terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

«Tratar de acabar»

A carrinha descia o caminho de terra com o seu ar de tartaruga de lata. O motor era velho e expelia pelo escape um fumo branco estranhamente homogéneo, num fluxo regular, contínuo, sem os sobressaltos ou os soluços que seriam de esperar numa máquina daquela idade. À distância, não se via um rasto de dióxido de carbono a desvanecer-se, mas a sugestão de uma cauda de algodão que despontava da carroçaria. O motorista, de vez em quando, pisava brevemente o acelerador e o veículo dava um ronco curto, com os pneus a patinar um pouco no saibro, como uma fera das montanhas que grunhisse e esgaravatasse o solo. Um pastor apoiava os queixos no cajado, à espera que a carrinha deixasse o caminho livre para o rebanho. Um cabrito preto com o focinho branco foi roçar-lhe as pernas e ele, sem olhar, acariciou-lhe a cabeça como faria a um dos seus cães. Resultava algo insólito aquele afecto mútuo entre duas espécies que ocupavam não exactamente o mesmo lugar na cadeia alimentar. Depois o pastor retomou o passo, bradando obscenidades e batendo com cajado no chão. Quando o rebanho reagiu ao seu comando como um único corpo, ele começou a cantarolar num tom alto e descomplexado. Os dias de solidão nos montes eliminavam alguns pudores. Não havia, para ele, estranheza nenhuma em um homem cantar de forma audível, sem estar bêbado, melodias antigas e brejeiras. Um tipo que convive sobretudo consigo próprio desinteressa-se, ao fim de uns anos, de muitas das convenções sociais. Do outro lado da ravina, um milhafre observava a cena, parado numa das correntes de ar ascendentes. De vez em quando, dava involuntariamente um salto para cima, como se subisse um degrau, e então batia as asas para retomar a sua condição estática. Mas na maior parte do tempo conseguia permanecer verdadeiramente imóvel, suspenso no ar como se o tempo tivesse parado, manobrando somente, de forma imperceptível, algumas penas das pontas das asas e do rabo. Depois a corrente afrouxava ou tornava-se mais forte e ele era de novo impulsionado ou tinha de se servir das asas para evitar descer demasiado.

 Era grotesco que o mundo exterior se revelasse tão bucólico e indiferente numa altura em que o homem se preparava para o deixar. A natureza não se importava nem um pouco com os estados de espírito alheios à mecânica habitual. O resto da humanidade seguia-a nesta premissa. Ele espreitava a pistola pousada nas pernas e conseguia ter por aquele pedaço de metal frio e antiquado um sentimento positivo. Sempre desejara possuir uma arma. Não como garantia de segurança, nem por fetiche (não era um daqueles tarados que atingiam paroxismos com artefactos militares). Apenas tinha consciência de que haveria um dia como este e não quereria deixar de estar na ponta de um cano quando ele chegasse. Tinha imaginado as coisas de um modo diferente, claro — ninguém nas redondezas, um dia cinzento, vazio, sem simbologias, sem afectos de espécie alguma, nem sequer aquele entre um pastor e uma cria de cabra. Mas agora tinha de lidar com isto: ter um quadro agradável e prosseguir.

A carrinha enferrujada acabou por ser apenas uma marca leve na retina, o rebanho fazia soar as campainhas a uma distância surpreendente (andava rápido, o rebanho), e só o milhafre se mantinha dedicado ao seu exercício de testemunha ou assombração, servindo simultaneamente de fiel de balança a uma velha querela entre a gravidade e certos ventos brandamente obstinados. Não, o homem não queria acreditar que acabara de lhe ocorrer disparar a arma na direcção do raio do pássaro. Era um pensamento estúpido de se ter em qualquer circunstância, mas nesta era sobretudo patético, duma comicidade dispensável. Meteu o cano na boca, como uma ameaça, mas depois percebeu que não falara e encostou-o à têmpora. Os pensamentos obedeceram e ele voltou a pousar a pistola. Havia que meditar num punhado de coisas e não tinha muito tempo.

 O homem fechou os olhos por uns segundos, para limpar a mente, mas o pregão indecoroso do pastor, vindo de trás da colina, chegou-lhe aos ouvidos, e não resolveria encostar neles a arma. Esperou e teve por fim silêncio. Era mais favorável, o silêncio. Trazia com ele o susto, e ele necessitava do susto para o seu empreendimento. Acercou-se mais do precipício. Estava na beira de uma garganta, no fundo da qual um ribeiro se despenhava em pequenas cascatas sucessivas; era um sítio conhecido, não havia muitos como aquele, e ele contava com isso para ser entendido — e descoberto. Depois de rebentar com os seus próprios miolos, o corpo deveria cair para o lado do abismo, e, com sorte, esmagar-se-ia numa plataforma rochosa imediatamente à superfície do leito nervoso, perfeitamente visível para quem espreitasse dali de cima. Não tencionava ter um último gesto de mau gosto, não era isso.

 Outro objecto: a velha guitarra Ovation, de caixa sintética negra e abaulada na parte posterior. Iria dedilhá-la por uns minutos, como supunha que alguém no leito de morte afagaria uma amante, com dedos trémulos de amor e angústia. Talvez soletrasse também uma das suas antigas canções, um blues em que a letra não encaixava bem (métrica arrevesada). As cordas de nylon eram de uma suavidade que os dedos apreciavam. Puxou-a para junto de si, deixando a pistola por minutos na terra húmida. Sabia que aquilo iria invocar memórias, mas estava disposto a correr o risco. Na verdade, talvez o fizesse por isso mesmo.

O vento frio de Dezembro dava-lhe na cara e ele lacrimejava. Era ridículo que só por essa razão o fizesse e que isso lhe provocasse prazer. Usava agora as unhas curtas e levava uma dúzia de anos sem praticar. Os primeiros acordes saíram imperfeitos, faltava-lhe destreza na mão direita e não pressionava bem as cordas com os dedos da outra. No entanto, aquele som tosco era aprazível. Nos seus melhores tempos, costumava ficar horas a tanger a guitarra pelo simples prazer de ouvir o timbre das cordas. Nessas alturas, dispensava a melodia; a vibração ocasional de uma nota era suficiente para o excitar e o conduzir a um delicioso torpor. Não o assustava que houvesse uma ponta de demência neste desinteresse pela harmonia ou por uma pauta. Debruçava-se muito sobre a caixa de ressonância da viola, não tanto para ouvir com distinção as notas soltas como para sentir a vibração no peito. Envolvia assim mais do que um sentido; empenhava-se fisicamente no exercício.

Ao fim de uns minutos a canção começou finalmente a desenhar-se. Não era muito original (pode um blues ser original?), mas tinha carácter. Claro que o homem não estava com ânimo para projectar a voz. Se houvesse alguém nas redondezas dificilmente perceberia que ele cantava. A dez metros o que se ouvia era um murmúrio, o tipo de ruído que um praticante de meditação oriental de cliché debitaria. A letra era previsível, paixões frustradas, a velha e estúpida história sobre o amor entre homens e mulheres. Irritou-se e a Ovation foi estatelar-se no fundo penhasco. Começava a sentir falta do aço frio da Walther.

