segunda-feira, 21 de novembro de 2022

A peregrinação de um caçador-recolector

Depois de meses de ausência, lá fui visitar a terra-mãe. Pelo caminho, vi, conferenciando como pombos numa praça, o maior bando de corvos com que alguma vez me cruzei, e achei isso de bom agouro. Parei o carro junto ao baldio e fui em paz até eles, mas espantaram-se às centenas e não pude estabelecer contacto, apenas desfrutar do panorama visual daquela chusma em vaivém, pousicando aqui e acolá e nas torres de iluminação de um estádio longe do Qatar.

Ao chegar, fui primeiro ao lago, um dos meus territórios de caça. A tarde findava e não queria negar à sorte a chance de me surpreender outra vez com alguma da esquiva fauna avícola que já por ali vi: corvos-marinhos, patos selvagens, a garça-real que iniciou o Villa Juliana. Passeei brevemente de mãos nas costas, místico tal monge em claustro, e lá tive um gazear, mas quando virei os olhos aos céus já não pude ter a certeza se o que os cruzava era deus, garça ou ave ainda mais rara.

Ia dizer que continuei pelas estações da minha via-sacra, mas o que evoco em cada sítio onde me detenho não tem nada de dor ou sofrimento, pelo que mais acerto se disser que peregrinei. Não com um percurso pré-definido, mas deixando-me levar pelas muitas áleas e carreiros, entregando-me ao dédalo sensual do parque romântico como ali mesmo se entrega o corpo dorido às mãos do balneoterapeuta.

Cheguei à zona sul, onde antigamente, se centrava a nossa actividade micológica e os meus olhos deitaram-se pavlovianamente a sondar os canteiros. Não procuravam os cogumelos perdidos, mas a iminência do Mistério, a emoção, o espanto que na altura me tomava nas raras vezes em que encontrava um. Julgo que por isso peregrino: não para evocar momentos, estórias, pessoas, mas para recuperar a inocência, a virgindade, a capacidade de expectativa e fascínio de quando o mundo estava por descobrir e era prometedor.

Caía uma morrinha e deitei o capuz pela cabeça. Há hoje ali bungalows e turistas neles, pelo que o meu deambular de recolector nas zonas de sombra dos canteiros pareceria decerto sinistro se algum perscrutasse a noite acabada de instalar. Isso não me demoveu. Nem sequer a possibilidade nada remota de o meu passarinhar ser confundido com voyeurismo ao cruzar, mesmo que à distância, os grandes envidraçados iluminados por dentro que expõem, se os houver, os esplendores e misérias dos cortesãos em escapadinha de fim-de-semana.

Não tendo encontrado roca ou frade, a minha atenção voltou-se depois para a flora. Os letreiros brancos que puseram defronte de algumas árvores brilham como faróis na noite e resolvi orientar a navegação por eles. Recolhi: cedro-do-atlas, faia vermelha, abeto-de-douglas, calocedro, sequoia-sempre-verde, bordo-japonês, choupo-branco, pinhão-chinês (com um belo triplo tronco), castanheiro-da-índia, carvalho-americano e o ex-libris local, o exemplar de sequoia-gigante de casca fibrosa e suave que hoje se tornou moda apalpar como em Verona se apalpam os seios de Julieta. Encostei-me a ele, mas de forma pudica.

Também recolhi, sem letreiro, vários exemplares de árvores de meródios, que noutros locais se conhecem como medronheiros e que na antiguidade me embriagavam só de lhes olhar os frutos vermelhos com vago conhecimento das suas propriedades alcoólicas (que de resto ali não se aproveitam). Ia jurar que estão iguais, mantêm a mesma leve ameaça de fruto proibido conjugada com a mesma sedução genesíaca.

Não há letreiros para todas as espécies, mas também não há alfabeto nem gramática para alguns dos exemplares sob cuja sombra me recolhia há mais de trinta anos. E se houvesse não me dariam informações curiosas e úteis sobre os seus nomes, características e proveniência, mas sobre certas propriedades inefáveis.

Andei também a respigar pelo minigolfe, descobrindo as suas velhas pistas como alicerces aztecas a despontar das ervas crescidas e das folhas de Outono. Passei pelas traseiras hoje amplas do balneário e encontrei a antiga serralharia onde quase fiz carreira depois de um curso profissional e equívoco em metalomecânica. E passei pela casa onde viviam as freiras, pensando que se aguentei sem esforço os retiros e os terços é talvez porque estava vagamente apaixonado por uma delas.

Chovia copiosamente quando terminei a peregrinação pelos lugares devotos da minha religião pessoal, mas ainda não era o Dilúvio.

