cómicos noutras empresas — ou porque é mais exigente um casting para musicais de lantejoulas na Rua das Portas de Santo Antão do que a democracia portuguesa.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

O pessimismo antropológico revisitado

É irónico que o reforço da minha sensibilidade de esquerda tenha sido obtido observando os próceres e os pregoeiros das instituições capitalistas com a lupa de uma inata característica de direita: o pessimismo antropológico.

Todos os homens são maus e naturalmente egoístas, só que alguns são-no mais do que os outros — é com esta espécie de paráfrase orwelliana que o que resta de direita inocente se devia hoje confrontar.

«A vida militar»

[Primeiros parágrafos de uma prosa justamente descontinuada]

«Tudo começou vinte anos antes, quando num dia solarengo de Fevereiro, desses em que nos atrevemos a mergulhar no oceano apesar do risco de síncope cardíaca, fui arrebanhado para a vida militar. Se havia alguém que não fora concebido para a tropa, era eu: o único desporto que tinha feito até à data era o sprint, quando tentava fugir do bullying na escola. Sobre a porta onde fazíamos fila para entrar, como estúpidos cordeiros voluntários para o sacrifício, havia uma sigla, «EPI», e só mais tarde soube que não significava «Escola Prática de Infantaria» mas sim «Entrada Para o Inferno». Claro que o Inferno ali, no átrio barroco do antigo convento, era ainda cálido, apenas chamuscava, era mais fanfarronice militar do que realidade. Tinha muito de Comboio Fantasma, onde umas figuras com insígnias e galões procuravam desempenhar o papel de almas penadas e monstros avulsos. Um tipo assustava-se e ria-se, tudo ao mesmo tempo. Os furriéis e os alferes logravam ser tão ridículos, nas suas fardas engomadas e nas suas botas luzidias, quanto certas representações naïves da morte com gadanhas ergonomicamente erradas.
A mim a tropa trazia-me às vezes entre o divertido e o entediado, mas frequentemente estava apenas irritadiço. O regulamento e os horários eram absurdos. Quando às seis da manhã acordava com o matraquear das giletes no mármore oxidado dos lavatórios, dava graças aos céus por ter sido brindado com um rosto que naquela altura ainda era quase imberbe e onde a escassa penugem loura resultava invisível aos olhos de orangotango macho e míope dos graduados. Para eles, eu não tinha barba. Tinha bochechas como nádegas de gaja, onde gostavam de assentar a mão, e julgavam que me incomodavam com isso. Eu ria-me como se eles tivessem contado uma anedota e eles diziam que não era para rir e davam-me mais um lambefe. Parecia-me paga aceitável para o privilégio de me levantar seis dias por semana mais tarde do que os outros. Por vezes acordava antes do ritual da barba, porque havia uns imbecis cujo zelo pela pontualidade na parada os fazia levantar ainda mais cedo e, no seu nervosismo, não conseguiam abrir os cacifos metálicos sem parecer que os estavam a assaltar. Eles tinham a chave do seu próprio cacifo, mas abanavam-no e batiam-lhe como quem está a ser perseguido pelo Freddy Krueger e não consegue acertar com a chave na fechadura do carro salvífico. Depois de finalmente o abrirem, não o sabiam fechar sem bater com as portas, metidos naquela sua cabeça e naquele seu mundinho apressado onde só havia lugar para a obsessão com as horas e a obediência cega à hierarquia.
Nas primeiras noites em Mafra, tremi como alguém resgatado do gelo. Depois de sermos admitidos naquele patético clube masculino, tinham-nos cortado ainda mais rente o cabelo e, num patamar de uma larga escadaria, fizemos nova fila para receber o fardamento, tudo nos previsíveis tons de verde azeitona, incluindo a roupa interior, as meias e os lenços de assoar (excepto o equipamento desportivo, que era de um branco pronto a aceitar as manchas de suor, e as botas, pretas como pneus novos e parafinados de chaimite). Ao contrário da maioria das lojas de marca, ali não se aceitavam trocas, pelo que éramos obrigados a lembrar na hora os nossos tamanhos ou a viver com o remorso de os ter esquecido — e com as peças demasiado apertadas ou demasiado largas. Mas ter boa memória não chegava: as botas que recebi eram do número certo, só que, numa prova de que o rigor militar é um mito, isso não significou que elas se ajustassem aos meus pés. Nas semanas seguintes, até ser autorizado a ir a casa, tive de usar em simultâneo todos os pares de meias que me calharam para conseguir caminhar sem deixar as botas para trás, e isso não favoreceu em nada a atmosfera já de si empestada da caserna.
O pior foi que com as fardas não nos entregaram nenhum pijama e as noites de Fevereiro, vocês sabem, podem ser bem frias se dormirmos no túmulo de pedra e mármore de conventos como o de Mafra — e sobretudo se a generosidade do Exército não for além de um cobertor no fio. Demorei uma semana inteira a perceber que me estava a cagar para o aprumo da farda e que portanto tinha era de dormir vestido se queria parar de bater os dentes à noite. Aparecer na parada com a farda enrugada era um pequeno problema, tinha de se aturar os gritinhos do furriel ou as ameaças de castigo, por vezes concretizadas, do alferes. Mas o que era isso comparado com a insónia gelada?
De resto, cedo comecei a desinteressar-me das rotinas militares. Havia um mínimo que eu cumpria, que era permanecer no quartel, fora isso não me preocupava demasiado o que indicava o menu do dia, não estava para me aborrecer com detalhes. Os militares eram, por exemplo, muito ligados à etiqueta, falsamente convencidos daquela treta de oficial & cavalheiro. Diziam que não se misturavam peças do uniforme número dois (o de saída) com o número três (o de trabalho ou operacional) e muito menos com o de ginástica. A continência só se fazia com a cabeça coberta. Não se ficava de cabeça coberta no refeitório. Nunca se pegava numa arma enquanto se envergava a alvura do equipamento de ginástica, como se assim vestidos nos tornássemos anjos, seres incompatíveis com a violência da G3. Enfim, um rol de condições e regras que poderia baralhar um tipo desatento como eu era. Como resultado disto, não foram raras as vezes em que apareci na parada, com o atraso do costume, vestido para ir à madrinha quando havia ordem de permanência de fim-de-semana. Ou tendo esquecido a arma num dia destinado à carreira de tiro. Ou vestido com o fato de ballet quando toda a parada estava coberta do verde número três da GAM*. Reconheço, à distância, que deveria ser divertido para os outros, quando as companhias estavam já perfeitamente alinhadas e de capacete num geral verde oliva, ver-me chegar atrasado e coberto de branco de cima a baixo (t-shirt de alças, calção vincado, meias virginais enfiadas nas alpergatas de lona alvacenta e esta pele nívea que Deus me deu, o conjunto coroado pela matinal e refulgente penugem loura). Mas, apesar da cor, eu era ali a ovelha negra e os outros os cordeiros obedientes. Não fazia questão de aparecer de forma diferente no desfile quotidiano. Apenas me esquecia na véspera de ler as ordens de serviço, ou, na decisão de ignorar que estava na tropa, lia-as mal.
Claro que devia desconfiar da surpresa e da malícia do armeiro quando ele me entregava a G3 mal contendo o riso de me ver desacertado no fato de ballet. Eu nem gostava do equipamento de ginástica — era frio, tiritava o tempo todo quando o usava —, mas sabia que em metade dos dias da semana era esse o traje adequado nas primeiras horas da manhã, quando íamos cumprir a nossa dose de exercícios físicos (na outra metade da semana, vestíamos a farda de trabalho e íamos marchar ou praticar na pista de obstáculos). Tinha portanto cinquenta por cento de hipóteses de acertar, e na maioria das vezes acertei. As poucas em que isso não aconteceu foram infelizmente demasiado marcantes. Fizeram-se fotografias, rapidamente célebres.»