 Esperar um desfile era a coisa errada de se fazer, mas ele passou algum tempo com o olhar marrado de um perdigueiro a pensar que isso aconteceria. Os rostos do passado a comparecerem para um último rendez-vous. Não um ajuste de contas, não era isso. Também não estava a pensar numa recapitulação post mortem, ou tempore mortis. Era algo diferente. O passado era um sítio de névoas e meias palavras. De equívocos. Parecia-lhe adequado que um dia as pessoas pudessem conversar sem o detalhe de terem de coexistir. Uma conversa franca, sem trunfos na manga, eis algo que ele sempre achara que poderia ter lugar no final do jogo, ou melhor, do confronto. Conversar abertamente era uma opção que não estava vedada aos pugilistas depois do combate. Seria absurdo que as pessoas tivessem de morrer sem experimentarem essa possibilidade. Havia conversas que ele considerava forçoso terem lugar. Tanta coisa fora escondida, tantos mal-entendidos, tantas relações ficaram pela superfície. Viver era somar enganos, fingir, e o homem fingira abundantemente. Dado que era ele que se despedia, a necessidade de reencontrar pessoas não era uma coisa para seu benefício. Sim, talvez houvesse uma questão de ego, a vontade de retocar o retrato para a posteridade, mas mais do que tudo pretendia um último gesto de honradez. Em muitos dos casos, retocar a imagem significava uma espécie de crueldade. Lamentava tanta hipocrisia de que fora capaz e retractar-se disso não seria uma herança simpática.

Mas à sua volta agora havia apenas silêncio e o ar cortante do solstício. Não lhe seria dada a oportunidade de que se achava credor. Talvez passassem por ali mais alguns pastores, entre eles a rapariga muda e pasmada e bonita à sua maneira bravia que conhecia de outras ocasiões, mas nada tinha a dizer a tais personagens. Não serviriam para lhe acolher as disposições testamentárias; entabular a última conversa com qualquer deles era um sucedâneo sem interesse. Nada teria que temer dos pastores, era certo: nem um o demoveria. Talvez ficassem por ali um bocado, a olhá-lo, aguardando o tiro e a queda, curiosos quanto ao desfecho, mas sem nenhum outro interesse nos acontecimentos. Estabelecer comércio com eles apenas serviria para atrasar um processo que estava irremediavelmente iniciado. Com a rapariga viria ainda o risco de ressuscitar na carne do homem um desejo que já não tinha vez. Restava-lhe desenrolar os últimos pensamentos e ceder à ideia mórbida de experimentar o ponto de vista dos que teriam de lidar com a recolha dos restos mortais.

 Antes de todos, apareceria Sílvia, a doce Sílvia. Ninguém a anteciparia nesta conclusão. Ele enviara um e-mail para todos os seus contactos. Dizia apenas “Adeus”. Depois do desaparecimento, seria um instante até que se cruzassem informações. O homem não era de dizer nada, muito menos por e-mail. Uma despedida com tão ampla audiência significaria necessariamente alguma coisa. Um tipo que não faz piadas não começa de repente a fazê-las. O seu adeus é de facto um adeus, nada mais nem menos do que um adeus. Como não estava próximo da reforma nem tinha férias marcadas no calendário, aquela palavrinha intrigante conduziria os pensamentos dos destinatários exactamente para onde ele pretendia. Seria então que todos descobririam a dimensão da sua ignorância sobre a vida do homem.

Todos não, Sílvia lembrar-se-ia. Ele imaginava-a a duvidar alguns momentos antes de se convencer a si própria de que tinha a melhor pista. Ela iria invocar um período da sua vida. No início, fá-lo-ia contrariada, como quem vacila antes de entrar num compartimento escuro. Depois, penetraria lentamente na penumbra, com um meio sorriso, e acenderia a sua lanterna. O feixe de luz evidenciaria muitas coisas que a incomodavam, mas devolveria ao olhar outras que ela não poderia propriamente classificar como pérfidas. Seria neste preâmbulo, quando se detivesse nesta parte das suas memórias, que Sílvia ouviria algumas campainhas. Ela e o homem tinham vezes sem conta frequentado aquele exacto varandim sobre o rio. Era uma coisa clandestina. Ninguém sonhava que um homem como ele e uma mulher como ela pudessem estender-se lado a lado, por decisão e com prazer, num sítio assim. Mas eles fizeram-no. E era então que ele executava o velho número de circo, se punha a fazer o pino à beira do precipício. Fazia-o com certo risco, mas a vertigem que ela sentia na altura vinha directamente do olhar do homem, como um presságio. E ele sublinhava-a declarando secamente que, depois de morto, haveria de querer que as suas cinzas fossem lançadas daquele local para a corrente lá no fundo. Ela achava sempre de um extremo mau gosto que ele falasse daquilo nos encontros, e dizia-o com voz aguda e mãos sobre os olhos. Ele quase se ria e provocava-a mais. Declarava que talvez não fosse necessário esse incómodo, talvez ele próprio se lançasse dali ainda antes de ser cinza. Depois faziam amor e, por algum tempo, tudo ficava bem.

 A pastora muda acabou por se assomar e as divagações do homem cessaram. Trazia o rosto vermelho e sujo do costume — talvez um resto de remelas nos olhos, os cabelos oleosos presos num rabo-de-cavalo apressado ou desajeitado —, mas só uma insensibilidade granítica lhe negaria a beleza e a sensualidade. Amarrara o impermeável gasto na cintura, o que lhe realçava o busto, que pressionava de dentro e para cima a camisola grossa de lã. Seria, por força das circunstâncias, uma rapariga rude, algo estúpida, talvez; ou então não, frequentava o colégio da vila e ao fim-de-semana retomava placidamente o seu lugar na vida selvagem da montanha. O homem não sabia nada disto. Em encontros anteriores tinham-se limitado a esta exacta contemplação mútua. Dir-se-iam dois elementos de tribos ou civilizações com origens reciprocamente nos antípodas. Ele não deixara de se sentir um pouco colono ou ocupante ou repórter de exotismos, a observar o rosto rústico como uns séculos antes se fizera em África e na América. Ela devolvia-lhe o pasmo, no seu papel de indígena curiosa. Mas o que havia nela de Pocahontas da serra rapidamente brotava à superfície da pele crestada e dura. Ou pelo menos o homem era capaz de imaginar isso. Sentia por ela um desejo erótico indubitável mas só vagamente insinuado, e não pela sinalética habitual. Não se tratava de uma Lolita: ela não exibia, mesmo no verão, mais pele do que aquela que tinha no rosto e nos punhos. Mas o olhar franco e sustentado, desafiador, os olhos inesperadamente azuis e os lábios num constante beijo infantil exerciam com suficiência o seu papel lascivo. Depois, algum dos animais do rebanho tresmalhava-se e ela abria instintivamente a boca para cumprir o seu ofício. Saía-lhe um gemido rouco que denunciava a inadequação do seu aparelho vocal. Falava com os animais, mas a língua enrolava-se de uma maneira particular naquele frasear, e o seu idioma era imperceptível para os outros humanos. Os bichos entendiam-na e retomavam o caminho certo. Neste processo, o desejo sexual do homem era transportado para uma nova dimensão. Havia algo de bizarro naquilo, possivelmente, mas no que afastaria outros machos via ele subtilezas afrodisíacas. Comparava os gemidos que a rapariga haveria de dar na cama com os de outras mulheres e não sentia que a pastora saísse diminuída do cotejo.

