Num tempo em que a comunicação social, como a política, se tornou uma anedota trágica em busca de likes e audiências pavlovianas e em que as páginas sobre cultura (não falo de entretenimento, essa "cultura" de substituição com que tantos se consideram cumpridos) são inexistentes ou residuais, como os interesses estéticos ou os remorsos de quem dirige os media, sabe bem ter à mão um blogue como o do Rui Manuel Amaral:
http://bicho-ruim-blog.blogspot.com/2018/06/com-o-tempo-fui-me-habituando.html
domingo, 17 de junho de 2018
sábado, 16 de junho de 2018
[Work in progress]
«— Houve um tempo em que também para mim era gratificante imaginar-me parte da aristocracia, não lho vou esconder — disse ele. — E ainda agora, se me distraio, faço poses em frente ao espelho e passeio-me pela casa de robe tal um viscondete entediado, como se o tédio fosse uma prerrogativa da nobreza.
O que talvez Rodrigo não estivesse disposto a conceder era que naquele momento ele agia com a prepotência de um monarca, detendo o seu interlocutor sem nenhuma razão válida senão forçá-lo a ouvir as suas confidências inesperadas e excêntricas.
— Pelo contrário, talvez seja nisso que a humanidade se irmane — disse eu, tentando ser jocoso. — O tédio como bem de acesso universal.
— Acha? Julguei que depois do regicídio só os poetas se entediavam.
— Ainda há poetas?
— Nem imagina como essa pergunta faz sentido.
— A literatura não é o meu forte.
— Eu era um. Poeta. Antes de ser esta espécie de hoteleiro.
— E o que aconteceu?
— A revolução plebeia.
— O que quer isso dizer?
— A democracia generalizada.
— Não percebo.
— O acesso das massas às tipografias, o fim dessa instituição adequadamente elitista que eram as editoras, a Chiado e a consagração da vida sem-vergonha, uma sucessão histórica de factores como quando os astros se alinham para ditar os augúrios, determinar as pragas.
— As editoras deixaram de se interessar por si?
— Eu deixei de me interessar por elas. E pelos leitores.
— Síndrome de Bartleby?
— Pensei que não percebia de literatura.
— Menti. Leio umas coisas, de vez em quando.
— Leu Vila-Matas.
— Não, li uns artigos onde se falava nisto. Achei adequado mencioná-lo.
— Um homem de recursos teóricos, apesar de tudo.
— Interessa-me o tema.
— O da renúncia?
— Já que põe as coisas nesses termos…
— Nesse caso, veja-me como uma espécie de paradoxo. Renunciei à literatura mas vim tomar posse da herança, veja lá. Se calhar não é um paradoxo, mas uma redundância. Uma dupla queda. Será que tomar posse da herança foi uma forma de sublimar a renúncia à poesia?
— Perturba-o essa possibilidade?
— Não! Encanta-me.
— É um provocador.
— Não, sou um homem angustiado.
— Não parece.
— Finjo.
— Como o poeta.
— Arrgh! Dispensemos evocações dessas.
— Desculpe, não resisti.»
«— Houve um tempo em que também para mim era gratificante imaginar-me parte da aristocracia, não lho vou esconder — disse ele. — E ainda agora, se me distraio, faço poses em frente ao espelho e passeio-me pela casa de robe tal um viscondete entediado, como se o tédio fosse uma prerrogativa da nobreza.
O que talvez Rodrigo não estivesse disposto a conceder era que naquele momento ele agia com a prepotência de um monarca, detendo o seu interlocutor sem nenhuma razão válida senão forçá-lo a ouvir as suas confidências inesperadas e excêntricas.
— Pelo contrário, talvez seja nisso que a humanidade se irmane — disse eu, tentando ser jocoso. — O tédio como bem de acesso universal.
— Acha? Julguei que depois do regicídio só os poetas se entediavam.
— Ainda há poetas?
— Nem imagina como essa pergunta faz sentido.
— A literatura não é o meu forte.
— Eu era um. Poeta. Antes de ser esta espécie de hoteleiro.
— E o que aconteceu?