* «Ginástica até à Morte», ou «Ginástica de Aplicação Militar», na linguagem sofística do Exército.

P.S.: Outros parágrafos falhados podem ser lidos aqui: http://www.canhoes.blogspot.pt/2013/03/primeiros-paragrafos.html

Pequenas ironias

Ver Helena Matos queixar-se de hate mail.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

«Se a literatura salva? Não, não salva. Mas se ela se extinguir, extingue-se tudo.»
Hélia Correia com uma razão que já tão pouca gente consegue perceber.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

17


Ia propor-me oferecer um exemplar d’Os Idiotas ao primeiro leitor ou leitora que decifrasse o cabalístico 17 que se vê na foto, mas percebi que o exercício era em si idiota, por redundante. Decerto todos os que conhecem a importância do 17 na mitologia deste blogue são já detentores do livrinho.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Uma epifania todoroviana para Marco António Costa

Num daqueles vídeos que nos aparecem no Facebook e que às vezes, por qualquer indução subliminar tecnológica ou simples tédio existencial, não resistimos a espreitar, vi Helena Roseta servir-se vagamente da poesia num debate político televisivo e um Marco António de barba aparada e gravata sem mácula rejeitar essa via ingénua e inútil, subordinando-a naturalmente ao pragmatismo sério — talvez adulto, para usar a terminologia do FMI — e salvífico da economia.

Tzvetan Todorov é um búlgaro que foi estudar em Paris nos anos do bloco comunista. Para passar nos testes que lhe davam acesso à cidade luz, precisava de falar de literatura nos termos que a ideologia comunista impunha: era preciso mostrar de que forma os escritos analisados ilustravam a boa ideologia ou como falhavam em fazê-lo. Para não ter de entrar nesse exercício simultaneamente estranho e constrangedor, Todorov, como tantos outros, escreveu um trabalho que abordava a materialidade do texto e as suas formas linguísticas. Seguiu, já se vê, a via do estruturalismo (aliás viçoso à época e vicejante em todas as décadas seguintes), via que seria a sua na carreira universitária que então iniciou em França.

Posteriormente, num livrinho intitulado «A literatura em perigo» (2007), que por coincidência hoje dei por mim a ler, o mesmo Todorov nota que o seu subterfúgio para não discutir a literatura nos termos do regime se tornou afinal a norma no ensino francês (e europeu), que não tinha a mesma necessidade de tergiversar. Todorov alerta para o absurdo que é ensinar e aprender literatura em função da forma e das estruturas dos textos em vez de o fazer primariamente a partir daquilo de que as obras falam, do seu sentido.

Marco António e um bom lote de políticos e economistas europeus são uma espécie de semióticos da actual ideologia dominante. Só podemos desejar que tenham depressa a sua epifania todoroviana sobre o verdadeiro sentido da existência humana e da vida em comunidade. Talvez isso não salve o euro, mas poupa-nos a um pretensiosismo estéril e patético.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Vanitas


Só para lembrar que a Granta Portugal n.º 5 chegou às livrarias e traz um conto meu. Bem sei, não é a mesma coisa que pertencer à elite dos mil poetas da Chiado Editora, mas figurar ao lado de Jonathan Franzen e Gore Vidal sempre dá uma certa vaidade.


quinta-feira, 21 de maio de 2015

Silvano, o profeta

«Há um profeta no Seixo, disse Eurico, levantando-se para encarar os campos que os separavam da aldeia. Ninguém que seja de levar muito a sério, apenas um tipo louco que escolheu uma vida original. Habita uma cabana tosca lá em baixo, depois da curva do rio, comendo o peixe que pesca e as ofertas piedosas da aldeia, onde sobe uma vez por semana. De vez em quando vai pelas terras em volta, de porta em porta, como os apóstolos, de Bíblia na mão. Tem uns longos cabelos negros, barba, é magro mas musculado e veste sempre pouca roupa, mesmo no Inverno. Os mais supersticiosos não deixam de se benzer quando ele aparece. Se não o conhecessem jurariam que se tratava de Jesus Cristo, Ele próprio, e alguns ainda esperam, sem o confessarem, que um dia algo de maravilhoso se revele nele. As mulheres suspiram, e entre elas falam do desperdício que é um homem daqueles, bonito como o Errol Flynn, ter-se perdido assim.
Houve alturas em que esteve para ser morto, abatido a tiro como um javali, ou à sacholada como uma víbora. Nestas terreolas os homens saem cedo, para a lavoura, e só as mulheres ficam em casa. À hora a que o Silvano (é este o nome dele) chega para a sua pregação só as encontra a elas. Ele fala baixinho, com afabilidade e extrema educação (estudou) e é de facto uma pessoa com bom coração, cheia de amor pelo próximo, como manda a Bíblia. Seduz, para dizer tudo numa palavra. Se fosse um caixeiro-viajante ninguém duvidava que os seus modos não passavam de uma táctica para vender as bugigangas que trazia na mala e sabe-se lá para que mais. Mas ele só fala de religião, de praticar o bem, de confessar e perdoar os pecados e coisas assim. Seja como for, por essas ou outras razões, é bem recebido, as mulheres gostam de o ouvir e perdem um bom tempo com ele, a suspirar, enlevadas num bem-estar místico, a darem-lhe as mãos a beijar, por vezes. E isto nem sempre agrada aos maridos, aos mais ciumentos, que vêem naquela catequese, reprovada pelo padre, uma maneira de serem desprezados pelas mulheres, e às vezes pior do que isso. O que lhe vale, ao Silvano, é não fugir, dar sempre a outra face. Se se acobardasse um bocadinho quando eles chegam com as fúrias e desatasse a correr pelos campos a segurar os seus andrajos, já teria, talvez, levado com chumbo nas costas. Assim, exaspera os homens — que lhe invejam a figura e a bravura —, mas ao mesmo tempo intimida-os, com o seu olhar bondoso de santo no altar. Duma forma ou de outra, sobreviveu até hoje.»