Nunca os separou menos do que uma dúzia de metros, mesmo quando ele fazia inflectir a sua caminhada para uma trajectória que se cruzava com a dela. A pastora sabia algumas coisas de geometria e os seus passos desenhavam figuras elípticas que lhe permitiam evitar a proximidade. Não teriam como falar, evidentemente, embora o homem acreditasse que havia suficiente comunicação entre eles. Esta fuga encenada da rapariga era apenas uma das partes do jogo, também ela parecia conduzir o seu rebanho em função do posicionamento daquele homem grave e silencioso, perscrutador. Se ele, ao invés de vir ao seu encontro, se deixava cair debaixo de alguma árvore ou encostava a uma pedra das redondezas, absorto nas suas deambulações, ela sabia detectar-lhe a presença e encontrava caminhos que os manteriam na órbita um do outro.

Não poderia haver sexo entre eles, mesmo que a questão se pusesse. Talvez ela não tivesse senão uma consciência animal deste assunto, um profundo instinto de reprodução despido de considerações eróticas. No entanto, o homem sabia-se por vezes observado por um par de grandes olhos azuis quando ocorria manter relações com Sílvia no seu local favorito. Que curiosidade aguentava a pastora ali, que aprendizagem tinha lugar? Seria que o grau de desenvolvimento intelectual que o homem lhe atribuía era equivocado e ela os espreitava com genuína e vulgar curiosidade adolescente, o desejo a despertar, ou mesmo em ebulição? Tocar-se-ia enquanto eles copulavam?

O homem já não tinha tempo para perceber a dimensão do seu preconceito, da sua ignorância. A rapariga aparecera-lhe com um olhar diferente, como certos animais que farejam a morte. Pensou ver no rosto dela um pequeno esgar de comiseração, uma súplica ainda mais muda do que ela própria. Ela viu a pistola e não teve qualquer sobressalto, como se desviasse os olhos para ali apenas para confirmar algo que já sabia. Ele pegou na arma pela coronha e acariciou o cano negro com a outra mão. Fez o esforço de sorrir levemente, como se dissesse que estava tudo bem, não era um momento dramático, não seria uma tragédia aquilo que ia ali ter lugar. Era outra coisa. A rapariga teve o que lhe pareceu um imperceptível gesto de assentimento (ou seria um encolher de ombros?) e virou-se para o gado, com um grunhido que a devolveu à existência bruta de que, ao fim e ao cabo, talvez só tivesse saído em alguns momentos na imaginação do homem. Era cada vez mais tarde, mas ele não podia deixar de ficar a olhar para as costas dela até que se tornassem indistintas todas as curvas femininas que nela existiam.

O estampido ficou a ecoar durante algum tempo no despenhadeiro. A passarada esvoaçou em pânico ou, se mais longínqua, aninhou-se nos galhos tétricos do Inverno, sem saber de onde vinha a ameaça. As cabras que subiam as arribas do lado oposto detiveram-se com os pescoços hirtos e os olhos arregalados. As crias encostaram-se-lhes nos quartos traseiros. Só um velho bode, com um avental amarrado a meio do abdómen (pendente como os órgãos sexuais cuja actividade inibia), teve o sangue-frio de retomar de imediato a degustação de arbustos e tufos. O resto do mundo pareceu fugir ou ficar expectante. A pastora sentiu certos músculos das costas retesarem-se. Aguardava-se a qualquer instante um cadáver lá no fundo, onde as águas revoltas lambiam até fazer espuma a beira da plataforma rochosa. O homem viu ou intuiu tudo isto. Tinha a testa vermelha e a arder de ter encostado ali o cano, no momento em que desviou o ângulo do disparo. Tinha também um resto de erecção — ignorava se em memória da rapariga selvagem, se como o último estertor do enforcado. Depois pôs-se de pé, deixou cair a pistola junto ao corpo e, dando um impulso como os mergulhadores, lançou-se de cabeça apontada às rochas, sem a proteger com os braços. Não houve agonia mensurável, velho receio; uma parte do crânio estilhaçou-se ao mesmo tempo que o pescoço quebrava, e o cadáver ficou em posição inconcebível. 

domingo, 25 de fevereiro de 2024

«Almoço de Domingo»

 

Simão irrompe na sala. Os meus sentidos pêsames, diz, sem clareza para os presentes. Olham-no com a curiosidade de perceber em que coisas se perde aquela cabeça. Sentidos pêsames para todos, repete Simão, e parece sair-lhe uma vénia com as palavras. E um sorriso. Simão sorri. Os presentes, inseguros, acenam imperceptivelmente, o que deixa Simão inquieto, talvez não tenha sido a melhor entrada da sua vida.

Se pudesse voltar atrás, faria as coisas de forma diferente. Entrava em passo marcial, talvez, levantando bem os joelhos, estacava em frente à mesa, batia os tacões um no outro e só então soltava a frase que escolhera. Os meus sentidos pêsames.

Mas Simão não saberia como voltar atrás. A vida é um fluxo irreversível, oh se é, não há volta atrás. A natureza e os seus defeitos são uma coisa que irrita Simão, tanta complexidade, tanta beleza — perfeição, diz-se — e não há como se retroceder, um ano, uma semana, meia hora, um minuto que seja. Simão retrocederia, não tem dúvidas nenhumas, mais de um ano, olé, talvez dois ou três, mas agora entrou na sala e as pessoas olham-no.

Não é bem um sorriso, aquilo, mas é, ainda assim, uma forma de se mostrar amistoso. Ele sabe o que se diz: que tem a expressão de um tolo, como aquelas vítimas de AVC, incapazes de imporem outras expressões aos músculos da face. Mas as pessoas precipitam-se nas suas considerações. Uma coisa é o Simão público; outra, aquilo que ele é em privado.

