segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

De Luis Landero a Manuel Vilas e Javier Marías

Leio Chuva Miúda de Luis Landero com uma insatisfação, ia dizer «indefinida», mas julgo que é concreta. A história, as personagens, o enredo são interessantes, mas a narrativa parece demasiado ligeira ou superficial para aquilo que o autor tem em mãos. É uma sensação que evoca a que tive ao ler Reviver o Passado em Brideshead, quando imaginei estar a folhear um digest. Este Chuva Miúda, que tem uma estrutura de diálogos curiosa, parece-me um esboço; enuncia os factos sem lhes explorar verdadeiramente a densidade, mas também não encontra a sua força literária no poder da sugestão.

Curiosamente, o livro e o autor são vivamente recomendados, com citação na capa, por Manuel Vilas, o autor dos maravilhosos Em Tudo Havia Beleza e E, de Repente, a Alegria, o que poderia fazer imaginar alguma afinidade estilística ou estética entre Landero e Vilas. Mas quando fecho um capítulo de Chuva Miúda não fica em mim nada de parecido com o que me deixou a prosa concisa e poética, a voz narrativa de Manuel Vilas, nada de tão comovente, lancinante ou arrebatador.

Há em Chuva Miúda, de todo o modo, acontecimentos e personagens capazes de fascínio e inquietação, mas para minerar isso neles parece-me que seria preciso alguém predisposto a enveredar longamente pelas curvas da vida e as circunvoluções da mente, alguém como Elena Ferrante ou Javier Marías. Landero parece ficar num meio-termo entre Manuel Vilas e aqueles dois corredores de fundo: uma narrativa abreviada mas sem o poder impressivo de Vilas; a amostra de um enredo e de caracteres que Ferrante ou Marías transformariam em ouro puro.

Em todo o caso, prosseguirei com leitura do livro, a ver se o autor logra afinal um efeito seu. E se isso acontecer será abusivo o que vou dizer agora, que este Chuva Miúda me fez pensar numa hesitação representativa de um tempo, ou antes, de um statu quo literário: uma hesitação que parece em simultâneo condescendência e confissão involuntária de falta de fôlego. Características de certos escritores, editores e leitores — de si para si e de uns para com os outros.

P.S.: Juntar Manuel Vilas e Javier Marías num post na altura em que sai o novo livro deste último — descrito (e bem) numa recensão como «explicativo, maximalista, detalhado» — poderia ser apenas uma coincidência, mas não é, é uma piscadela.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Dia de pesca

«Sujidade. Não havia outra palavra. Sujidade material e mental. Mas, em simultâneo, inocência, a inocência dos estultos.

Há trinta anos, ainda as mulheres eram apalpadas à luz do dia e se dividiam entre as que davam risadinhas e as que davam estalos (as outras não tinham existência reconhecida), o Buldogue ressonava de consciência imaculada sob ou sobre uma pilha de roupa. Na escuridão do quarto, apenas dava para distinguir em cima da cama o que parecia uma grande elevação de trapos escuros que contrastava com os lençóis mais claros — ninguém arriscaria dizer brancos, mesmo que originalmente o tivessem sido. Não era possível perceber se ele se tinha enfiado debaixo das roupas, temendo que a ressaca o deixasse susceptível à fresca da aurora — o que teria implicado uma capacidade de planeamento própria de uma noite que não tinha corrido assim tão bem —, ou se simplesmente mergulhara no enxoval inextricável de roupa lavada e suja que jazia sempre na cama baixa. Podia pôr-se ainda a hipótese de tudo aquilo, aquele volume que lembrava um morro de escória nos arrabaldes de uma mina desactivada, ser apenas ele, o Buldogue. Os contornos eram bastante semelhantes aos que ele exibiria se alguém por insanidade momentânea se dispusesse a imaginá-lo deitado, e com a luz apagada não havia uma noção exacta de escala. Sobre a cama podia bem estar, portanto, apenas o Buldogue depois de ter atirado com tudo ao chão sem que lhe sobrasse energia para se despir. O que o Gafas e ele temiam era que houvesse ali alguma ilusão de óptica e o Buldogue se tivesse mesmo despido antes de aterrar, e por isso nenhum deles se atrevia a tocar-lhe para o acordar. Havia limites para o nojo que estavam dispostos a aguentar, mesmo naquela época.

