terça-feira, 27 de janeiro de 2015

My own private blitz

A abóbada nocturna da cidade tem sido nos últimos tempos varrida por focos de luz, e honestamente não vejo que fosse absurdo dar por mim em certas noites de nevoeiro pacientemente à espera dos bombardeiros (quem nunca desejou a ira dos céus?), com aquele misto de fascínio pela sofisticação das máquinas e terror pelo que elas transportam no porão.
Sim, há nesta espécie de indagação metafísica de uns tantos LEDs a perscrutar futilmente a escuridão celeste uma longínqua evocação do Blitz londrino. Mas na verdade não são bombardeiros o que espero encontrar quando sigo o rasto de luz até ao seu desvanecimento. Também não é Deus. Nem sequer sentido (sei que há sentido em fazer a captação de clientes através de baterias de luz: a luz seduz e guia). O que busco no ponto onde a electricidade é devorada pela negrura são ovnis. Não exactamente porque mantenho a minha bagagem nerd (o que é verdade), mas porque, de tudo (bombardeios, Deus, sentido, orientação), um encontro imediato de terceiro grau, na sua imponderabilidade, nas suas possibilidades infinitas (o Universo é o limite), é a última coisa que guarda para mim uma promessa de fascínio. Não é assim tão patético, há quem seja religioso ou tenha uma ideologia ou um clube.


P.S. É avisadamente que os estabelecimentos não arriscam a piada de utilizar a marca de Batman nos seus focos de luz: poderiam atrair o tipo errado de noctívagos. Quem sabe, de todos os anjos vingadores que aguardam a sua vez nas trevas de uma cidade, quantos não se formaram com a DC Comics?

domingo, 11 de janeiro de 2015

Pássaro na gaiola

Está um frio de rachar e, submerso em camadas de vestuário de acordo com os receituários meteorológicos, ouço pássaros em plenos fôlego e inspiração melódica. Não duvido da minha sanidade, mas pelo sim pelo não encosto os phones à orelha para checkar: no meio de tantas páginas abertas para os trabalhos de hoje alguma terá talvez música de fundo ornitológica. Porém, não. Os pássaros não esperam por padecer da nostalgia de ar livre (mesmo que siberiano) e do consequente impulso que senti há pouco quando me permiti espreitar a janela por segundos. Os pássaros recusam-se à ladainha humana de ser domingo e ter de trabalhar e ficar meses sem passear pelos montes. Os pássaros voam assobiando ou assobiam voando, e que se foda a vidinha responsável e burguesa! Onde raios pus as minhas asas e o diapasão?

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Não, não sou Charlie Hebdo

Durante uma boa parte da minha vida adulta escrevi textos críticos e satíricos de pendor social ou político. Antes tinha feito cartoon (é verdade), primeiro como argumentista, depois, por desistência do parceiro, também como desenhador. Não eram grande coisa, os meus cartoons, tanto no traço como no humor. Embora aquilo me desse bastante gozo, não sei se haverá algum por que possa sentir qualquer ponta de orgulho. Guardo parte deles na garagem, mas há mais de uma dúzia de anos que não lhes toco. Quando o fizer, provavelmente o papel de jornal desfaz-se-me nas mãos e não me parece triste nem injusto que isso aconteça. Inicialmente assinava-os com pseudónimo, mais por timidez e insegurança (ou por consciência não assumida da sua mediocridade) do que por receio de represálias. Mas em algum momento devo ter percebido (finalmente) que, medíocres ou não, era cobardia não assinar os desenhecos e passei a fazê-lo. O mundo, acertadamente, não se comoveu com o gesto, a Terra não alterou a sua órbita.
Quando passei para as colunas de opinião, em publicações próprias ou alheias, a ironia e a irrisão acentuaram-se. Ganhei os meus primeiros inimigos para a vida, mas quase todos inimigos cordiais e até afáveis, devo dizê-lo.
Por ocasião do III Congresso de Trás-os-Montes e Alto Douro, se não estou em erro, escrevi para o extinto Semanário Transmontano, onde era na altura cronista regular, um texto a ridicularizar sarcasticamente o evento e as suas pretensões e o director resolveu publicá-lo em letra gorda na primeira página. O jornal foi distribuído no Congresso e eu resolvi aparecer no local, com suposta heroicidade, para dar a cara pelas minhas palavras (ou talvez deva dizer honestamente, para recolher os louros pela boutade). De novo com justiça, a nata transmontana ali reunida não deu pela minha presença: não houve vaias, assobios, ameaças à integridade do escriba petulante e traidor. Só o meu ego saiu ferido.
De resto, tirando ocasionais reacções frouxas, a minha intervenção cívica através da crítica e da sátira pareceu-se demasiado a um passeio bucólico pelos bosques. Só a espaços senti ter despertado algum ódio atávico, geralmente vertido em colunitas azedas, algumas convenientemente anónimas, e apenas em duas ocasiões as reacções ao que escrevi traziam implícitas ameaças de consequências. Numa noite de vitória eleitoral de uma facção que eu satirizara nas minhas crónicas, um militante mais eufórico ofereceu-me o seu olhar de pura raiva hooligan e perdigotou palavras de exemplares democraticidade e fair play (confirmando, aliás, involuntariamente, o que eu escrevera sobre a seita, mas isso ele jamais poderia perceber). Pela mesma época, certo figurão resolveu informar uma audiência (não apenas privada, infelizmente para a sua honra) que os meus escritos eram razões suficientes para ele mexer cordelinhos e conduzir-me ao desemprego. Deve ter-se sobrestimado ou arrependido, porque continuei empregado.