Este é o Simão público, acabado de irromper na sala com o seu melhor ricto facial, a expressão de quem olha os outros como se eles, predadores experientes, tivessem o sol pelas costas. Um ar de esforço, os cantos da boca levantados quase dolorosamente e os olhos semicerrados, é isto que as pessoas vêem. Sempre. Isto e os caracóis cinzentos descuidados, enriçados. E a barba de uma semana, duas. E as roupas, bem, as roupas desesperadas por um ferro de engomar e, num ponto ou noutro, por agulha e linha.

Mas Simão irrompe amistosamente e logo saúda todos os presentes. Os meus sentidos pêsames, diz, e pretende colher de imediato o efeito da sua saudação, passeando os olhos ofuscados pela sala.

Devia ter treinado mais, percebe, sem desistir da sua expressão de marca. À cabeceira da mesa, a irmã diz Simão e ele entende logo o que ela quer dizer, falhou a entrada triunfal. Simão, e é uma voz que casa ternura e raiva. Raiva ou uma tristeza profunda e revoltada. Simão, diz a irmã, e ele percebe.

De qualquer modo, já que ali está, afunda as mãos numa travessa e sai de lá com as asas de um frango. Ou de dois frangos: parecem ambas asas esquerdas.

A irmã, Simão, e ele percebe, mas não recua. O ricto e os olhos semicerrados. É um Simão amistoso, este que ele trouxe à sala. Os meus sentidos pêsames, diz para a irmã, e ela percebe, mas não perdoa. Ou perdoa, mas disfarça, estão pessoas em casa, na sala.

Simão quer dizer bom dia, diz a irmã, e ele acena. Isso. Disfarça mana, não podemos embaraçar as pessoas, fazê-las perceber as suas limitações no que se refere ao entendimento.

Ele está muito contente por nos ter aqui a todos, continua, como se o interpretasse, a irmã, olhando-o com olhos de tutora.

Simão esconde as asas dos frangos atrás das costas. Foi apanhado. Está, de facto, contente por ver aquela gente ali, na sala, mas não havia necessidade desta exposição, a sua irmã sabe que ele detesta ser o centro das atenções.

Bem, talvez não deteste assim tanto ser o centro das atenções, o que ele detesta são manifestações de afecto, sobretudo manifestações de afecto que o apanham com asas de frango nas mãos.

Agora as pessoas vão olhar para ele com complacência por ser um tipo que se alegra com visitas e não com admiração por ser alguém que sabe entrar com elegância numa sala.

Merda, mana, diz Simão, e as pessoas estremecem.

Ele olha em volta. Sim, agora colhe o impacto das suas palavras. Merda, mana, repete. Depois quer desaparecer, sente-se enfastiado. Mas toma com resignação o seu lugar na mesa e isso parece contentar toda a gente.

Simão pousa os pedaços de frango no prato à sua frente e levanta um pouco o nariz. Nota a fragrância: respira-se alívio na sala. A pouco e pouco as pessoas ignoram-no, e isso permite-lhes sentir confiança, empenharem-se nas conversas, agir com naturalidade. Talvez seja melhor assim, pensa.

O seu olhar pousa agora no guardanapo com motivos campestres, uma herança. Poderia ficar assim horas, costuma ficar assim horas, sem que isso o incomode nem um pouco, mas sabe que não é altura de ceder. Hoje é um dia importante e ele comprometeu-se, faria boa figura.

Depois de uma pausa, um momento de concentração, volta à superfície, com aquele seu ar simpático. Vai inclinando a cabeça e o sorriso para onde há mais fulgor nas conversas. Parece-lhe adequado este movimento algo pendular, à esquerda e à direita. Como se estivesse num court de ténis. As conversas educadas são assim, oscilam entre interlocutores. Pelo canto do olho espreita a irmã, Simonetta (irritante o critério baptismal dos pais deles), quer ver se ela se orgulha da sua capacidade de se interessar. Simonetta devolve-lhe um olhar cansado.

Na sua extrema cordialidade, Simão quase se esquece de comer. Mas não seria natural ele não comer, sobretudo num almoço tão importante quanto este. Interrompe, por isso, o acompanhamento dos diálogos, e durante minutos ataca o frango assado, com verdadeiro apetite.

Talvez aproveitando a sua aparente distracção, no outro topo da mesa um dos comensais aproveita para sussurrar para a orelha mais próxima. Isso não é bonito nem justo. Simão está a esforçar-se, porque não podem os outros imitá-lo? De qualquer modo, o seu compromisso é de ferro, não vai fazer um escândalo, não hoje. Ele é capaz de aguentar, não há-de ser por sua causa, mesmo que tenha razões para isso, que a harmonia se há-de quebrar.

Depois parece-lhe que o sussurro tem uma resposta, também sussurrada, e isso começa a ser demais. Simão ergue o queixo e arrota — no último momento limita-se a arrotar. A mesa estremece e os que segredaram mostram um ar bem compungido. Simão fica contente por apenas ter arrotado, seria uma pena deitar tudo a perder por uma precipitação sua. Pôr-se a chorar baixinho agora não lhe traria as palavras ditas em surdina, e medidas um pouco mais drásticas, como sair intempestivamente ou partir um prato, indisporiam a irmã e desagregariam o grupo.

Ele não queria o grupo desfeito, ter as pessoas longe era pior do que as ter a sussurrar ali ao lado. Desejava ouvir-lhes todos os dias as vozes incessantes, tac tac tac tac, como bicos de cegonha. Ali por perto, como agora, com as bocas visíveis, era quando mais se aproximavam do silêncio. Quanto mais audíveis mais silenciosas. Inofensivas. Sussurros destes, considera Simão, são ainda assim melhores do que todas as conversas de que os seus ouvidos não alcançam nem o rumor, mesmo que ele saiba melhor do que ninguém como ouvir atrás das portas, como entrar na casa das pessoas e ouvir as suas conversas. O que não suporta é imaginar a quantidade de tempo que as pessoas têm para falar longe dele. É nessas alturas que a sua cabeça se enche de outras vozes, mais dolorosas.

Durante alguns segundos, Simão pensa numa frase que encoraje os outros a manter conversas para toda a audiência. Sim, ele também pode fazer um esforço. A irmã iria apreciar um novo gesto seu, algo que complementasse a sua entrada quase-triunfal. A sua falhada-entrada-quase-triunfal.

Os enterros costumam ser bonitos ao domingo, diz, e a frase soou-lhe bem. Tem dúvidas quanto à verdade da proposição, mas não rejeita a ideia. A irmã diz baixinho Simão. Ok, não se fala de boca cheia, mana, retorque Simão, como se falassem por códigos. Sim, não se fala de boca cheia, fica contente por se entenderem a irmã. Mas Simão insiste: está um belo dia para um enterro, não acham?

A inquietação regressa à mesa. Simonetta tem um gesto de desespero, está cansada da franqueza do irmão. Se quiseres, podes comer na cozinha, diz-lhe ela, naquele tom de desistência que ele odeia. Na cozinha pode ouvir as vozes da sala e ser ele próprio, resmungar baixinho as suas considerações, a irmã sabe disso. Mas hoje ele quer fazer um esforço e conversar com as pessoas, conviver. E, na verdade, é domingo e está um belo dia para um enterro, será ele o único a notá-lo?