Meia hora antes, Daniel tinha arrancado o Gafas da discoteca para o obrigar a cumprirem a promessa de se juntarem ao Buldogue numa pescaria. Não se interessava nada pela pesca e a «promessa» fora apenas uma piada, mas a noite na discoteca estava terminada, o DJ já pusera a tocar o remix de encerramento e Daniel agarrar-se-ia a qualquer esperança de continuar nos copos depois de saírem dali. De modo que atravessaram às escuras a propriedade dos pais do Buldogue, fazendo slalom entre alfaias e detritos, até chegarem à casa, uma antiga pensão que depois do último hóspede, décadas antes, nunca mais vira uma demão de tinta e, em certos aposentos, nunca mais vira uma vassoura. A porta da rua estava apenas encostada, como era frequente na época, e logo depois virava-se à direita para um corredor com muitas portas, por trás das quais dormia um rebanho de irmãos e irmãs e os velhotes do Buldogue. Daniel e o Gafas, caminhando às apalpadelas, tinham uma vaga ideia de qual era o quarto, mas não podiam estar cem por cento seguros. O risco de entrarem nos aposentos do casal ou, pior, no quarto de uma das irmãs, era grande, ainda que as consequências estivessem longe de ser graves da maneira como hoje seriam. O pior que lhes poderia acontecer era levarem um tiro, mas se sobrevivessem dificilmente teriam a vida social ou a reputação arruinada.

A dupla podia ter-se limitado a esperar na rua, toda a gente sabia que os pescadores madrugavam, e o Buldogue, se tivesse mesmo decidido ir pescar no dia seguinte, levantar-se-ia, estremunhado e com os cabelos em pé, como se lhe tivessem aplicado a descarga eléctrica de um desfibrilador, mas cedo, com as galinhas. (Até literalmente: as aves de capoeira ali ignoravam o significado da designação porque eram socialmente conhecidas e passeavam-se na casa com natural liberdade, pondo ovos nos recantos e merda por todo o lado, facilitando a vida à dona da casa, que não tinha de andar muito para degolar um galináceo quando decidia que o almoço era frango. Por isso, e não por razões inquietantes, havia também manchas de sangue no chão do corredor.) No entanto, Daniel não queria correr o risco de deixar o Buldogue desistir do plano e insistira para que o acordassem. O fim de noite deles coincidia com o início de dia de um pescador, mas era preciso que o Buldogue não se esquecesse durante o sono que era um pescador.

O Gafas, de resto, aderira logo à ideia, mal continha o riso, tudo o que desejava era ver a cara de espanto do outro quando desse por eles no quarto. E quando isso aconteceu, houve um sobressalto no monte de escombros na cama, como a réplica forte de um sismo. Ou como se tivessem detonado uma carga de explosivos numa das galerias da mina, afinal ainda em actividade. Houve uns instantes de barafustação de um lado e risota abafada do outro. Houve uns sopapos moles quem nem o ar feriam. No fim, saíram dali em fila, nenhum perto de estar sóbrio, o Buldogue a praguejar, alguém a peidar-se num dos quartos. Enfiaram-se na carrinha de três lugares, Daniel resignando-se a ir no meio — no lugar da puta, dizia-se então —, uma cedência que não o incomodava, fazia-a sempre sem ganhar nada com isso e desta vez esperava-o um dia de farra. O céu clareava a oriente.

Habitualmente, Daniel pouco mais recordava do episódio do que isto. Havia ainda uma imagem vaga e ao mesmo tempo inverosímil do Buldogue, com as roupas de cangalheiro que usava em todas as circunstâncias, a olhar com paciência a bóia à espera que o peixe mordesse. Ele que nem na missa conseguia estar quieto e por isso nunca chegava realmente a entrar na igreja. Outra imagem, do Gafas dobrado a meio em gargalhadas — típica dele, aliás —, com os óculos na ponta do nariz, fazendo lembrar o Mortadela da dupla Mortadela & Salamão. E havia a memória de Daniel já entediado a teimar para irem mas era nadar um bocado e os outros, com vergonha de se despirem, a desviarem a conversa com uma fanfarronice qualquer. Ao final da tarde desse dia estavam de volta, e, quando Daniel recuperou a consciência, deu por si sentado na banheira a levar com a água quente do chuveiro na cabeça. Era a imagem simbólica de um born again, um cristão renascido a ser baptizado depois de se arrepender do pecado do alcoolismo. Só que ele não se arrependia de nada, muito menos daquilo de que não se lembrava. Também não se arrependia do pouco de que se lembrava. Estava apenas zonzo e um pouco indisposto, a tentar recompor-se para a noite.

O ponto forte da história, quando sentia vontade de a contar a amigos, era a lembrança de terem parado num snack-bar ao chegar às imediações da albufeira, um daqueles que abriam cedo para os pescadores, e de o Buldogue ter pedido, com jovialidade e alarido, chispe. Chispe de pequeno-almoço acompanhado de vinho tinto: era esta para Daniel a piada de toda a história, o insólito, a loucura resoluta do Buldogue, que divertia Daniel — e com que ele tinha contado para poder continuar a beber.

