«Também havia a voz. A madrinha tinha uma daquelas
vozes afectadas de lady inglesa, oscilando
entre agudos e graves como um adolescente a amadurecer, mas com o sotaque
carregado, as vogais rudes e as interjeições dum lavrador. Agora que dedico
algum tempo a pensar nisso, não era com a nobreza britânica que a madrinha mais
se parecia, mas com as preceptoras da
nobreza britânica. Quando lhe ouvíamos a voz a progredir pelos corredores e
pelas divisões da casa, espécie de miasma que se infiltrava por qualquer
frincha e a qualquer hora, o nosso estremecimento não era de súbditos receosos
do alcance do poder real, mas de pupilos que odeiam e temem a velha ama
germânica que a família mantém como tradição orgulhosa nas folhas de pagamento mensais.
(Qualquer comparação com bruxas verrugosas e histéricas teria igualmente
cabimento: a madrinha parecia ter sido concebida ou treinada para ser prova de
verosimilhança de todos os clichés.)
Um verdadeiro fenómeno era a sua gargalhada. Já
imaginaram alguém dar sonoras gargalhadas sem que no seu rosto houvesse um
indício de riso ou divertimento? A madrinha não tinha humor (embora utilizasse
doses regulares de sarcasmo), mas isso não a impedia de acompanhar (e na
verdade suplantar) as reacções a certos comentários ou piadas que se produziam
à mesa. Ela gargalhava com a mesma força de quem expele um osso de frango da
garganta, percutindo as paredes da sala como o equipamento sobredimensionado de
uma discoteca ou fazendo drapejar os cortinados como um vento dos que activam
avisos da meteorologia, mas os seus olhos mantinham a mesma vigilância censória
e fria sobre os circunstantes, não traíam um único momento de cumplicidade ou empatia.
A madrinha zelava pela casa e pelas tradições com o
empenho exacerbado e anacrónico de aias e ministros de casas reais que na devida
altura advertiram os senhores para os perigos dos caminhos que trilhavam. Ela
tivera razão antes de tempo, mas não lhe cabia tomar as decisões (era uma
matriarca que reconhecia a legitimidade do poder patriarcal), e quando o pôde
fazer, demasiado tarde para evitar a queda em desgraça, já não conseguia deixar
de agir como o último dos miguelistas — o ódio, a frustração e o desejo de
vingança a dominarem cada segundo do dia.»
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