É por este triste currículo que me sinto obrigado a confessar ter sentido uma certa vergonha a acompanhar a minha comoção com a morte dos cartoonistas e jornalistas do Charlie Hebdo. A afirmação Je Suis Charlie que pus como foto de perfil no Facebook é sincera na sua solidariedade, mas é simultaneamente cabotina, equívoca. Não, não sou Charlie. Eu não tenho a bravura, a grandeza daqueles homens. Eu não escrevo textos nem faço desenhos corajosos como os daquelas pessoas que morreram em Paris. Eu não vivo a um passo da ameaça terrorista. As minhas actividades e as minhas opiniões não me expõem a perigos quotidianos potencialmente fatais. Poderia passar os dias, aqui neste canto da periferia europeia, a republicar cartoons sobre cretinos e fanáticos muçulmanos, católicos, judeus, hindus e nacionalistas e provavelmente morrer de velhice, cirrose ou de um AVC — não com balas ou bombas.
Mas sobretudo não sou Charlie porque com os anos tenho demasiadas vezes cedido à inércia e à preguiça e deixado de me rir — rir ironicamente, sarcasticamente, ferozmente, acintosamente, publicamente — das pequenas iniquidades e dos pequenos ayatollahs que neste país também frutificam. A minha resolução de ano novo deveria ser a de voltar a rir às gargalhadas com certa regularidade. Enquanto isso não acontecer, vou ali trocar a foto do Facebook por uma igualmente solidária mas menos pretensiosa.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

O último acto

[Já agora, que diabos, fica aqui em nova versão o contito referido no post anterior.]