Mas agora Daniel tinha acordado com um peixe no tapete do quarto e uma memória fresca do que acontecera naquele snack-bar há trinta anos. Como se tivesse acontecido na madrugada do dia de hoje. Lembrava-se como não teria conseguido lembrar-se meros dez minutos depois da madrugada daquele dia.»

[Início de nada. Amarfanhar e encestar teatralmente no caixote dos papéis.] 

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Breve história do engajamento político na imprensa do meu tempo

Quando comecei a ler jornais, rapidamente me interessaram os colunistas que, tanto quanto podia na altura julgar, possuíam uma de duas virtudes (preferencialmente as duas): boa prosa (inteligente, imaginativa, irreverente, culta, elegante, capaz de ironia e humor) e pensamento acutilante (perspicaz, mas também independente, livre, imparcial).

À época governava Cavaco Silva e tinham surgido o Independente e a Kapa e foi maioritariamente nessa dupla impressa que julguei ter encontrado o que me interessava. Depois Paulo Portas escancarou as suas ambições políticas, Miguel Esteves Cardoso deixou de beber como antes (e continuou a escrever ainda bem mas sobre ninharias) e os caminhos que apontaram à imprensa foram entretanto mais ou menos tropeçados por outros artífices.

Veio o tempo em que comprava dois diários e dois semanários e lia regularmente certos escribas. Os governos tendiam agora a ser socialistas e alguns colunistas (cujos nomes me abstenho de dizer por embaraço) permaneciam contra, o que, em vez de um padrão caprichoso, parecia confirmar independência de espírito.

Surgem os blogues, com uma nova direita carregada de bibliografia selecta como antes a esquerda estivera carregada de Marx e seus exegetas, Bush filho invade o Iraque contra o mundo razoável e na imprensa alguns começam a cumprir o que uns quantos vinham candidamente defendendo: o esclarecimento das opções ideológicas. José Manuel Fernandes sai do armário, o arquitecto Saraiva regressa às cavernas.

Eis que Passos Coelho herda a alegre bancarrota de Sócrates (e a não menos impudica mas mais indultada crise internacional) e, como se diz hoje dos portugueses vacinados, quis mostrar-se o melhor aluno da Europa — no caso, o melhor aluno do neo-liberalismo ou capitalismo selvagem ou o que lhe quiserem chamar (que social-democracia não é de certeza) — e o que antes (não imediatamente antes, a bem dizer) parecia colunismo imparcial revelou-se então no seu esplendoroso envolvimento e activismo ideológico: aqueles colunistas pela primeira vez não eram contra.

Os armários (e as cavernas) abrem-se de par em par, e colunistas, bloggers e alguns escritores, legitimando-se e estimulando-se mutuamente, soltam o lastro, soltam a franga, recolhem âncoras e zarpam de melena ao vento, cavalgando a onda que lhes parece a onda certa da História, como se nos oceanos só houvesse tsunamis e a Lua não tivesse um papel nas marés. Dispensam já, embora digam o contrário, o teatro da objectividade, da imparcialidade, da justiça, porque a hora é de combate, de militância, de alistamento — de engajamento, essa prática outrora lastimável nos velhos intelectuais de esquerda. Põem-se activa ou passivamente do lado de Trumps e Bolsonaros e criticam Putin apenas para disfarçar o quanto são por ele fascinados. Para facilidade de leitura, se não estão no CM, juntam-se maioritariamente no Blasfémias e no Observador — e isso temos de lhe agradecer.

Mais erro, menos erro na cronologia, é esta a breve história do engajamento político na imprensa do meu tempo.

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Villa Juliana

 


«Quão frágeis e falíveis podem ser as percepções em que assenta a construção de uma identidade, a formação de um carácter? Ou: quão capaz é a memória dessas percepções de resistir ao confronto com outras percepções sobre os mesmos mitos ontológicos de origem?

Uma mulher regressa como hóspede num fim-de-semana de Inverno à casa onde viveu na adolescência, agora transformada em alojamento para turismo de montanha. Não é uma excursão nostálgica típica, mas, nas suas palavras, "um confronto em simultâneo inquietante e voluntário com o passado: ia ficar na Villa Juliana, a casa onde vivi até aos vinte anos, quando o meu pai era ali o médico da Companhia, antes de se tornar o assassino da minha mãe".

Um desconhecido chega a uma cidade ao acaso e conhece histórias e pessoas que o distraem das razões porque conduziu fortuitamente centenas de quilómetros para se transformar num anónimo. É o interlocutor perfeito para o recém-regressado herdeiro de um solar com maneiras e discurso excêntricos.

Num restaurante da serra sem outros clientes, dois homens convidam uma mulher para a sua mesa. Fecha-se o círculo.»

Villa Juliana
Rui Ângelo Araújo | 2021

Encomendas: edlinguamorta@gmail.com