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Monsenhor, passando de bicicleta

[Do baú:]

“mas vós monsenhor dando ao pedal/ como abrandais a minha têmpera/ até a transformardes/ num veludo de rosas/ que vos saúdo tiro o boné aldeão/ faço o sinal da cruz mal imitado/ / a ver se atravessais a praça/ sem bater no lancil”

Fernando Assis Pacheco, “Monsenhor, Passando de Bicicleta”, Respiração Assistida

Monsenhor, passando de bicicleta, pragueja. Vai atrasado quarenta anos. Que não o impeça ninguém. É melhor que abram alas, despejem as ruas, proíbam o trânsito; arranjem-lhe uma escolta de motos e polícias uivantes. Das beatas não quer ver-lhes pinta de negrura, seja o vulto que se ergue em trajes inteiriçados de virtude, seja a sombra que mais honestamente se prostra nos paralelos da calçada. Os seus pares que voltem aos afazeres, joguem cartas, que vão rezar missas ou o que lhes apeteça. O senhor bispo fique-se pelas epístolas obesas sem receptor ilustrado, pela catequização dos espelhos do seminário, que lamente, se quiser, a falta de vocações e lombos para arrear sotainas.

Monsenhor, passando de bicicleta, retorce a beiça. À saída do quintal sacrossanto, do condomínio episcopal, a rua resolve ser ladeira, coisa pouco própria para pernas de sessenta anos. Mas monsenhor retorce a beiça porque está zangado, as pernas que façam, sem lamentos nem quebranteiras, este último servicinho, castigo pequeno para membros cobardes, que se abrigaram toda a vida debaixo de saiotes e fraldas compridas. Pedalem agora, se outra coisa não souberam fazer. Firmem-se agora, se fraquejaram antes.

Monsenhor, passando de bicicleta, faz caretas e retine a campainha. As saias esvoaçam, a populaça alvoroça, um cavalheiro muito lá da igreja segura o queixo de pasmo; as tipas da residência universitária gabam a torneadura dos membros inferiores do velho, pese a lixívia que os descolorou; um automobilista choca por trás porque olhou para o lado em vez de travar; o da viatura B, a abalroada, já se lhe dirige com a declaração amigável e um par de tabefes em preparação; as pombas, asas para que vos quero, mas não sem cagadela no Camões da Praça; os marroquinos dos couros e os indianos das rosas, ala, ainda não conhecem bem as fardas, não sabem que aqui as saias não tem autoridade sobre o comércio e que Cristo não voltou à terra a azucrinar os vendilhões; e a campainha ainda assusta um arrumador que tinha escapado ao programa.

Monsenhor, passando de bicicleta, berra como um doido quando dobra esquinas e cruza vermelhos. Não pára, claro, nas passadeiras, porque é português e estudou física e teologia, e da física sabe os poderes da aceleração, a problemática do atrito em caso de paragem brusca; da teologia só recorda a multiplicação dos peixes e as caminhadas sobre a água; com a nacionalidade está confortável. Um helicóptero fez a sua ascensão, por mandato do comando distrital da polícia, para acompanhar e antever o destino da desfilada eclesiástica. Há alguma estática na comunicação, interferências inusitadas, parece que estranhos fenómenos climáticos estão marcados para o dia de hoje, ou estará para se manifestar a birra celestial com o sprint de Monsenhor, as televisões ainda não o sabem bem, e em rodapé há testemunhos de Virgens que choram e pedófilos em segredo de justiça.

Monsenhor, passando de bicicleta, acha mal que tenham construído aquele prédio onde antes era estrada, dividindo-a; não sabe se consegue meter pela direita, como mandam as escrituras e a seta branca em fundo azul, e mete pela esquerda; não tem tempo para os códigos, da estrada ou da moral, e sobretudo, considerando a força centrífuga e o ângulo do corpo, o caminho ímpio é o único que o salva da queda.

Monsenhor, passando de bicicleta, deixou para trás a cintura industrial da cidade e os paramentos que se lhe enrolavam no pescoço. Saiu à pressa, está bom de ver, e, segundo o último directo feito pela equipa de reportagem no helicóptero da polícia, não diminuiu um metro por hora a mesma urgência que o leva de nariz colado no volante do biciclo, traseiro sentado no selim alto, excepto quando as subidas obrigam a outro jeito de pedalar. Monsenhor aceitaria, de bom grado, apostas sobre o seu destino, tivera ele tempo e humor. Mas vai resmungão. O suor, o esforço, o pulso acelerado, as pernas acima abaixo, não lhe tiraram tempo para praguejar. Vai praguejando Monsenhor, e no Vaticano não se pragueja, que Deus não quer, mas há ali umas autoridades muito zangadas com Monsenhor, sem saberem, em boa verdade vos digo, porquê.