in Hotel do Norte

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Granta


Em Maio de 2003 publicávamos na Periférica uma crónica de Ian Jack, então editor da Granta, e uma entrevista que lhe fez o jornalista Justin Webster. Na altura o céu era o limite e com muita lata e alguma ajuda conseguíamos para a revista matérias e colaborações por vezes um pouco surpreendentes. Na verdade, nenhum de nós conhecia muito bem a Granta, o Fernando fizera recentemente uma assinatura, lêramos umas coisas sobre ela, il padrino Rentes de Carvalho aconselhara-a, percebíamos a sua importância e influência, gostávamos daquilo do “new writing”.
Desde então a vidinha impôs-se e a fanfarronice moderou-se. A Periférica acabou. A Granta deixou de ser exclusivamente inglesa e ganhou edições em 12 países, um dos quais este remorso de todos nós.
Doze anos depois, o número 5 da Granta lusa publica um texto meu — e tem a festa de lançamento na Rua do Alecrim a 27 de Maio, o mesmo dia em que, em 2003, fazíamos no Chiado o lançamento da Periférica n.º 5.

domingo, 26 de abril de 2015

Hugo Boss*

Uma das coisas positivas de se ser teso é não ter no guarda-fatos nada que nos possa perturbar quando descobrimos que Hugo Boss, membro do partido Nacional-Socialista alemão, vulgo Nazi, confeccionou os uniformes das SS.
Não acho que os erros dos antecessores devam estigmatizar ou condenar os herdeiros (familiares ou empresariais) mais do que as leis da sucessão (e das compensações de guerra, quando aplicáveis) devam prever, e será difícil encontrar uma marca alemã que não tenha trabalhado para os nazis. Além disso, temos o também perturbador currículo asiático da Zara e das outras marcas low cost. Tudo isso merece ponderação, pois claro. Mas ainda assim, alivia, francamente, seguir uma linha de vestuário, pouco fashion que seja, que não teve Himmler como cliente emérito.


*Depois de ler um post de Rui Bebiano no Facebook.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Mil poetas

A Chiado Editora tem uma Antologia de Poesia Contemporânea que reúne cerca de mil autores. Sim, apenas mil. Julgávamos nós que Portugal era um país de poetas e a Chiado, propondo-se antologiar a raça, não encontra mais de mil. Que ineficiência. Que preguiça. Que falta de respeito pela veia pátria. 
Há quem defenda a editora dizendo que o magro número de antologiados se deve ao apertado crivo do antologiador, receoso de deixar a impressão de que ali entrava qualquer transeunte capaz de assinar o próprio nome, mesmo que com erros ortográficos. Receio absurdo, bem se vê, que na verdade conduziu à publicação de uma obra incompleta, pouco representativa da vivacidade lírica nacional.
É certo que o excesso de escrúpulo teve as suas vantagens: não há na antologia senão Homeros. O escasso número de autores assegura ao leitor o mesmo conforto que teve o organizador: em colectânea peneirada com tal minúcia é virtualmente impossível encontrar um poema mau.
A opção elitista da editora tem naturalmente desvantagens comerciais (o que dá uma certa nobreza abnegada à empresa, é de reconhecer). Sabendo-se que os leitores portugueses, na hora de comprar, são movidos sobretudo pela cumplicidade estética, pela afectividade intelectual e pelos laços literários que mantêm com os autores, está bom de ver que se venderão uns meros seis ou sete milhares de exemplares da antologia quando se poderiam vender pelo menos sessenta mil, se se multiplicasse por dez o número de antologiados. Reflectindo, aliás, mais verosimilmente a contemporânea arcádia lusitana. Dez mil poetas lusos* é o mínimo que uma antologia que se preze deve às letras portuguesas.

* De longas barbas e de braço dado a cantar eurovisivamente, à grega, “Good bye, my love, good bye”.

P.S.: Entre o Sono e o Sonho é o título da antologia da Chiado Editora. Entre o sono dos leitores e o sonho delirante dos autores, presumo.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Tolentino

Tolentino de Nóbrega, correspondente do Público na Madeira, quotidiano ilustrador do boçal caciquismo jardinista, era um exemplo do que é ser jornalista.
Morreu hoje, e eu, que admirava a sua coragem, tenho pena, muita pena, e remorsos de nunca ter escrito uma linha sobre ele enquanto vivia.
Para nós, continentais, era fácil lidar com o défice democrático da Madeira declarando, jocosa e unilateralmente (e mesmo assim sem darmos consequência às palavras), a independência da ilha. Era um lavar de mãos, que desculpávamos com as votações norte-coreanas de Alberto João. Tolentino era de outro calibre. Ao que consta, também ria muito, mas profissionalmente informava-nos, ano após ano, com uma coragem que nos devia envergonhar a todos, do desvario madeirense.
Devíamos ter percebido que cada artigo seu não era apenas uma notícia do ultramar, mas uma bitola para a dignidade. Nós sempre tivemos (e temos) os nossos próprios caciques, mas ao contrário de Tolentino fingimos que eles não existem ou contemporizamos.

terça-feira, 7 de abril de 2015

J. Rentes de Carvalho na RTP

O documentário de António-Pedro Vasconcelos e Leandro Ferreira sobre J. Rentes de Carvalho (www.tempocontado.blogspot.pt) passa nesta terça-feira, 7 de Abril, na RTP2, às 23h25. Quem puder, veja. Quem não puder, por uma vez use as opções de gravação de programas para algo útil.

