quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Regar em tempo de seca

«Quando vês alguém a regar o jardim ou a lavar o carro e sabes que estamos num período de seca, pensas logo que observas um egoísta que se está nas tintas para o planeta e para as carências da humanidade e quer apenas saber das suas necessidades ou prazeres. Mas há outra maneira de ver este quadro, que não iliba necessariamente ninguém. As pessoas, incluindo aquela que vês a pegar na mangueira, precisam de normalidade, e se, num fim-de-semana em que tudo morre de sede à sua volta, vão para o jardim regar o relvado ou o Mercedes em segunda mão é porque se querem manter estritamente dentro dos parâmetros da previsibilidade (ou, no caso, da rotina do fim-de-semana típico). Não aceitam a ocorrência de um cataclismo natural na sua folga ou adoptar procedimentos extraordinários alheios a um dia livre. É por isso que as festas de aldeia não se interrompem quando os montes ardem, ou que os jogadores de cartas num café são os últimos a reagir a um acidente que se deu na estrada lá fora.
A interrupção voluntária da normalidade, e sobretudo da normalidade de um feriado, é, para a maioria, uma confissão inconsciente de fraqueza ou a denúncia da sua impotência perante as leis que regem o universo, uma cedência à morte. A normalidade mantida in extremis não é apenas egoísmo — é resistência à adversidade e à contingência, recusa de ceder o controlo. As pessoas, os teus vizinhos, regam em pleno Agosto árido porque acreditam contra todas as evidências na infinitude dos recursos e porque de outro modo teriam de reconhecer a precariedade dos fins-de-semana, a superficialidade de manter um jardim e, em última circunstância, a inutilidade de terem comprado um Mercedes.»

A percepção da imprensa

Os jornais ditos de referência são acusados por uns de alinhamento com o Governo e por outros de serem títeres da direita.
Este fenómeno de percepção ambígua ou ambivalente da imprensa não prova a imparcialidade dos jornais. Mas deixa patente como até parte da intelligentsia que lê jornais e os comenta se infantilizou e se relaciona com a política e a vida pública com a mesma paixão facciosa ou irracional que é estimulada no adepto de futebol.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Ouro, incenso e mirra

Mapplethorpe, Patti Smith, Man Ray e uma pirâmide do Egipto num presépio ateu.
Bom Natal!

Tautologia

Francisco José Viegas achou necessário avisar-nos que os textos do seu blogue «são, na sua quase absoluta maioria, crónicas diárias publicadas no Correio da Manhã».

Não se sabe se o fez para se desculpar pela repetição se para se desculpar pela tendência, mas tenhamos esperança.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

The Whole of the Moon

Houve uma altura em que, na velha Blondie, o tema The Whole of the Moon, dos Waterboys, reabria regularmente a pista após os slows. Estávamos nos anos oitenta, para quem se sinta perdido nestas referências: as discotecas passavam slows e Waterboys.

Recordo com benigna nostalgia a voz sofrida de Mike Scott nas colunas sofríveis da Blondie, mas recordo também, como num pesadelo recorrente, a fauna que afluía à pista nesse momento, uma turba acabadinha de sair dum casting para o Thriller de Michael Jackson: trolhas espanados e estudantes pouco convincentes do secundário, betos remendados e futuros bancários e juízes obesos, todos unidos em espírito e espirituosas e locomovendo-se como protótipos de robot feliz e coruscante por ter acabado de ser inoculado com a última versão do MSDOS.

Os que tinham dançado slows retiravam-se momentaneamente para um canto, por vezes acompanhados, por vezes sós e fingindo-se sem fôlego. Mas ao segundo compasso do hino estavam de volta, de olhos semicerrados e gestos amplos como todos, como se os lamentos escoceses de Scott, mais do que canto de sereia, fossem a sineta de Pavlov.

