Já me tinha
acometido a sugestão de um conto a partir de um espectáculo de Peeping Tom, mas
planear férias em função da agenda da companhia belga era a primeira vez. A
dança contemporânea (no caso, o termo mais apropriado é tanztheater,
até se quisermos evocar o ascendente de Pina Bausch) parece-me uma óptima
bússola para os dias. Do mesmo modo que alguns guiam os seus passos pelos
signos, pelo tarot ou pelo calendário futebolístico, se eu
tivesse o tempo e o dinheiro orientaria hoje o meu quotidiano totalmente em
função de certas tournées. Seria com
imenso prazer e sem medo do ridículo uma espécie de groupie das
grandes (e boas) companhias.
Não teria uma
vida aborrecida ou pacata. Apesar da crise e da bruteza de uma boa parte dos
dirigentes europeus, a oferta é muita. Um tipo (com dinheiro e tempo) ainda
pode passar os seus dias de malas aviadas entre aeroportos, estações e hotéis,
numa digressão que tem a vantagem de ser simultaneamente um roteiro por cidades
interessantes. Só na pequena Bélgica, e
para a produção mais recente da companhia, as opções eram Bruxelas, Antuérpia,
Genk, Namur, Bruges ou Lovaina.
Nem sempre
parece fácil transmitir ou explicar este interesse. Dir-se-ia que o gosto do
cidadão médio europeu está demasiado cercado pela estreiteza medíocre dos media para
se se sentir autorizado a curiosidades ou extravagâncias.
Naquela noite
em Bruxelas, as nossas guias da cidade acompanhavam-nos em parte
talvez por delicadeza de anfitrião — não tinham o hábito de ir ao KVS, e
Peeping Tom era novidade. Mas a suposta sensatez de as prevenirmos contra alguma
estranheza que pudessem vir a presenciar era na verdade uma cedência ao
preconceito e à condescendência: não houve distinção entre o nosso entusiasmo e
o entusiasmo delas no final da peça simultaneamente perturbadora, terna e
cómica que é “Vader”. Devíamos saber: não é necessário ter visto outras
produções da companhia (ou sequer ser iniciado no género) para a apreciar.
Basta ter a inteligência e a sensibilidade activadas.
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