(Notícia aqui e aqui.)



segunda-feira, 6 de abril de 2015

A ascensão germânica

Há quem diga que todas as rivalidades dos anos 80 foram redimidas com o convite de Nena a Kim Wilde em 2002 para o remake de “Irgendwie, Irgendwo, Irgendwann”, incluído no álbum que celebrava os 20 anos de carreira da cantora alemã com o título “Anyplace, Anywhere, Anytime”. Mas a exegese do vídeo que acompanhou a canção deu azo a duas teorias diferentes. A primeira toma o gesto de Nena por um acto de piedade, não de conciliação. Contudo, embora a piedade não raro envolva sobranceria ou condescendência, pode-se ainda optar por ver ali apenas nobreza. «Vamos lá tirar a Kim da sua jardinagem por um momento e lembrar ao mundo como também ela cantava bem», poderia ter pensado a simpática Nena, num arroubo de caridade.
A segunda teoria, porém, não deixa espaço a ambiguidades destas. Os seus preconizadores consideram que os 3’44’’, apesar da boa prestação vocal de Wilde, são uma orquestrada humilhação que a raça ariana, representada pela esguia, jovial e saltitante Nena, perpetra sobre a melancólica e já pesadona Inglaterra. Eram, defendem, os primeiros sinais da ambição germânica que dez anos depois transbordaria do festival da Eurovisão para a economia e a política.

quarta-feira, 1 de abril de 2015

O tee do 17

Vidago é a minha Sintra. Eu sei que para um tipo nado nas Pedras Salgadas isto constitui uma traição, mas não vou iludir ninguém.
No parque das Pedras — que continuo a amar como o meu quintal — habitam as primeiras duas décadas da minha vida. Continuam a habitar. Habitam talvez mais confinadamente do que quando as vivi: creio que, apesar de tudo, conseguia sair com mais frequência dos limites termais quando tinha de facto 16 ou 17 anos. Agora não. Agora raramente tenho vida adolescente fora dali. Na minha memória (que a partir dos quarenta passou a ser uma parte não negligenciável e vívida do meu quotidiano) a vida púbere resume-se ao que acontece(u) intramuros.
Mas se falei em confinamento foi por facilitismo semântico, na verdade o parque das décadas de 70 e 80, o meu parque, era incomensurável. Ainda hoje quando o revisito — o adulto em mim a reavaliá-lo como agrimensor perplexo ou incrédulo — me convenço que os cálculos topográficos e as leis da física se não aplicam ali, a não ser que consideremos a quarta dimensão e seguintes. O parque das Pedras era a minha vila de M. Night Shyamalan, mas o mistério estava todo do lado de dentro.

E contudo hoje é para Vidago que me desvio quando posso; para o parque de Vidago. (Mesmo que não raro para ali me desvie sem sair das Pedras.) Há a minha costela aristocrática, já aqui referida, e que em Vidago, reconheçamo-lo, tem mais onde se inspirar. Mas não é uma costela de aristocrata cortesão, dado à prática e à intriga palacianas. É mais um espírito de rei consorte, uma reincarnação de D. Fernando II de Portugal. Retiro-me para Vidago como D. Fernando para a Pena, para me subtrair ao mundo com a minha arte. No caso, para ler uns livros e observar a humanidade ao virar da página e a uma distância segura. Mais precisamente, à distância do banquinho instalado nas alturas do tee do buraco 17, já bem avançado na encosta do monte. Refiro-me ao tee dos 525 metros, a maior distância do buraco, onde raros se dão ao trabalho de subir para a first shot, talvez por em Vidago apenas aparecerem jogadores de handicap alto e sempre é melhor subir menos e tacar 50 metros mais próximo do green. Aquele banco de granito consegue nos finais de tarde de Primavera e Verão parecer-se a um terraço em Sintra, e a discreta plaquinha votiva afixada nas suas costas, em memória de Robert Keith Cameron (presumo que da firma Cameron & Powel, responsável pelo novo desenho do golfe), concede ao sítio uma dignidade de local sagrado. Cameron deve ter olhado para a sua obra dali de cima, como Deus ao sétimo dia, e mandado pôr ali um banco para apreciar a imensa beleza do que fez (sem, felizmente, estragar o não menos belo trabalho da Natureza). Por isso, ali só deviam subir, circunspectos e silenciosos, jogadores de handicap zero (e espero que todos prefiram jogar de manhã, nunca ao final da tarde) ou verdadeiros apreciadores da paisagem e de retiros bucólicos. Ou seja, eu — e, vá lá, o fantasma de D. Fernando.

P.S.: À consideração dos vigilantes do parque: deixem em paz o gajo dominical dos livros, caso algum dia vos incomode a peregrinação, e persigam os que lhe sucedam. Esses serão os profanadores.

sexta-feira, 27 de março de 2015

LER mal os sinais

O novo número da LER apareceu-me de surpresa num post de alguém no Facebook, esse antro de ociosos e desmiolados. O blogue da revista, ainda que indicado a vermelho logo na página 1 como sendo um local de «informação diária sobre edição», não é actualizado desde 21 de Novembro de 2014. A página de Facebook (sim, o Francisco deixou que alguém criasse uma), ontem actualizada, estava silenciosa desde 5 de Dezembro (silêncio, aliás, apenas interrompido para colocar a capa da edição anterior).
Confesso que imaginava ter-se a revista finado. Tinha-o referido com tristeza há dois ou três dias. Folheá-la agora conforta-me. Cheirá-la inebria-me um pouco, como o odor de uma lareira ao passar na rua, com a sua promessa de aconchego e histórias ao serão. Mas a inesperada existência física da revista, mesmo que surpreendentemente impregnada de viço juvenil nos seus “Manifestos” e rubricas afins, não afastou de todo a sombra instalada pela sua ausência electrónica. Agradeço, bem entendido, que a LER seja uma revista impressa, e não vejo necessidade de que os seus editores se ocupem da tal «informação diária sobre edição». Mas dado que hoje somos também, queiramos ou não, seres online, impõem-se uns regulares sinais vitais (ainda que em ritmo de urso hibernando) — ou, para evitar equívocos e agoiros, a eliminação sumária das páginas na Internet. Se é para estarmos de coração na mão em cada final de trimestre, ao menos que não tenhamos capas antigas a assombrar-nos as espreitadelas ansiosas aos sites.

Benefícios do agendamento de posts

Uma das vantagens de ter escrito livros que permanecem inéditos é esta possibilidade de ir publicando excertos no defeso, alimentando com eles o blogue, agendando posts como se o escritor ainda estivesse vivo (quem o garante?). Além disso, o leitor pode encontrar certo prazer lúdico em coleccionar os excertos e tentar uma reconstrução da obra, a ver se lhe encontra sentido. Etiquetas como Aranda ou Hotel do Norte, havendo paciência, podem encher-se de um número suficiente de excertos para que, montando-os laboriosamente como bobinas de película, o leitor logre ufano a sua reader’s cut.