De qualquer modo, os sussurros acabaram. Os comensais estão silenciosos ou soltam algumas observações genéricas em tom perfeitamente razoável. Parece que as coisas podem seguir novamente um rumo aprazível para todos.

Há, no entanto, alguma rigidez na postura das pessoas. Simão não deixa de notar isso, mas pode ser só porque elas não estão habituadas a um almoço franco. As refeições em família ou entre amigos são hoje em dia raras e quando ocorrem escolhem-se restaurantes muito frequentados ou acende-se a televisão num programa ruidoso. Não há intimidade nem entrega.

Gostaria de partilhar estas considerações com Simonetta, mas ela há um bocado que pousou os talheres e o fixa com aquele olhar. Oh, não, pensa Simão. Não agora, mana. Não em frente às pessoas. Ele tinha-se retraído, não tinha? Não percas o controlo, mana.

 

Simonetta serve-se de novo de vinho, está um pouco embriagada e gosta da sensação. Está também farta. Nem é que as coisas estejam a correr mal (não estão), mas cansa-a que nunca corram bem, que sejam só suportáveis, que no fim todos sintam alívio por não ter acontecido praticamente nada e não prazer por terem passado um bom bocado. Que culpa tem ela que aquilo tivesse acontecido? Não foi Simonetta que os juntou e muito menos foi ela que os separou. De resto, não poderia jurar pela inocência do irmão. Inocência quanto às causas, bem entendido, porque as consequências ocorreram todas pela mão dele.

 

O Simão gosta de pensar que é pintor, diz de forma sombria a irmã, e Simão sente que alguns diques chegaram ao seu ponto máximo de resistência. A pintura é uma tolice, uma tolice inofensiva, como aquele seu sorriso pateta. Em volta todos guardam um silêncio vigilante. Na verdade, prossegue Simonetta depois de uma curta reflexão, essas são as únicas coisas inofensivas nele.

Não se fala de boca cheia, mana!, grita Simão do seu lado da mesa, esperançado que os códigos ainda resultem. Os olhos enchem-se-lhe de água, como os diques.

Tem jeito com as cores, o meu irmão, insiste com cinismo Simonetta, sobretudo tem jeito para não as misturar. Já viram as telas dele? São o máximo: cada uma de sua cor. Nem sei porque usa aqueles pincéis fininhos, um rolo teria o mesmo resultado. Mas ele gosta de pensar que há técnica e arte na forma como cobre minuciosamente uma tela de verde ou de azul. É hilariante. E estúpido.

Simão revolve a comida no prato com os dois talheres, como se misturasse cimento e areia numa obra. As suas bochechas estão inchadas ao jeito de alguém que sopra para um balão ou de uma criança que se recusa a respirar.

O meu irmão arranjou para si uma terapia ocupacional, declara depois Simonetta, consistiu nisso o seu último acto ajuizado. Aliás, custa perceber como ainda arranjou cabeça para decisão tão sensata.

E ri-se nervosamente.

Simão pousa os talheres e balanceia o corpo para trás e para a frente. Algo está para acontecer e ele tenta ignorar a intuição. Chora baixinho.

Mana, mana, diz, não passes para lá do arco-íris.

O arco-íris? Não é cómico o meu irmão?, solta uma gargalhada cruel Simonetta. O que é que há depois do arco-íris? Simão não lhe sabe dizer de momento, mas lembra-se que é algo mau, muito mau, porque ele já lá esteve e tem a certeza de que só voltou por milagre.

A irmã esvazia outro copo de vinho e deixa-se ficar a olhá-lo indecisa quanto aos sentimentos. De qualquer modo, não lhe apetece parar, está farta de se conter, de ser o elemento lúcido e responsável.

Não precisas de te acanhar, maninho, diz ela, todos aqui sabem o que te aconteceu. Loucura momentânea, determinou o juiz. Ela era uma cabra, também sabemos isso, até a mim exasperava, mas não valia a pena teres-lhe feito aquilo. Logo no dia em que te deixou. Inteligente era teres-lhe agradecido, grandessíssimo tonto.

Oh, não, não o devias ter dito, mana. Não a devias ter evocado. Tantas camadas de tinta que ele passou sobre aquele tempo, tela após tela a recobrir o passado e agora ela é evocada e trazida à luz do dia num almoço de amigos. Continuou a amá-la mesmo depois do último estremecimento debaixo da almofada com que a sufocou.

Simão levanta-se. A irmã pensa que ele vai buscar outra asa de frango para disfarçar o constrangimento, o imbecil. Mas é a faca de trinchar que ele traz na mão e lhe passa de imediato na garganta com a subtileza de um profissional. O sangue de Simonetta é escuro como o de um touro de liça e mistura-se com o arroz no prato como se se misturasse com a areia da arena.

Os convidados à volta da mesa olham-no, imobilizados, brancos de espanto e medo. Simão hesita mas depois despede-se, os meus sentidos pêsames. Ninguém esboça um gesto, ninguém murmura uma palavra. Ele apercebe-se de como finalmente conseguiu impressionar a audiência, mas o sabor do sucesso é amargo. Ainda assim repete, os meus sentidos pêsames, e ocorre-lhe que estas palavras poderiam agora estar a ser tomadas como uma piada, como se ele fosse dado a brincadeiras. Tanto mais que não consegue deixar cair aquele sorriso eterno.

Ao sair para o quintal das traseiras nota o sol de Verão coado pela ramada antiga de morangueiro. Não evita dizer para si mesmo que está um belo dia para um enterro. Mas depois lembra-se com incerta contrariedade que os enterros raramente ocorrem no dia do decesso. Estala os lábios com pena e mete pelo atalho da bouça, a pensar que se pudesse voltar atrás um ano ou dois fazia as coisas de forma diferente.

 

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

«Regresso»

«Alguns de nós estão sempre a querer regressar a algum lugar, como se houvesse uma cartografia da felicidade. Ou da sobrevivência. Dispomos de um conhecimento intuitivo da forma como o cérebro funciona. Não existe o mundo, existe a sua permanente construção nas nossas sinapses, a partir de sinais e estímulos, e isso nós sabemos. O regresso é uma invocação. Não queremos propriamente o que está ali onde quer que seja que regressemos. Queremos repetir as emoções que experimentámos num dado momento. Queremos regressar a um instante, não a um lugar. Pagaríamos por uma acupunctura cujas agulhas penetrassem profunda e certeiramente as partes exactas do cérebro responsáveis por reconstituir a paisagem perdida. Somos amantes de paisagens mentais, de estados de espírito. Ficamos presos a eles. Dependentes. Cobaias perfeitas e voluntárias para uma neurociência do eterno retorno.»