Mudara-se para as montanhas no início da semana com o objectivo de passar o Verão. Não tinha exactamente um projecto a que se entregar, nada mais do que uma mala cheia de livros e a necessidade absoluta de não ver ninguém, ninguém conhecido, pelo menos.
Escolheu uma vila pequena sem outros atractivos além de uma paisagem discreta e um festivalzinho de música clássica num fim-de-semana de Agosto (reparar no festival fora uma cedência de que esperava não se vir a arrepender). Alugou por oito semanas o bungalow com uma lareira e um alpendre virado para um vale profundo. Ficava nos arredores da povoação e fora o único a ser erigido de um complexo turístico falhado.
A cabana não estava nas melhores condições, era frágil, em madeira, mas tinha conforto suficiente, mais do que muitas casas nas redondezas. Usaria o alpendre tanto quanto possível. Quando não estivesse ali sentada a ler os seus livros andaria a tentar perder-se pelos montes ou teria ido fazer as refeições à vila, guardando-se de fazer amizades. Por uma vez na vida, estava-se nas tintas para a educação ou para a cordialidade. Seria a velha antipática e egoísta que tinha o direito de ser.
Bem, talvez não tivesse esse direito. Não tinha sido exactamente o melhor dos seres humanos. Mas, que diabo, quem poderia atirar a primeira pedra? Não havia seres humanos bons e ela queria mesmo que se fodessem todos (estava velha e com um diagnóstico de senilidade galopante, podia, finalmente, usar o verbo foder).
No terceiro dia começou a nevar. Estava a tarde a meio e ela apenas se deu ao trabalho de achar ridículo nevar em pleno Verão, com aquele calor. De todo o modo, era-lhe indiferente. A lareira estava funcional, caso a temperatura baixasse, e havia lenha nas traseiras do bungalow. Além do mais, teria a sua desculpa: escusava de se censurar por ficar em casa em vez de ir caminhar pelas redondezas. Gostava do exercício físico — tivera sempre o culto do corpo, do movimento, fora bailarina —, mas agora já não via o mesmo interesse nisso.
O crepúsculo foi belo, teve de admitir. Duas forças em oposição: a noite que caía e a neve que teimava em manter os campos e os montes iluminados. Assistiu ao combate de rosto colado na janela e livro esquecido nas mãos. A noite ganhou, naturalmente, mas não foi uma vitória completa: não havia trevas, apenas uma penumbra que permitia ver muito mais do que os contornos das coisas. Ao redor da cabana estava até bem claro, como uma noite de filme. O branco da neve reflectia a luz eléctrica e a luz das estrelas, transformando a envolvência num décor de estúdio.
Então eles chegaram. Não se moviam como pessoas normais. Vinham acometidos de convulsões, como que afectados por danos neurológicos, tropeçando, caindo e levantando-se quais robots inadaptados ao terreno. Na aparência eram humanos, mas diferenciavam-se pelos movimentos, pela postura estranha do corpo, pela maneira impossível como mexiam e dispunham os membros.
Marionetas animadas, deu consigo a pensar. Alguns pareciam querer aproveitar a neve para deslizar. Outros simplesmente tombavam a cada dois passos, com violência. Levantavam-se de imediato, dir-se-ia que impulsionados por molas, para voltarem a cair no passo seguinte. Depois já nem tinham o trabalho de se levantarem, simplesmente saltavam no chão com o corpo na horizontal, em estertores de gatos atropelados, acrobáticos, conseguindo progredir no terreno desta forma.
Não era absurdo ver uma intenção coreográfica naquilo tudo. Pelo menos ela achava que era esse o espírito que animava os visitantes. Talvez porque não estava disposta a ceder ao pânico fácil e estereotipado de se imaginar na presença de uma dúzia de mortos-vivos.
No momento seguinte eles levantaram-se e juntaram-se em círculo, com os braços nos ombros uns dos outros, como uma equipa de râguebi disforme. Segredavam e parecia ouvir-se uma música alusiva à conspiração (de certeza o vento, que entretanto chegara). Fechou o livro e apagou a luz. Apetecia-lhe desfrutar aquilo intensamente — e ao mesmo tempo sentiu que era esse o gesto que se esperava dela, como se tudo naquela noite obedecesse a um guião.
E agora parecia que uma bomba rebentara no meio do conciliábulo lá fora: cada corpo foi projectado para um lado e os primeiros a conseguirem levantar-se tiveram uma reacção estranha: correram a atirar-se repetidamente contra a cabana.
Achou que devia abrir a porta — aquelas pessoas procuravam desesperadamente abrigo, por certo —, mas alguma coisa a fez permanecer à janela, a espreitar. Talvez eles desejassem, na verdade, derrubar-lhe a casa, fazê-la cair sobre a inquilina, sepultando-a viva. Era uma ideia terrível. Contudo, estava a ter prazer em observar a violência com que os visitantes se atiravam contra a casa, a forma coordenada, bela e perturbante como o faziam. Eram impactos de uma bizarria que assentava na violência e na invulnerabilidade de que pareciam beneficiar os atacantes. Daquele assalto não resultavam danos físicos para eles. Era possível sentir a força a que era submetida a estrutura de madeira da cabana a cada investida, mas não havia lesões ou queixumes.
O ataque obedecia a um padrão que ela esteve quase a decifrar, só que acabou por perder o fio ao raciocínio. Acontecia-lhe com crescente frequência. Estava velha, talvez com Alzheimer, não havia nada a fazer.
Um dos visitantes começou a mexer-se freneticamente, possuído por um demónio ou tomado por um feroz ataque epiléptico. Pareceram-lhe familiares, a pessoa e os movimentos. Era um homem jovem, de etnia oriental, e fazia coisas assombrosas com o corpo. Tinha a capacidade de o metamorfosear, dava-lhe novas formas e dimensões. Esticava-se e parecia uma pessoa alta, de longos membros, ou encolhia-se até ao chão e não era mais do que um pequeno monte de roupa enrugada sem nada dentro. Erguia-se de novo como uma pessoa franzina, pouco mais do que um cadáver emagrecido, e no momento seguinte ficava largo de ombros, os músculos recortados e imponentes. Dir-se-ia um daqueles bailarinos acrobáticos de que em tempos gostara tanto.
De súbito, o oriental esmagou o rosto contra a vidraça (sem a partir) e ela, com um susto, julgou reconhecer-lhe a cara. Não lhe faltaria mais nada, pensou, tanto trabalho para conseguir um Verão só para si e agora ter conhecidos a tentarem derrubar-lhe a cabana... Seria patética, se não fosse trágica, a ameaça de companhia.
Estava a tentar concentrar-se nas razões que levariam um grupo de desconhecidos (insistia em considerar que o eram) a encetar um ataque daquele género quando todos lá fora se imobilizaram, fixando um ponto qualquer para lá do círculo da luz branca artificial que rodeava o bungalow. Não falavam, mas o seu olhar dizia tudo: o inominável, nada menos do que isso. Ouviam-se passos pesados e uma música tensa.
Após alguns instantes fustigados pelo vento, um velho, mais aturdido do que ameaçador, atravessou a neve pisada do quintal. Passou em silêncio pelo grupo petrificado e veio postar-se de joelhos à frente da janela, no rosto uma expressão de súplica. Parecia-se de forma assombrosa com alguém que ela conhecera intimamente, amorosamente. E se era quem parecia, esta era então uma visita do além.
Aquele homem já não existia. Tanto quanto ela conseguia raciocinar, não devia estar ali, não podia estar ali. Teve um suspiro de enfado e deixou-se cair no sofá. Pior do que a visita de conhecidos era a visita de conhecidos mortos.
Olhou à sua volta, incomodada com a farsa. A cabana parecia parte de um cenário, as estrelas projectores num palco.
Uma voz sussurrou-lhe no interior da cabeça, como um ponto a segredar-lhe as deixas, e ela sobressaltou-se. A voz dizia-lhe: «Maria, agora sais da cabana e abraça-lo.»
Que demónios significava isto? Que epifania absurda era esta? Quem lhe falava? Que divindade não invocada lhe dava ordens? Tentou abafar aqueles murmúrios tapando os ouvidos com as mãos e nesse momento percebeu que tinha um auricular enfiado numa das orelhas.