Claro, há também a possibilidade de, no termo da montagem ou cansado de tentativas, o leitor descobrir que a obra não tem afinal, digamos, ponta por onde se lhe pegue. Mas nessa altura não é certo que o autor ainda esteja aí para sofrer o choque.

quinta-feira, 26 de março de 2015

Os primeiros trovões em Aranda

«O casal chegou trazendo um filho pequeno pela mão. A mulher era naturalmente bonita mas a amargura ou o tédio, ou talvez o ódio, pesavam-lhe no rosto, puxando os cantos da boca para baixo e com eles as pálpebras, um pouco vermelhas, de um vermelho escuro, a caminhar para o roxo. Não parecia ter estado a chorar, não era isso, embora também não estivesse contente. Não eram, de qualquer modo, olhos violentados, ninguém tinha desferido neles golpes físicos — mas havia ali sofrimento.
O homem, provavelmente da mesma idade dela, no início dos trinta, tinha bom aspecto, mas um bom aspecto suspeito. A barba, ainda que catalogável, inserida num protótipo comum a uma boa parte dos homens ocidentais daquela geração, estava demasiado crescida naquele rosto, era máscula em excesso. Depois havia a tentativa dele de parecer responsável com a criança (acorria sempre mais tarde do que a mãe) e de liderar a visita à esplanada, antecipando o pedido da companheira, que ela de imediato corrigiu por não corresponder de todo ao seu apetite.
Na mesa ao lado havia um advogado e o seu cliente. Ele tinha uma risca perfeita no cabelo, à direita, e o cliente desgrenhava-se, passando mãos sapudas e transpiradas pela cabeça encaracolada. O advogado era um Cyrano, ditando frases que o cliente repetia ao telemóvel. Não era um caso de divórcio doloroso, ou a tentativa de o evitar: aquele advogado era demasiado hesitante para enfrentar a ira de uma mulher e ao cliente de mãos gordas não tinha sido dada a possibilidade de amar, pelo menos de o fazer de uma forma romântica, mesmo que com poemas e serenatas sugeridos.
Eram certamente dívidas, acordos mal consumados, contratos por cumprir. O advogado mostrava-se indignado com a argumentação contrária que vinha pelo telemóvel do seu constituinte e tentava ser mais implacável nas instruções que lhe transmitia. Em momento nenhum pegou ele próprio no aparelho, pelo que teve tempo de reparar no desamparo da mulher que acabara de se sentar na mesa ao lado, esquecendo por minutos (ou sempre) o desamparo que oprimia o seu próprio cliente.

Uma segunda mulher subiu à cena, vinda da parte inferior do jardim. O chão da esplanada estava pavimentado em pequenos cubos de granito, mal aparelhados, e ela vinha com as cautelas que têm todas as mulheres que usam saltos altos e não querem vê-los entalados nas juntas traiçoeiras da calçada. Caminhava de pernas flectidas, ombros levantados, tentando usar ainda menos os calcanhares, como em tempos antigos faziam alguns dos que ousavam atravessar descalços as fogueiras de São João. Sentou-se do outro lado do advogado, contribuindo para a desorientação dele, já dividido entre o cliente à sua frente e a mãe amarga à esquerda.
Esta nova mulher (com tatuagens à vista e uma respeitável massa corporal que a faziam parecer um nórdico apreciador de cerveja) tinha o que se diria um toque oriental, com o cabelo muito escuro penteado para trás e preso na nuca. Mas depois de melhor observação, o que se via era alguém que desejava a toda a força e com um método artesanal disfarçar a decadência do rosto. Talvez ela não acreditasse nos cremes ou não tivesse dinheiro para plásticas. Ou talvez aquele expediente se destinasse apenas a evitar ingenuamente que o duplo queixo ficasse ainda mais saliente. Fosse como fosse, o seu rosto, as peles e as rugas, tudo estava repuxado pelo cabelo, bem preso atrás, dando aos olhos uma obliquidade asiática, de lutador de sumo, e às maçãs do rosto e ao maxilar superior um ar de roedor. No entanto, o artifício não vencia a gravidade que lhe reclamava a ignóbil prega debaixo do queixo.

A terceira mulher a chegar não tinha nenhum destes problemas, embora nos seus dezoito anos se achasse certamente repositório de muitos outros e mais graves. Tinha uma ponta de acne e os dois rapazes que a acompanhavam não faziam jus à sua beleza entediada (mais do que dramática ou trágica) como costuma ser a de muitas mulheres jovens. Levantou-se logo depois de se ter sentado e reconhecido alguém numa mesa mais longínqua. Avançou para ali com passo destemido, mas calculista. Havia três outros rapazes naquela mesa do canto e só um era seu conhecido. Os olhos varriam a mesa, tanto para se certificar de que não conhecia de facto nenhum dos outros dois como para os avaliar, avaliar o seu potencial reprodutor, ainda que a reprodução, o fim último, não fosse exactamente o que desejava.
O rapaz conhecido estava de costas, o que facilitou a actuação. Pôde afagar-lhe o cabelo na nuca — manipuladoramente, como ela sabia que os rapazes gostavam, gatinhos imbecis, sentindo-se por segundos ingénuos os únicos destinatários do afecto de uma rapariga por quem vertiam saliva várias vezes ao dia —, pôde afagar-lhe o cabelo na nuca e ao mesmo tempo observar tacticamente o resto da mesa. Pediu um cigarro, fora essa a desculpa para deixar o seu próprio grupo. O rapaz conhecido apressou-se a oferecer um Marlboro, mas ela soube distrair-se o suficiente para em vez disso aceitar um dos cigarros que os outros dois estendiam.

Havia ainda mais uma mesa, onde dois homens avantajados e gabarolas falavam de sexo e violência, de ciúmes e vinganças, de conquistas e sucessos em rixas, mas nessa mesa Inês preferiu não se deter. (Ainda que talvez aquela fosse a mesa que mais fielmente resumia tudo.) Ajudou-a o facto de a encenação estar a atingir o momento alto: a dada altura, a esposa amarga (ou a mãe amarga, talvez o das barbas não fosse seu marido nem pai da criança, não havia nele determinação ou acomodamento suficiente no que concernia às duas relações) resolveu desistir. O filho que esbracejasse e derrubasse as cadeiras e a louça; o das barbas que continuasse inútil e ele próprio aborrecido com a relação; o advogado que a espreitasse de todos os ângulos que pudesse; e os outros, os adolescentes e a mulher zangada com a idade e as pregas da carne e os tipos gabarolas, que viessem no fim acusá-la de estupidez por se ter deixado parir aquele filho. Encostou-se na cadeira e deslizou por ali abaixo, a saia subindo pelas coxas, ela imergindo num mundo outro.
Talvez por obediência a um código tribal, a mulher amarga e o acompanhante vestiam de escuro, exibiam uma espécie de viuvez mútua, que a saia curta dela não resgatava. Por isso, aquele triângulo claro, quando surgiu entre as pernas abertas, desleixadas, desistentes, era eloquência pura: umas cuecas festivas, alegres, com um padrão de formas zombeteiras, vermelhas e amarelas, sobre um fundo branco, imaculado.
Inês não pôde deixar de considerar aquilo um novo grito do Ipiranga — ou um pedido de resgate. Aquelas cuecas naquele casal. Desde o início desconfiara que, primeiro, o das barbas não era pai da criança, segundo, chegara com pouca convicção à relação (e ansioso por ir andando) e, terceiro, a mãe amarga tinha ainda menos convicção naquela relação e não estava segura de que havia alguma espécie de realização pessoal na magna questão da maternidade. E, quarto (afinal havia uma quarta dedução), a menos que o das barbas baixasse naquele momento as calças para mostrar idêntica escolha no que se referia à roupa interior, ela apostaria que entre aqueles dois não tinha havido sexo (ou intimidade) nos últimos tempos. Umas cuecas coloridas eram, naquele agregado sombrio, mais do que segredo ou dissidência camuflada — eram traição. Ou talvez só desprezo.