 Leu isto e escarneceu de si própria. Deus!, como se permitia perder tempo. O que lhe importava o que um dia tinha escrito sobre a felicidade? E a sobrevivência. O que tinha a felicidade a ver com a sobrevivência? A última vez que se debruçara sobre o assunto, ainda havia pessoas tristes a viver. Biliões delas, se lhe perguntassem. Uma imensa maioria, talvez. Anciãos, muitas. Teriam alguma vez sido felizes os centenários que a televisão exibia regularmente, com o seu ar de quem não encontra uma boa razão para estar por cá? Não, a vida não tinha uma relação directa com a felicidade, ainda que algumas vezes as duas coisas coincidissem. Vivia-se, era tudo.

Minutos depois reconciliou-se com a leitura. Estava um pouco exaltada, claro. Mas ela própria devia reconhecer que era uma viciada em regressar. Talvez não se lembrasse de ter sido particularmente feliz num cabeço como este, de onde espreitava o pôr-do-sol, mas não podia negar que o seu movimento natural era o do retorno a locais semelhantes. Não havia um sítio específico que desejasse, mas podia identificar meia dúzia de elementos topográficos reincidentes. Uma conjugação inscrita nos genes, provavelmente.

Abandonou-se um pouco a esta ideia de predestinação, de obediência a um código ancestral. Depois abanou a cabeça: os genes tratavam das questões da espécie, não do sítio aonde cada um regressava. Os homens e as mulheres não se alcandoravam em massa aos pináculos, como aves migratórias no seu percurso sazonal. Os humanos eram como dizia o livro que escrevera: reconstrutores de paisagens individuais. Escolhiam um momento da sua história pessoal e aproveitavam cada oportunidade para o invocar. O mundo apenas fornecia os elementos soltos do puzzle que eles estavam sempre a querer reconstituir. Uma fachada e uma rua, somadas a uma árvore e a uma colina em fundo, não significavam um local, mas talvez um som, um gesto, um toque ou um rosto. Indubitavelmente, uma emoção.

Sobre a sua cabeça havia um tecto de nuvens escuras, sólidas. Cobriam todo o céu visível, para trás e para os lados, excepto uma pequena faixa logo acima das serras recortadas no horizonte, à sua frente. O sol, no ocaso, aproveitava os derradeiros minutos para fazer passar por ali uns feixes dispersos que vinham incendiar pequenos círculos nas encostas de pinheiros, lá mais em baixo, ou alguns telhados das pequeníssimas aldeias em redor. Era como se ela se encontrasse numa tenda cor de cinza e desconhecidos levantassem um pouco a cobertura da entrada, com lanternas apontadas para o chão no interior. Ou como quando em pequena se escondia no fundo da cama, debaixo dos cobertores, à espera de ver surgir na cabeceira o rosto sorridente da mãe, contra a luz do dia que inundava o quarto lá fora.

Talvez devesse deixar de pendurar atributos naquela luz. Era uma epifania suficiente ver uma parte escassa do mundo pintalgada de dourados febris quando tudo o mais se esbatia no chumbo da tarde. As memórias eram agora acrescentos literários, apêndices desvirtuadores. Ela deveria concentrar-se apenas em viver o instante como ele se lhe oferecia. Nada mais.

O regresso a um local como evocação de um momento era, afinal, uma forma de esquecimento. Invocava-se um instante para esquecer o que o antecedera ou sucedera, uma fracção para esquecer o todo.


[Publicado originalmente na revista Fluir n.º 10, Janeiro de 2023]

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Função empática

O parque aqui da cidade vai sendo frequentado em dias de sol por imigrantes de diversas proveniências, todos com a mesma ânsia de natureza e ar livre que move os autóctones em domingos e dias feriados. Africanos, ucranianos, brasileiros, falantes de árabe. Hoje era uma família de asiáticos — crianças e um par de adultos, provavelmente chineses — a jogar badminton com alegria e risadas universais.

O pessimista em mim sussurra-me que não hão-de tardar a pronunciar-se contra isto as pálidas brigadas do ódio, encerradas nas suas páginas bafientas e sem sol do Facebook, com os seus maus fígados já incapazes da função empática.

Mas hoje havia o riso e o seu poder regenerador, quem sabe se curativo de doenças biliares.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Santa Úrsula e os comunistas

Reza o Martirológio Romano (catálogo de santos) que Santa Úrsula (séc. IV) morreu mártir às mãos dos hunos em Colónia, na Alemanha, acompanhada de 11.000 outras virgens. A descoberta no século XII de um vasto cemitério no exterior da muralha levou a que os católicos vissem ali confirmada a lenda e logo empilharam as ossadas numa igreja de homenagem à mártir e seu séquito.

Num momento da História, descobre-se que o exagerado número de mártires pode dever-se à interpretação errada das iniciais numa inscrição antiga, que leu «onze mil virgens» onde estaria «onze mártires virgens». Exames de ADN revelam entretanto que as ossadas encontradas são anteriores, do tempo dos romanos. Nada disso demoveu os peregrinos (nem os editores dos martirológios), que continuaram a comparecer na Igreja para louvar os 11 mil crânios e as 22 mil tíbias virgens. (Parece que não estão lá tantos ossos, mas que se há-de fazer.)

Esta edificante história — contada pelo narrador de “Elizabeth Finch”, de Julian Barnes — fez-me lembrar alguns comunistas dos nossos tempos. A História e a Ciência podem ter descoberto muitas coisas sobre a Rússia e as suas virgens, mas eles, irmanando-se no grau de devoção a velhos católicos ultramontanos, hão-de ir sempre ali peregrinar com fervor — como se as ossadas dos gulags, deste século ou do outro, fossem de louvar, não de lamentar.

Algumas reacções à morte de Alexei Navalny, não obstante o defeitos que se queiram apontar ao defunto, mostram como já era bem tempo de os comunistas actualizarem o seu próprio catálogo de santos. Ou mártires.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

[Alterações Climatéricas #6

E pronto, com uma, digamos, apaixonada adesão ao espírito de São Valentim encerro esta visita ao baú dos contos falhados.]


Dia de São Valentim

 

 Aquilo lembrava a história do flautista de Hamelin, só que não havia flautista, apenas os ratos que o seguiam, que também não eram ratos. Mas o abismo ficava naquela direcção, uma centena de metros à frente, e ele não conseguia deixar de pensar que era para ali mesmo que todos se dirigiam, para onde mais poderia ser?

Uma hora antes, encostara a bicicleta a um pinheiro e adentrara no bosque pouco denso, sentindo nas pernas a humidade das ervas altas, uma humidade estranha e fora de época. Queria fotografar algumas aves no seu habitat e escolheu uma rocha onde se podia sentar como numa poltrona, mesmo que o musgo que a cobria estivesse molhado e previsivelmente viesse a sentir isso nas nádegas. Não estava muito frio, de qualquer modo, e estes pequenos desconfortos animavam-no, permitiam-lhe alimentar uma certa arrogância de indivíduo rústico, maior do que a pálida faceta telúrica que na verdade tinha.