— A revolução plebeia.
— O que quer isso dizer?
— A democracia generalizada.
— Não percebo.
— O acesso das massas às tipografias, o fim dessa instituição adequadamente elitista que eram as editoras, a Chiado e a consagração da vida sem-vergonha, uma sucessão histórica de factores como quando os astros se alinham para ditar os augúrios, determinar as pragas.
— As editoras deixaram de se interessar por si?
— Eu deixei de me interessar por elas. E pelos leitores.
— Síndrome de Bartleby?
— Pensei que não percebia de literatura.
— Menti. Leio umas coisas, de vez em quando.
— Leu Vila-Matas.
— Não, li uns artigos onde se falava nisto. Achei adequado mencioná-lo.
— Um homem de recursos teóricos, apesar de tudo.
— Interessa-me o tema.
— O da renúncia?
— Já que põe as coisas nesses termos…
— Nesse caso, veja-me como uma espécie de paradoxo. Renunciei à literatura mas vim tomar posse da herança, veja lá. Se calhar não é um paradoxo, mas uma redundância. Uma dupla queda. Será que tomar posse da herança foi uma forma de sublimar a renúncia à poesia?
— Perturba-o essa possibilidade?
— Não! Encanta-me.
— É um provocador.
— Não, sou um homem angustiado.
— Não parece.
— Finjo.
— Como o poeta.
— Arrgh! Dispensemos evocações dessas.
— Desculpe, não resisti.»
quarta-feira, 13 de junho de 2018
O pianista
Um naco de prosa inútil, de um escrito (provavelmente também inútil) em curso:
«Cheguei ao cinema para almoçar e havia apenas
mais duas pessoas na sala, dois homens que partilhavam uma
mesa. Olhei em volta antes de me interessar pelos clientes. O cinema
fora demasiado pequeno em algumas noites da sua época de sessões semanais;
agora era demasiado grande para restaurante e por isso a sala tinha sido
dividida a meio com uma fila de estantes que suportavam vasos de trepadeiras e
flores em vez de livros. O expediente resultava: mesmo que se conseguisse ver
através das estantes, o efeito de salão de baile era atenuado, deixava os
comensais confortáveis ainda que as restantes mesas estivessem vazias.
Em todo o
caso, ao entrar ali senti-me a entrar num saloon
ou numa cantina mexicana, dessas que se viam nos westerns, abrigos para os calores do deserto de Sonora, ou antes
numa sociedade recreativa, com o seu pé-direito altíssimo e os seus grandes
espelhos emoldurados em todo o perímetro. O local não tinha o charme dos cafés
históricos europeus, ricos na monumentalidade e nos detalhes da sua decoração
barroca ou neoclássica, ficava-se por uma bem-intencionada tentativa de
reconversão de espaços e mobiliário, visível na desirmanação assumida de mesas
e cadeiras, pratos e talheres.
Lembro-me de
que havia ali um piano vertical e que em certas ocasiões chamavam um pianista
para os saraus, o mesmo que nessa tarde ou na tarde do dia seguinte víamos na
plataforma junto ao lago, estendido na chaise
longue, que alugava ou lhe emprestavam, com um livro nas mãos de onde não
tirava os olhos, excepto quando, de súbito, se levantava para mergulhar sem
hesitações e nadar uns minutos sem pausas.
O pianista não
era particularmente bonito nem atlético, mas o exotismo que lhe vinha de ser um
músico, severo e compenetrado quando actuava, e a sua aparente indiferença em
relação ao que havia à sua volta nas tardes quentes do lago davam-lhe a aura de
um ser à parte, de membro de uma espécie distinta ou pelo menos de uma elite,
que não se intimidava com a pequena aristocracia das minas.
Digo que a sua
indiferença era aparente porque em certos momentos percebia que ele nos
observava, às raparigas, tentando escolher bem a ocasião, quando estávamos
demasiado ocupadas connosco mesmas ou com qualquer outro assunto nas
imediações. Contudo eu desenvolvera uma capacidade especial de detectar os
olhares de terceiros, talvez porque os desejava, e de algum modo acabava por
cruzar o meu olhar com o seu no exacto momento em que ele, intuindo ter sido
descoberto ou tentando evitá-lo, voltava a dedicar-se ao livro.