Voltei a assistir a semelhante refluxo pavloviano vinte e tal anos depois, ao som dos Arcade Fire. Nessa altura eu já fingia olhar para a comunidade como um Lobo Antunes em dia de entrevista — cínico e maldisposto —, mas no íntimo rejubilava. Menos pelo que havia de evocação dos eighties na música catártica dos Arcade do que por constatar que ainda havia música melódica capaz de comover zombies.

Agora já nem sei porque escrevo isto, ainda nem sequer é Lua cheia. Há uma linha óbvia de continuidade entre os Waterboys e os Arcade Fire, claro, com o seu tom épico, ritmos vincados e acumulação de instrumentos e coros, mas a quem importa isso? Não aos rapazes do Ípsilon, decerto. Os Arcade Fire soçobraram cedo e os Waterboys nunca terão o exotismo de um Bonga.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

A imponderável beleza de um bairro comunista ao pôr-do-sol


Nas minhas deslocações pela Polónia menos turística houve um pequenino e improvável momento de êxtase estético perante um conjunto de torres de habitação do período comunista. Estranho, não é? A arquitectura comunista não costuma ser conhecida pela beleza.
As torres ficavam ao cimo de uma colina totalmente relvada e estavam debruadas por uma cintura de árvores de diferentes espécies e copas frondosas. Não eram cinzentas, as torres (não sei se por repintura pós-perestroika), mas coloridas, em tons suaves de amarelo, laranja, alguns verdes e azuis discretos, como num arrabalde lisboeta contido. O sol, a descer para o ocaso, dava ao conjunto o ar de um arco-íris sobre um parque. Pensei, recuperando a sobriedade, que os mesmos edifícios em Portugal se exibiriam na sua essencial pobreza estética, porque lhes faltaria a envolvente verde que tem o dom de amenizar o que não é belo.

O verde da vegetação e das árvores compõe muito uma cidade. Nos bairros de boa e clássica arquitectura, digamos os construídos até aos anos 50 do séc. XX, o verde foi uma parte natural do urbanismo, ninguém no seu perfeito juízo estético concebia então ruas ou pátios sem árvores e arbustos e jardins. Nos bairros desenhados e construídos no período da hecatombe arquitectónica, ou seja, do final dos anos 60 até depois da viragem do século, as sebes e os renques de árvores em meio urbano, quando plantados, tiveram ainda mais utilidade, uma utilidade evidente sobretudo a posteriori, quando a flora sobrevivente se revela a maneira mais eficaz de esconder as aberrações construídas, antepondo-lhes um filtro ou um ecrã verde.

Há países, como Portugal, onde, pela topografia e a arquitectura das suas cidades e pelo seu clima, o filtro verde tem de ser apaixonadamente plantado e intransigentemente cuidado e renovado. Outros, como a Polónia, não têm de se preocupar muito, porque a amplidão das terras assegura espaço para grandes áreas e áleas arborizadas e o clima trata de assegurar o carácter verde da paisagem, mesmo em meio urbano. Daí poder-se caminhar por alguns bairros de arquitectura comunista na Polónia sem aquela impressão pós-apocalíptica que sentimos ao caminhar em bairros semelhantes em Portugal — com os seus jardins arrancados, poeirentos e cheios de lixo, as suas filas de árvores frequentemente raquíticas, demasiado espaçadas e com grandes falhas, como dentição de marinheiros de Quinhentos, os seus arbustos ressequidos e de um amarelo de fígado mal tratado, e, metáfora suprema, as suas estacas desoladas e enfileiradas, que sobrevivem à ausência das árvores que deveriam suportar, mantendo-se como sua representação escultórica e irónica.

 A Polónia e Portugal tiveram o mesmo azar com a construção do último quartel do século XX, mas não é a mesma coisa uma torre de apartamentos comunista na Polónia, na sua colina verde e arborizada, e a mesma torre de fraca arquitectura em Portugal, no cimo de um morro despido e gretado, a que se chega por rampas saibrentas ou mal alcatroadas — e frequentemente para ver apenas cotos de árvores onde a motosserra do “progresso” chegou antes.