Tinha quase adormecido quando chegou o primeiro automóvel. Aquele era também um sítio de encontros amorosos furtivos, ele sabia-o, denunciado pelas marcas dos rodados na orla da clareira e os preservativos espalhados nas redondezas. O carro estacionou e ele não se sentiu incomodado. Mesmo que não o confessasse, as distracções eram bem-vindas. De boa vontade apontaria a objectiva como um paparazzo, se não tivesse medo das consequências que resultariam do confronto com um namorado particularmente encorpado e violento e mais rápido do que ele a correr.

Viu-os sair do veículo e colou-se mais à rocha. Não ainda por receio, mas para que o casal não interrompesse o que viera fazer. Lamentava não se ter antecipado e escolhido o outro lado da fraga, de onde podia ver sem ser visto. O parzinho deu logo com ele na sua posição pouco camuflada mas não pareceu importar-se. O rapaz contornou o carro, juntou-se à acompanhante e, dando-lhe a mão, partiu com ela tomando o sentido descendente da encosta, na direcção do desfiladeiro. As vistas dali eram famosas na região, embora naquele dia o céu encoberto não permitisse sonhar com pores-do-sol arrebatadores.

Nos vinte minutos seguintes, mais uma dúzia de automóveis acorreu à clareira. Os condutores tiveram o cuidado de estacionar as viaturas orientando-as para diferentes pontos cardeais e colaterais, mas não tão longe umas das outras que os seus proprietários parecessem incomodados com a presença alheia. De resto, demorando-se uns minutos no automóvel ou saindo de imediato, todos os pares se davam as mãos e tomavam o caminho do primeiro casal. E todos em algum momento notavam sem reacções a presença do fotógrafo, que já não de dava ao trabalho de disfarçar a curiosidade, embora se abstivesse de empunhar a máquina, ou pelo menos de a apontar naquela direcção.

Dezasseis carros depois, ele achou que aquilo era demais, que iria rebentar se não descobrisse que espécie de convenção de São Valentim era aquela, que atracção ou acordo levava quase duas dezenas de casais a estacionarem na mesma clareira e a escolherem um mesmo caminho na floresta.

Geralmente, os namorados evitavam demasiada proximidade neste tipo de encontros, sobretudo à luz do dia. Um carro nas imediações inibia o desejo e a maior parte deles não ia ali exactamente (ou só) para conversar. Havia, claro, o argumento do miradouro, local de encontros românticos, menos necessitados de reserva do que os rendez-vous passionais. Mas, ainda assim, ele estranhava aquela multidão, tanto mais que havia vários outros pontos na zona igualmente acessíveis e quase tão encantadores quanto aquele. O normal era que o terceiro ou quarto automóvel achasse o local demasiado concorrido e, dando meia volta, partisse em busca de maior sossego.

Guardou preventivamente a máquina na mochila e ele próprio se meteu pelo trilho entre pinheiros e fetos. Foi então que a parábola do flautista lhe pareceu mais viva e adequada: depois de uma volta para observar o miradouro a alguma distância, viu-o vazio, mas, subindo de seguida à plataforma rochosa, espreitou o fundo do desfiladeiro — onde trinta e dois corpos jaziam disformes e ensanguentados, alguns ainda de mãos dadas.

Nas copas dos pinheiros o vento aumentara de intensidade. Não restavam dúvidas de que o tempo estava a mudar.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

[Alterações Climatéricas #5]


A bela adormecida do Mosela

 

 O que havia com aldeias como Beilstein, à margem do Mosela, é que não facilitavam o checkout. Quando por fim conseguíamos deixar de adiar a partida estávamos tão bêbados que nos excedíamos na gorjeta, imbuíamo-nos de uma generosidade maior do que o nosso orçamento, com consequências severas para a vida dos meses seguintes.

Eram essencialmente de dois tipos os visitantes da aldeia: os que iam lá pelo vinho e todos os outros. Eu era um dos primeiros.

Não que ali o vinho fosse diferente do que era servido no resto do vale. O que o lugar tinha de particular era a atmosfera e a missão. Mais do que todas as localidades do Reno e do Mosela, a pequena Beilstein existia para nos servir de beber.

As terras ribeirinhas tinham no vinho o principal negócio, mas naquela ele era o único negócio. Beilstein existia enquanto houvesse gente a sentar-se nas suas esplanadas ou nas suas tabernas a pedir um copo de vinho. Se a região fosse visitada apenas por abstémios apreciadores de paisagem e castelos, Beilstein fechava as portas. Por falência e, sobretudo, honra ferida.

Era o sítio mais pitoresco que por ali se encontrava, com as mais graciosas casinhas de pedra ou de traves à vista, o rio a espraiar-se à sua frente num dos melhores momentos de todo o seu estético e serpenteante deslizar para o Reno. No conjunto — aldeia, vinhas, rio e o castelito no morro — Beilstein era o melhor postal entre Coblença e Tréveris. Isso mesmo atestavam os guias e os serviços de turismo.

Mas, insisto, a razão porque a terra sobrevivia às décadas e se renovava ano após ano não eram os filmes históricos que lá se faziam, nem as hordas que por lá passavam a caminho de Cochem (o melaço do turista) ou de outras localidades mais diversificadas. O que mantinha Beilstein na melhor das formas eram aqueles que, como eu, paravam ali como beduíno em oásis.

Como seria de esperar, esta minha opinião não era partilhada por todos. Havia quem parasse ali para bebericar um chá, uma água ou um sumo e se espreguiçasse nas esplanadas declarando ter encontrado um dos sítios mais acolhedores da sua passeata turística. Pessoas deste género, que puxavam das máquinas fotográficas e faziam o seu clichezito das casas, do rio, da margem oposta (essas mesmas fotos que abundam na Internet). Que se maravilhavam. Mas que, depois, quando chegava a hora de tomar a grande decisão, se metiam no carro ou montavam na bicicleta e subiam ou desciam para outras paragens.

Na verdade, Beilstein não se incomodava com a pusilanimidade do turista médio. Agradecia-a. Havia coisas que não se queria ver obrigada a fazer. Gostava que pela hora de jantar a triagem tivesse sido realizada e que os que se inscreviam para pernoitar fossem de boa estirpe, daqueles que começavam pela carta dos vinhos, dedicavam depois um instante a escolher qualquer coisa sólida para acompanhar e voltavam logo à carta como o crente ao livro sagrado.

A meio de uma manhã de Agosto o hóspede de Beilstein sai do seu quarto e instala-se numa das esplanadas com vista para o rio, com o sol pelas costas. Como é cedo, talvez beba um café a olhar as vinhas ou as casas da margem oposta. Ou talvez observe o trânsito que sobe e desce a marginal, os automobilistas cuidadosos e educados e as ternurentas famílias de ciclistas. Talvez simplesmente dormite, a fazer horas.