[Inspirado em "32 Rue Vandenbranden", de Peeping Tom]

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Peeping Tom

Já me tinha acometido a sugestão de um conto a partir de um espectáculo de Peeping Tom, mas planear férias em função da agenda da companhia belga era a primeira vez. A dança contemporânea (no caso, o termo mais apropriado é tanztheater, até se quisermos evocar o ascendente de Pina Bausch) parece-me uma óptima bússola para os dias. Do mesmo modo que alguns guiam os seus passos pelos signos, pelo tarot ou pelo calendário futebolístico, se eu tivesse o tempo e o dinheiro orientaria hoje o meu quotidiano totalmente em função de certas tournées. Seria com imenso prazer e sem medo do ridículo uma espécie de groupie das grandes (e boas) companhias.

Não teria uma vida aborrecida ou pacata. Apesar da crise e da bruteza de uma boa parte dos dirigentes europeus, a oferta é muita. Um tipo (com dinheiro e tempo) ainda pode passar os seus dias de malas aviadas entre aeroportos, estações e hotéis, numa digressão que tem a vantagem de ser simultaneamente um roteiro por cidades interessantes. Só na pequena Bélgica, e para a produção mais recente da companhia, as opções eram Bruxelas, Antuérpia, Genk, Namur, Bruges ou Lovaina.

Nem sempre parece fácil transmitir ou explicar este interesse. Dir-se-ia que o gosto do cidadão médio europeu está demasiado cercado pela estreiteza medíocre dos media para se se sentir autorizado a curiosidades ou extravagâncias.

Naquela noite em Bruxelas, as nossas guias da cidade acompanhavam-nos em parte talvez por delicadeza de anfitrião — não tinham o hábito de ir ao KVS, e Peeping Tom era novidade. Mas a suposta sensatez de as prevenirmos contra alguma estranheza que pudessem vir a presenciar era na verdade uma cedência ao preconceito e à condescendência: não houve distinção entre o nosso entusiasmo e o entusiasmo delas no final da peça simultaneamente perturbadora, terna e cómica que é “Vader”. Devíamos saber: não é necessário ter visto outras produções da companhia (ou sequer ser iniciado no género) para a apreciar. Basta ter a inteligência e a sensibilidade activadas.