Às outras
intrigava-as que houvesse um homem ainda novo desinteressado delas, sempre
absorto em leituras de volumes de aspecto anacrónico, alheio à nossa ruidosa
jovialidade e às provocações teatrais e exibicionistas das minhas companheiras.
Eu por vezes imaginava as outras raparigas como pavões com o cio descontrolado,
permanentemente a abrirem em leque as suas espantosas e vastas caudas floridas,
e achava-me recatada por comparação. Não estava porém menos intrigada ou
magnetizada por aquele estranho que raramente trocava palavras com alguém da
terra.
Num dos
verões, levámos as provocações um pouco mais longe na tentativa de conseguirmos
que houvesse algum comércio social entre nós e o pianista. Não nos tornámos compinchas
nem ele alguma vez se juntou ao nosso grupo, mas começámos a trocar acenos nas
chegadas e partidas. Da nossa parte, desejávamos mais e as tardes em que ele
vinha eram passadas a descobrir maneiras de o provocar e de o obrigar a
interagir. Falávamos alto de modo a que ele nos ouvisse e percebesse que certos
comentários lhe eram dirigidos. Chamávamos-lhe Camões, por uma qualquer assimilação pateta — naquele nosso tempo a
literatura e Camões ou Eça confundiam-se, eram tudo o que parecíamos saber do
assunto —, e púnhamo-nos a recitar dramaticamente os primeiros versos d’Os Lusíadas.
Numa das vezes aproveitámos o momento em que ele foi nadar — era um bom nadador
e rapidamente se afastava de qualquer grupo que estivesse na água — e
roubámos-lhe o livro que deixara pousado em cima da toalha, na sua
espreguiçadeira. Na verdade não o roubámos, limitámo-nos a mudá-lo para uma cadeira
vazia mais próxima do sítio onde nos encontrávamos, para ficarmos a observar a
sua reacção e o seu desconcerto e o obrigarmos a dirigir-nos alguma palavra.
Era um volume
vermelho de capas duras em que se podia ler na capa o título Os demónios. Mais tarde vim a saber que
era um romance de Dostoiévski, que nunca cheguei a ler, mas na altura achei,
influenciada pelas outras ou pela minha imaginação ainda adolescente, que era
algum tratado de feitiçaria ou algo do género. Aquela descoberta excitou-nos
ainda mais, adensava os contornos enigmáticos do pianista.
A nossa
provocação — que era um gesto mais evidente e assertivo do que os que nos
mereciam a maioria dos frequentadores do lago — teve um resultado quase pífio.
O pianista limitou-se a olhar em volta quando regressou, localizando o livro de
imediato (a capa vermelha sobre o branco da cadeira de plástico era facilmente
visível), e demorou-se a secar-se com a toalha, como se ninguém tivesse mexido
nos seus pertences. Quando decidiu recuperar o livro veio de olhos no chão e só
depois de o agarrar, ao levantar-se, reagiu às nossas provocações (dizíamos-lhe
em voz alta que estávamos enfeitiçadas, possuídas por um demónio, à espera que
nos exorcizasse, coisas deste género) com um sorriso, um encolher de ombros, um
gesto de impotência — e ruborizando.
Percebi nesse
momento que o pianista era um tímido e não, como julgáramos, alguém mais snobe
do que nós próprias. As minhas companheiras interpretaram a timidez à sua
maneira, possivelmente para não se sentirem tão derrotadas, tão
desclassificadas na sua capacidade de sedução, e determinaram ali mesmo que o
pianista era maricas. Retrospectivamente, seria possível imaginá-lo à beira-lago
como o protagonista de A Morte em Veneza,
ensimesmado e suspirando por algum efebo que por ali andasse como uma
reincarnação masculina da beleza, mas esse exercício está-me vedado porque tive
a oportunidade de comprovar anos mais tarde que o diagnóstico de tímido era
suficiente, e exacto, para o definir.»
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