Monsenhor, passando de bicicleta, olha para cima deitando chispas pelos olhos e aproveita uma recta para tirar as mãos do volante e fazer um manguito dos antigos aos céus, talvez apenas para o helicóptero que transporta a equipa televisiva e as imagens que esta prepara para o jornal da noite, quando um especialista em motricidade humana dirá impante onde parará o pedalar de Monsenhor e um perito militar do Instituto de Cartografia discordará, porque tem grande fezada em um de vários destinos prováveis para o bólide clerical.

Monsenhor, passando de bicicleta, vai muito, muito zangado, mas encosta o dínamo na roda dianteira e faz luz sobre o seu caminho, desassossegando a bicharada no campo.

2003

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Profetas dos últimos dias

O ambientalismo é hoje uma escatologia e os activistas continuam a ser frequentemente confundidos com fanáticos religiosos de cartaz ao pescoço a anunciar o fim do mundo numa esquina. Mas, ao contrário daqueles, os activistas não têm a possibilidade de encontrar alívio nos antipsicóticos — e menos ainda na ciência.

Tailleur

Se em vez de roupas extravagantes e penteados futuristas, eles, que não têm futuro, usassem um esmerado tie knot debaixo de um Barbour devidamente ensebado, perdão, encerado, talvez os jovens activistas conseguissem, se não salvar o planeta, fazer os velhos conservadores de todas as idades questionarem a coerência do seu pensamento.

domingo, 6 de novembro de 2022

A primordial emoção do jogo

O jogo vai avançando e a equipa ganha por quatro a um, mas ele sofre como se houvesse um empate e na vitória residisse a última esperança da humanidade. Sozinho na mesa com os restos desolados do seu jantar, lança olhares suplicantes em volta à procura de uma alma gémea que compreenda o seu tormento e com quem possa partilhar agruras e impropérios. Porém — algo bizarro nesta era, uma noite pública irrepetível —, só encontra indiferença. É certo que um ambiente sem a habitual empatia não costuma intimidar os adeptos do jogo, mas ele acanha-se, comenta para si (e involuntariamente para mim, que tenho por cima do livro ouvidos de tísico) e morde a língua a cada ameaça de grosseria.
A equipa adversária marca um golo e o espectador, que já olhava o ecrã como quem a partir do banco do réu adivinha na fisionomia do juiz uma sentença desfavorável, vira-se agora para o tecto com expressão lancinante e um nó na garganta a avaliar a solidez de imaginárias traves de carvalho. Dois minutos depois, um terceiro golo fá-lo levar as mãos à cara, comprimindo-a e abrindo uma excruciante boca como o gritador de Munch, com o mesmo silêncio estridente.
A disputa acaba com o resultado de quatro a três (bastava o empate) e ouve-se-lhe a primeira observação em voz alta enquanto se levanta para pagar: «Poderia ter sido sempre um jogo calmo…».
Se o tomarmos como barómetro, somos levados a suspeitar, para lá das palavras, que o espectador não se referia à ocasião do 4-2 mas ao minuto zero, ao próprio apito inicial, como momento em que o jogo deixou de ser calmo.

terça-feira, 1 de novembro de 2022

O senhor Palomar e o amor sáfico

Vêm de mãos dadas e ele, em passo de jogging, capta-lhes na distância um semblante que hesita em definir como semi-erguido em desafio ou meio abatido de embaraço. À medida que se aproximam, pergunta-se, com ligeiro desassossego: vincam com ousadia a sinceridade dos dedos entrelaçados ou preparam-se para baixar os rostos acossados?

A consciência da situação faz com que a dúvida se vire depois para si próprio e então hesita entre olhar brevemente com naturalidade ou desviar os olhos sem demora. Se optar pela primeira hipótese, será convincente a sua lhaneza, não se sentirão as moças objecto de curiosidade circense ou censura arrogante? Por outro lado, se escolher deixar de olhar agora, com pudor e respeito pela intimidade alheia, não pensarão que ele o faz precipitadamente por indignação ou nojo?

O dilema é resolvido pela intervenção de uma força de outra natureza: vence a curiosidade literária, que o incita a procurar sem rebuço nem mandado personagens em todos os transeuntes. Flanqueia-as a olhá-las com esbaforido olhar clínico, imaginando-as na mesa do anatomista, não se dando conta de que, desta vez, no hiato onde ocorrem os dilemas absurdos, é ele a personagem.