quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Dia de pesca

«Sujidade. Não havia outra palavra. Sujidade material e mental. Mas, em simultâneo, inocência, a inocência dos estultos.

Há trinta anos, ainda as mulheres eram apalpadas à luz do dia e se dividiam entre as que davam risadinhas e as que davam estalos (as outras não tinham existência reconhecida), o Buldogue ressonava de consciência imaculada sob ou sobre uma pilha de roupa. Na escuridão do quarto, apenas dava para distinguir em cima da cama o que parecia uma grande elevação de trapos escuros que contrastava com os lençóis mais claros — ninguém arriscaria dizer brancos, mesmo que originalmente o tivessem sido. Não era possível perceber se ele se tinha enfiado debaixo das roupas, temendo que a ressaca o deixasse susceptível à fresca da aurora — o que teria implicado uma capacidade de planeamento própria de uma noite que não tinha corrido assim tão bem —, ou se simplesmente mergulhara no enxoval inextricável de roupa lavada e suja que jazia sempre na cama baixa. Podia pôr-se ainda a hipótese de tudo aquilo, aquele volume que lembrava um morro de escória nos arrabaldes de uma mina desactivada, ser apenas ele, o Buldogue. Os contornos eram bastante semelhantes aos que ele exibiria se alguém por insanidade momentânea se dispusesse a imaginá-lo deitado, e com a luz apagada não havia uma noção exacta de escala. Sobre a cama podia bem estar, portanto, apenas o Buldogue depois de ter atirado com tudo ao chão sem que lhe sobrasse energia para se despir. O que o Gafas e ele temiam era que houvesse ali alguma ilusão de óptica e o Buldogue se tivesse mesmo despido antes de aterrar, e por isso nenhum deles se atrevia a tocar-lhe para o acordar. Havia limites para o nojo que estavam dispostos a aguentar, mesmo naquela época.

Meia hora antes, Daniel tinha arrancado o Gafas da discoteca para o obrigar a cumprirem a promessa de se juntarem ao Buldogue numa pescaria. Não se interessava nada pela pesca e a «promessa» fora apenas uma piada, mas a noite na discoteca estava terminada, o DJ já pusera a tocar o remix de encerramento e Daniel agarrar-se-ia a qualquer esperança de continuar nos copos depois de saírem dali. De modo que atravessaram às escuras a propriedade dos pais do Buldogue, fazendo slalom entre alfaias e detritos, até chegarem à casa, uma antiga pensão que depois do último hóspede, décadas antes, nunca mais vira uma demão de tinta e, em certos aposentos, nunca mais vira uma vassoura. A porta da rua estava apenas encostada, como era frequente na época, e logo depois virava-se à direita para um corredor com muitas portas, por trás das quais dormia um rebanho de irmãos e irmãs e os velhotes do Buldogue. Daniel e o Gafas, caminhando às apalpadelas, tinham uma vaga ideia de qual era o quarto, mas não podiam estar cem por cento seguros. O risco de entrarem nos aposentos do casal ou, pior, no quarto de uma das irmãs, era grande, ainda que as consequências estivessem longe de ser graves da maneira como hoje seriam. O pior que lhes poderia acontecer era levarem um tiro, mas se sobrevivessem dificilmente teriam a vida social ou a reputação arruinada.

A dupla podia ter-se limitado a esperar na rua, toda a gente sabia que os pescadores madrugavam, e o Buldogue, se tivesse mesmo decidido ir pescar no dia seguinte, levantar-se-ia, estremunhado e com os cabelos em pé, como se lhe tivessem aplicado a descarga eléctrica de um desfibrilador, mas cedo, com as galinhas. (Até literalmente: as aves de capoeira ali ignoravam o significado da designação porque eram socialmente conhecidas e passeavam-se na casa com natural liberdade, pondo ovos nos recantos e merda por todo o lado, facilitando a vida à dona da casa, que não tinha de andar muito para degolar um galináceo quando decidia que o almoço era frango. Por isso, e não por razões inquietantes, havia também manchas de sangue no chão do corredor.) No entanto, Daniel não queria correr o risco de deixar o Buldogue desistir do plano e insistira para que o acordassem. O fim de noite deles coincidia com o início de dia de um pescador, mas era preciso que o Buldogue não se esquecesse durante o sono que era um pescador.

O Gafas, de resto, aderira logo à ideia, mal continha o riso, tudo o que desejava era ver a cara de espanto do outro quando desse por eles no quarto. E quando isso aconteceu, houve um sobressalto no monte de escombros na cama, como a réplica forte de um sismo. Ou como se tivessem detonado uma carga de explosivos numa das galerias da mina, afinal ainda em actividade. Houve uns instantes de barafustação de um lado e risota abafada do outro. Houve uns sopapos moles quem nem o ar feriam. No fim, saíram dali em fila, nenhum perto de estar sóbrio, o Buldogue a praguejar, alguém a peidar-se num dos quartos. Enfiaram-se na carrinha de três lugares, Daniel resignando-se a ir no meio — no lugar da puta, dizia-se então —, uma cedência que não o incomodava, fazia-a sempre sem ganhar nada com isso e desta vez esperava-o um dia de farra. O céu clareava a oriente.

Habitualmente, Daniel pouco mais recordava do episódio do que isto. Havia ainda uma imagem vaga e ao mesmo tempo inverosímil do Buldogue, com as roupas de cangalheiro que usava em todas as circunstâncias, a olhar com paciência a bóia à espera que o peixe mordesse. Ele que nem na missa conseguia estar quieto e por isso nunca chegava realmente a entrar na igreja. Outra imagem, do Gafas dobrado a meio em gargalhadas — típica dele, aliás —, com os óculos na ponta do nariz, fazendo lembrar o Mortadela da dupla Mortadela & Salamão. E havia a memória de Daniel já entediado a teimar para irem mas era nadar um bocado e os outros, com vergonha de se despirem, a desviarem a conversa com uma fanfarronice qualquer. Ao final da tarde desse dia estavam de volta, e, quando Daniel recuperou a consciência, deu por si sentado na banheira a levar com a água quente do chuveiro na cabeça. Era a imagem simbólica de um born again, um cristão renascido a ser baptizado depois de se arrepender do pecado do alcoolismo. Só que ele não se arrependia de nada, muito menos daquilo de que não se lembrava. Também não se arrependia do pouco de que se lembrava. Estava apenas zonzo e um pouco indisposto, a tentar recompor-se para a noite.

O ponto forte da história, quando sentia vontade de a contar a amigos, era a lembrança de terem parado num snack-bar ao chegar às imediações da albufeira, um daqueles que abriam cedo para os pescadores, e de o Buldogue ter pedido, com jovialidade e alarido, chispe. Chispe de pequeno-almoço acompanhado de vinho tinto: era esta para Daniel a piada de toda a história, o insólito, a loucura resoluta do Buldogue, que divertia Daniel — e com que ele tinha contado para poder continuar a beber.

Mas agora Daniel tinha acordado com um peixe no tapete do quarto e uma memória fresca do que acontecera naquele snack-bar há trinta anos. Como se tivesse acontecido na madrugada do dia de hoje. Lembrava-se como não teria conseguido lembrar-se meros dez minutos depois da madrugada daquele dia.»

[Início de nada. Amarfanhar e encestar teatralmente no caixote dos papéis.] 

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