Ela estava agora a ver como se arranjaria o advogado para espreitar as coxas da mulher amarga. Do seu lugar, o penteadinho não conseguiria desfrutar o panorama, mas tinha as antenas suficientemente alerta para se dar conta que havia um panorama para desfrutar. Talvez se levantasse para ir ao balcão pagar os cafés — esse tipo de investimento num cliente ele achava que podia fazer —, abrindo bem os olhos no regresso. E a mulher das tatuagens e do cabelo preso? E a adolescente? E ela própria? O que deveriam pensar as mulheres ali presentes daquela exibição de intimidade? O que deveria ela, Inês, pensar? Bem, não haveria escândalo, isso era certo. A não ser que fizesse o que lhe apetecia, que era afastar o incompetente das barbas, segurar na criança (era verdade? o instinto maternal era um facto científico?) e afagar o cabelo negro da mãe amarga.

Não fez nada disso. Bebeu o resto do café e chamou o empregado. Ao longe ouviram-se os primeiros trovões desde que chegara a Aranda.»

Inês, in Aranda

quarta-feira, 18 de março de 2015

Gostava do tic tic tic tic da tesoura

«Aparava o cabelo de quinze em quinze dias e escanhoava a barba todas as manhãs, bem cedo. Por vezes, se ia haver baile à noite no Casino, ou algum sarau de nota no Hotel, passava novamente ao final da tarde na barbearia para que lhe fosse devolvida a face macia. Não adivinhava quando o destino lhe iria conceder a possibilidade de aproximar a cara ao rosto de uma mulher, mas ia querer estar prevenido. O bigode, encostado ao lábio superior e cortado à escovinha, era também alvo do seu zelo e da dedicação profissional do barbeiro. Nunca lhe passou pela ideia rapá-lo, como alguns faziam, embora em certas alturas se pusesse ao espelho a imaginar o que aconteceria na hora de beijar. Pelo sim, pelo não, escolhera um modelo curto e mantinha-o sob vigilância da tesoura.
A natureza favorecera-o, cedo deixara de ser imberbe e a vasta pilosidade tinha crescimento rápido. Isto causava os seus incómodos, perdia muito tempo no barbeiro. Mas sentia-se viril e, como sabia escolher bem o artífice, raramente dava por perdidas as horas dedicadas ao apuro da fácies.
Os outros homens da família tratavam do aprumo recorrendo aos serviços que o Hotel do Norte proporcionava. Ele não lhes seguia as pisadas, não nesta matéria. Descobrira muito cedo a barbearia na saída norte do Parque, ainda pela mão do avô materno, que tinha as suas excentricidades e gostava de confraternizar com a população local. Mesmo que com o crescimento viesse a distanciar-se das ousadias do avô, não mais esqueceu o caminho daquele pequeno estabelecimento de uma só cadeira, e logo que teve autonomia decidiu que trataria ali do aspecto.
Não saberia explicar por que e não se questionava. No Hotel havia talvez uma partilha excessiva de intimidades, eram aviados aos três em frente ao mesmo espelho corrido e nas cadeiras de espera ficavam todos os outros a olhar. Ali, na barbearia do bairro, havia aspectos mais deploráveis, claro: a clientela não era selecta, acorriam também agricultores e operários, com pescoços surrados e doses de piolhos. Mas ele não conhecia ninguém e os outros, pelo contrário, sabiam muito bem quem ele era, cedendo a vez, desfazendo-se em vénias e ademanes, mantendo distância e guardando silêncio sempre que ele entrava e abanava o rosto com o chapéu, para afastar os cheiros.
Nunca confraternizava com os nativos. A barbearia esvaziava-se, ainda que ele pressentisse através da porta os olhares tímidos e reverentes do outro lado da estrada. Aguardava que o barbeiro espanasse com esmero a cadeira e, mal se sentava, lembrava-lhe a necessidade de passar os instrumentos pelo álcool uma segunda vez. Depois relaxava e entregava-se às mãos compridas, ossudas e experientes, sentindo um enlevo que o tornava dócil, manietável, paciente. Regia com uma ponta de desconsolo à notícia de que o serviço estava pronto e encontrava sempre um reparo a fazer que lhe permitia um encore na prestação do mestre.
Gostava do tic tic tic tic da tesoura no ar à volta da sua cabeça, das poses do barbeiro, pernas flectidas, braços levantados, a olhar a obra de diversos ângulos, directamente e no espelho. Por cada estocada no cabelo a tesoura repetia meia dúzia no vácuo, em preparativos sonoros, aquecimento de atleta antes do salto. Ele aprovava este método perdulário, jamais censurava o desperdício de energia e a lentidão, entregava-se-lhe. O espanador no rosto e no pescoço a seguir ao corte causava-lhe volúpia, e depois abria com prazer os braços para que lhe fosse escovado o fato.
Tinha vinte e seis anos e nunca beijara uma mulher.»

in Hotel do Norte (2009)

sexta-feira, 13 de março de 2015

Lugar de saudade

Questionado sobre que sítio gostara mais de visitar recentemente, pensei em diversos destinos ibéricos e europeus, mas depois passou uma fotografia de uma country house no ecrã e senti uma nostalgia dilacerante de uma cidadezinha que nunca visitei no País de Gales. Os Velhos Diabos, prazeroso, nem está no meu top de leituras, mas lembrar-me do seu cenário foi um sinal eloquente de como os lugares literários disputam aos lugares reais um espaço no meu coração. E de como a literatura se me apresenta actualmente como um radioso, feliz — e sobretudo distante — lugar de saudade.

Existencialismo automóvel

Estou a envelhecer. Antes acordava a meio da noite a questionar-me se chegara a estacionar o carro ou se simplesmente o parara no meio da rua e subira assobiando as escadas de casa. Hoje espreito frequentes noites da varanda se o carro ficou estacionado numa perpendicular perfeita ao lancil e com distâncias cívicas aos automóveis dos vizinhos.

Pensando bem, talvez isto não seja envelhecer, talvez seja o legado merkeliano a frutificar em mim. Se um destes dias acordar com o ímpeto irrevogável de trocar o meu ineficiente veículo meridional por um produtivo BMW é porque a doutrinação germano-passista surtiu efeito. E se tiver dinheiro para o fazer é porque afinal a troika foi uma boa ideia.

Mas se, como é mais certo, amanhã acordar a rir-me por ter vãs preocupações nocturnas com o parqueamento de uma viatura que o banco levou, fico feliz. É sinal de que no meio da desgraça não perdi o humor.
Embora esteja a envelhecer.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Dhafer Youssef ou a reconciliação da espécie


Há três anos havia lua cheia e Dhafer Youssef actuava em Sines (lembras-te?). Nós estávamos no mesmo paralelo, mas não mesmo mesmo meridiano — e contudo parámos o carro na berma alentejana, saímos para o calor da noite com o rádio no máximo e dançámos no alcatrão, inquietando a bicheza que esbugalhava um olho de cada vez nos prumos das cercas ao redor. Apesar da proximidade mediterrânica e do Sete Sóis, Sete Luas, que também já visitáramos e havíamos de visitar, não nos ocorria exactamente a celebração de um melting pot musical ou cultural, pensávamos apenas no prazer de ser Verão e estarmos vivos a Sul. Mas calhava de Youssef — o tunisino, o francês, às vezes vienense, o terráqueo, em suma — ser versado na Teoria das Cordas e explicar o Universo dedilhando o seu oud ou tensionando incrivelmente as fibras da laringe. Por isso havia Harmonia e o jazz era o seu esperanto — e nós estávamos afinal sintonizados com o Cosmos, reconciliados com a espécie. Tínhamos bebido um copo ou outro, é certo.

100 Homens, 100 Preconceitos

A campanha "100 Homens, Sem Preconceitos – Um Passo pela Igualdade" (que fotografou cem homens em saltos altos) é decerto bem-intencionada, mas é simultaneamente estúpida, porque assenta num estereótipo — ou seja, num preconceito, dos tais que tenciona combater.
Imaginem que a Máxima, a revista promotora da campanha, convidava cem homens a experimentarem enfaixar as suas extremidades inferiores como durante dez séculos muitas chinesas tiveram de fazer em nome da “beleza”. Com “pés de lótus”, como com saltos altos, a revista haveria de registar o mesmo género imbecil de comentários masculinos — «isto é muito difícil!» ou «agora damos ainda mais valor às mulheres!» — e as mulheres estariam igualmente mal defendidas. E mal definidas.
A maior dificuldade das mulheres não é caminhar em stilettos; já insistir em definir a feminilidade pela forma aguda do tamanco não facilita certamente, quotidianamente, a vida a muitas delas.

1. O zelota

Os que minimizam a importância dos actos de Passos Coelho fogem (deliberadamente ou não; cândida ou perversamente) ao essencial: falamos do maior moralista que governou Portugal depois de Salazar e Marcello e, mais importante, que governou e decidiu sobre a vida dos concidadãos com base nessa moralidade instrumentalizada. A desfaçatez e a hipocrisia não são, neste caso, pecadilhos que apenas mostram que Passos, tendo errado, é humano. Pelo contrário: dada a centralidade da moral no seu discurso, mostram que PPC é um pastor que prega mas não acredita no que prega. Repete a ladainha apenas para perpetuar a instituição. Está portanto ao serviço dos interesses da instituição e não dos da comunidade. E não é difícil perceber o que é a instituição para Passos Coelho.

2. O cordeiro de Deus

É tão absolutamente idiota desculpar Passos com os erros maiores de Sócrates que chega a dar um novo sentido à Páscoa que se aproxima: o ex-PM foi preso para expiar os pecados do mundo, particularmente os de Passos Coelho? Depois de crucificado o messias da Covilhã (que, de resto, acreditava sê-lo, como todos os mitómanos), basta ao Coelho pascal a confissão e a compunção para que uma quantidade assustadora de pensadores o mande em paz com duas ou três inofensivas ave-marias por penitência.

3. O ridículo

Comparados os casos, ter Passos como PM equivale a ter Relvas como Ministro da Educação. Ridículo, não seria?

Um café no Agueiros

Juro que queria ter ido a Felgueiras esta semana. Nem toda a gente ali tem culpa do culto fatimida que durante anos vigorou no concelho, e de resto essa é uma religião partilhada pela maioria dos compatriotas, com uma ou outra variante regional no que ao orago diz respeito. A cidade tem um teatro bonito restaurado com franco optimismo há poucos anos e há nas redondezas uns cafés simpáticos. Não tanto pela decoração, mas pelo serviço. O Agueiros, por exemplo. Ah, um cimbalino, uma água das Pedras e um boletim do Euromilhões no Agueiros, em Felgueiras. Fica-se tão bem disposto que apetece ir logo pagar 20 milhões de impostos e desaparecer por uma década ou duas no sigilo bancário. Isso e substituir a foto de perfil no Facebook por um boneco das caldas.

sexta-feira, 6 de março de 2015

Lugares de ficção


«Diz para si própria que é impossível, e no entanto o odor entra-lhe pelas narinas como se os cavalos ainda ali estivessem. Um cheiro a fezes que não enoja, porque emanado de seres belos, esbeltos, nobres. Merda dos deuses — não das suas montadas. Na altura não pensou estas coisas (o que pensaria então?), é agora que esta parte do passado lhe parece poética.
A vegetação cresceu, mas a sebe que delimitava o campo de saltos ainda sobressai, com alguns troços secos e a parte viva muito irregular, informe, a clamar pelas tesouras do mestre jardineiro. É como se a pátina de Roma tivesse caído também sobre aquele local, dando-lhe ares de império derrotado. As velhas boxes, com as suas portinholas onde assomavam os pescoços equinos, dificilmente se vêem por detrás de uma barreira de árvores novas e antigas e de ervas que dão pela cintura. A tribuna do júri, virada a poente, mostra-se como o casebre que talvez sempre tenha sido, flanqueada por três vacilantes mastros de bandeira. Do outro lado, as bancadas de cimento conservam as telhas da cobertura e as asnas de madeira (assentes em pilarzinhos de ferro forjado ao estilo Arte Nova), mas perderam as divisórias de pinho que, na fila da frente, compartimentavam e exibiam a aristocracia em lotes de quatro cadeiras e uma mesinha, sob guarda-sóis às riscas coloridas.
A barragem (seria este o nome? talvez poço) ainda existe, no meio da erva: uma concavidade larga de cimento, rasa — menos do que meia cana; com um raio bastante maior do que o de uma roda de carroça ou charrette —, que antigamente se enchia de água e assustava os cavalos mais do que os outros obstáculos, entretanto desaparecidos. Também existe a ruína da Casa de Chá.
Ao longe ouve-se o trovão. Podia ser um bombardeamento, o inimigo às portas, artilharia motorizada aproximando-se ameaçadoramente do império em declínio. Mas é apenas uma trovoada de Verão. As primeiras gotas de chuva volatizam-se no momento em que são percebidas na pele. O céu não parece ter nuvens capazes de fazer chover.
Esquecida a um canto das bancadas, uma boneca de porcelana rosada. Com o seu vestidinho azul debruado a rendas brancas e um chapéu de amplas abas, é um vestígio surpreendente, improvável e desmembrado. O braço esquerdo está caído ao lado do corpo, que por sua vez está rachado, revelando um interior oco. A boneca encosta-se a um dos postes de ferro que sustentam o telhado e observa melancolicamente alguma das provas inesquecíveis ou imagináveis do velho concurso hípico.
Ela segura a boneca pela cintura e o cheiro a excrementos regressa. Não o tropel dos cascos, o rumor da multidão (e a sineta, a voz de megafone do júri, os gritos de incitamento dos cavaleiros, o estalar do pingalim, o resfolegar dos animais). Não. Apenas o odor, como se nele se concentrassem todas as experiências dos sentidos e residisse nele toda a memória possível.
Ah, inebriar-se daquilo!
Levanta o nariz ao vento como um predador e toma o caminho das cavalariças sob a bancada. As portas de madeira com frinchas entre as tábuas filtram os raios de sol, que desenham uma grelha no chão de terra batida. Rangem quando ela as abre e tenta adaptar os olhos à penumbra. Um corredor atravessa todo o edifício e dos dois lados dele sucedem-se as baias.
— Pensei que não viesses — diz uma voz ao fundo.
— E por que não haveria de vir? — retorque ela.
— Não sei, poderia faltar-te a coragem. — A voz faz uma pausa. — Estás bonita, gosto desse vestido.
— Galanteios. Mal me arranjei.
— É cedo? Talvez pudéssemos ter marcado para mais tarde.
— Não, não. Quanto antes melhor.
— Então, diz-me: como fazemos?
— Não pensei nisso — diz ela, um pouco desconcertada. — Achei que irias tratar dos pormenores.
— E tratei, descansa. Só quis deixar-te tomar a iniciativa, sou um cavalheiro.
— Sim, o melhor deles. Tanto se me dá.
A boneca de porcelana dirige-lhe um olhar inquiridor e ela encolhe os ombros.
— Não vieste por acaso a cavalo? — pergunta ela.
— A cavalo? — ri-se a voz. — Que ideia mais estranha. Gostarias que o tivesse feito?
— Não, não é isso, apenas me pareceu que cheirava a cavalo, só isso.
— Agora ofendeste-me: eu lavo-me — protesta a voz com falsa indignação.
A boneca de porcelana parece ter um risinho de cortesã.
— Oh, esquece. Podemos visitar a Casa de Chá antes?
— Claro, as decisões são tuas.»

Cláudia in Aranda

quinta-feira, 5 de março de 2015

Um rodado músico caribenho foi para os Estados Unidos para ser famoso e acabou triste a trabalhar de segurança para sobreviver. Eu abdico já de toda a fama se puder ir sobreviver a tocar maracas anónimas no Caribe.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

«António Lobo Antunes. Ascensão e queda do ‘enfant terrible’ da literatura portuguesa»

Não me chateia nada que a reportagem do Observador com o título acima possa regozijar-se com a “queda” de Lobo Antunes. É apenas ridículo que, apesar de ter em si mesma, e com certo mérito jornalístico, suficientes elementos para perceber que passar de 100 mil exemplares vendidos para poucos milhares não é uma “queda” literária (nem o é aos olhos dos leitores), a reportagem não deixe de insinuar esse sabor de derrota (desde logo no título).
A única coisa estranha em relação a Lobo Antunes era precisamente a venda de milhares de exemplares. Alguém que viva neste país, que saia à sua rua neste país e que conheça os seus conterrâneos terá em algum momento achado possível haver em Portugal dezenas de milhares de pessoas a ler Lobo Antunes?
É certo que o próprio escritor, que neste particular do ego se aproximou muitas vezes do inefável Rodrigues dos Santos, acreditou ou pareceu acreditar nessa possibilidade de ter um estádio-da-luz-com-terceiro-anel a lê-lo. Mas não, não há nem nunca houve em Portugal essa multidão furiosamente interessada em ler Lobo Antunes — nem, de resto, em ler regularmente seja o que for de literatura (ou ensaio ou história ou o que quer que não seja lixo).
Por outro lado, percebo as saudades de um tempo em que escritores como Lobo Antunes podiam ser best-sellers em Portugal. Isso impunha um certo respeito, balizava as coisas, ajudava a manter a bicheza literateira à distância, higienizava o ambiente. Hoje, a literatura de cordel — muita dela em regime de franchising, como a ancestral —, tomou conta do mercado e da sociedade como nunca na História — mas perdeu os velhos, tradicionais e sobretudo justos, adequados, complexos de inferioridade. Também porque já ninguém tem vergonha de se confessar leitor-não-praticante ou mesmo acérrimo analfabeto. E esta "emancipação" popular não é um progresso. Nem democrático nem de espécie alguma.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

DG ARTES (3)

Justiça lhe seja feita pela magnanimidade. Mas por que raio isto não está devidamente regulamentado, com prazos, poupando-se o carimbo precoce de “não admitida”?

DG Artes (2)

De resto, a própria DG Artes chumbaria com facilidade se fosse julgada pela sua perspicácia e competência planificadora e administrativa. Há dez anos que ignora a existência de uma rede de infra-estruturas teatrais no país — e ajuda assim alegremente a que uma parte delas vá deixando de ter como prioridade a arte e se dedique ao folclore revivalista e salazarista dos anos 60. Depois de ter aprovado (com excessiva magnanimidade e displicência) um conjunto de obras, o Estado foi incapaz de implementar uma rede nacional de teatros. Mas o certo é que ela existiu (com absoluta informalidade e voluntarismo autárquico, e com deficiências estratégicas e artísticas graves, claro). Contudo, a DG Artes não mudou a sua lógica de funcionamento, como se vivesse num mundo à parte (talvez viva). Quando resolveu criar há dois anos a modalidade de Apoios Tripartidos (companhias / DG Artes / administração local), numa lógica aparente de descentralização e de criação de redes regionais, fê-lo, por exemplo, sem uma palavrinha aos teatros municipais que operam no território, muitos deles substituindo-se ao Estado central na prestação de um serviço regional (supra-municipal, portanto, mas com orçamento municipal). Eu sei que é custoso um tipo levantar-se da cadeira para conhecer o território de um país, mas a Secretaria de Estado da Cultura e a DG Artes não deveriam ignorar que têm interlocutores in situ.