Do que certamente não está à espera é de ver chegar uma coluna de blindados (os temíveis Tiger) das Waffen SS e que, em dez minutos, os estabelecimentos da aldeia fiquem tomados pela arrogantes tropas de Hitler.

Pois bem, aconteceu-me a mim no mês passado. Tinha começado por um branco seco frio e umas azeitonas sem caroço (rejeitara o café). Abrira um livro de Antony Beevor numa das secções de imagens e pousava frequentes olhares interrogativos no relampejar do rio (não me lembro o que questionava). O branco seco, como soe acontecer no Mosela — mais do que na Bíblia —, multiplicou-se e ao quarto ou quinto copo fiquei de novo piegas, a choramingar por amores perdidos, ou coisa assim.

Sucede-me de vez em quando, emocionar-me com o vinho, e nessas alturas procurar razões para verter umas lágrimas enquanto cerro muito os olhos e faço um esgar com a boca. Creio que não se me pode censurar.

Mas naquele dia não foi de todo oportuno revelar-me tão sentimental. Um dos militares, depois de ter estacionado o seu panzer em contramão e ignorado a minha surpresa, quis saber porque chorava eu, o que temia. Naturalmente, não me interrogou porque sentisse alguma empatia (era um SS), mas porque se habituara a que as pessoas traíssem os seus segredos na presença daquele uniforme. Na sua opinião, se eu chorava era porque tinha algo a temer.

Claro que eu não tinha nada a temer e naquele momento tudo o que sentia era perplexidade. Não havia nada mais inadequado a Beilstein do que a rispidez nazi, apesar de estarmos na Alemanha. Quis perguntar-lhe qualquer coisa, pedir-lhe alguma espécie de esclarecimento, mas o tipo já tinha decidido o que fazer comigo e eu acabei por me esquecer do que lhe queria perguntar.

Fui levado para as traseiras de um estabelecimento que conhecia bem. Nunca entrara para aquela parte da casa e do que mais me lembro é de ter pensado que a adega era bem menos exuberante do que imaginava: numa vista de olhos pelas prateleiras detectei várias lacunas imperdoáveis. Como me deixaram sozinho por minutos e eu não tinha saca-rolhas, resolvi partir o gargalo de uma garrafa e beber o vinho coado pelo meu lenço de mão (ainda por usar, bem entendido). Mas essa decisão foi um erro, porque os nazis, quando regressaram para me buscar, imaginaram que tencionava usar a garrafa como arma, o que, na sua opinião, no mínimo traía a minha animosidade para com o regime.

Ao meio-dia e quarenta e cinco fui, portanto, encostado a uma parede coberta de hera (essa mesmo que se vê nas fotografias, do lado direito). Ainda assim, creio que não foi a garrafa partida a razão mais forte para aquilo. Talvez o esquadrão andasse algo entediado (afinal, há mais de sessenta anos que não se passava nada) e precisasse de se sentir útil. Por mim, teria ponderado colaborar, se eles tivessem sido delicados o suficiente para o sugerir. Mas, já o disse, eram nazis. Assim, mostrei-me incomodado e afirmei mesmo que dispensava a venda nos olhos. Até me tentei lembrar do que gritou o coronel von Stauffenberg instantes antes de ser fuzilado pela malograda Operação Valquíria. Mas não me ocorreu nada melhor do que o waiter! a que estava habituado. Waiter!, berrei eu, e foi-me servido um raro tinto. Reservado para os que vão morrer, sussurrou-me o empregado, condoído, talvez por ser um daqueles vinhos cor de sangue que ninguém gostava de verter em toalhas de linho.

Mas as armas não foram disparadas (doutra maneira eu não teria sobrevivido para contar a história). No último segundo, uma onda gigantesca percorreu o Mosela, uma espécie de tsunami fluvial com origem numa tromba-d’água violentíssima que caíra sobre o troço francês do rio, um desses fenómenos mutantes a que o clima estava agora sujeito. O pelotão de fuzilamento e eu próprio fomos levados pela enorme massa de água que transbordou do leito antes mesmo que a alguém ocorresse a famosa abertura de Cem Anos de Solidão.

Durante uns longos segundos rebolei naquela maré cheia de detritos e quando parei finalmente foi porque bati com as costas num dos tanques estacionados ao longo da estrada. A corrente continuava rápida, embora a onda tivesse passado, e as margens permaneciam afundadas numa das maiores cheias de que havia memória. Houve vários mortos e felizmente alguns deles eram nazis, incluindo o comandante, o que deixou a tropa desorientada e me permitiu pensar em movimentos evasivos.

Subi pela lagarta ao canhão de 88 milímetros como naquelas imagens famosas e efémeras da Primavera de Praga. Talvez o panzer pudesse avançar contra a corrente e levar-me ao hotel, mas eu não saberia como o pôr em andamento. Escalei, por isso, o muro da vinha e procurei chegar à aldeia pelo lado de cima da encosta.

Era uma desolação ver a praça inundada, as esplanadas arrasadas, o rés-do-chão das casas submerso e o seu interior saqueado pela violência da água. Nenhuma adega daquele sector da aldeia, o mais baixo e o mais rico, teve qualquer hipótese. Décadas de colheitas seleccionadas foram simplesmente pelo ralo, como restos de um banquete.

Pensei organizar com os sobreviventes da parte alta da aldeia alguma espécie de operação de salvamento, mergulhar nas adegas sujeitados por uma corda e recuperar aquilo que a corrente não tivesse levado. Mas fui distraído desta ideia pelos gritos insistentes de sete homenzinhos que vieram até mim e me puxaram pelas roupas. Parece que havia alguém em apuros, uma mulher que não acordara a tempo de evitar a inundação.

Há alguns anos que eu evitava mulheres em apuros. Era um mantra que recitava ao acordar e que me deixava feliz se ao chegar ao fim do dia o tivesse cumprido. Vivia para esse objectivo, um dia de cada vez, como os alcoólicos anónimos. Tinha, aliás, passado por uma dessas instituições (apenas para aprender o método). E o sucesso era tão grande que nos últimos tempos me era já difícil lembrar porque devia evitar mulheres em apuros.

Mas os anos de auto-condicionamento tinham agora de ser interrompidos, porque aqueles sete homenzinhos pequenos (creio que eram anões) não paravam de apelar ao que de mais humano havia em mim. A senhora fora subtraída ao seu quarto pela água, mas miraculosamente ficara presa nos ramos de uma das árvores que bordejavam o que era agora o rio. Vista dali, parecia um cadáver numa espécie de pira, só que os anões teimavam que não estava morta, apenas adormecida.

Mergulhei na corrente, que nesta parte em forma de baía era mais calma, e enquanto nadava fui-me perguntando por que raio não se tinha lançado à água nenhum daqueles sete minorcas.

Eram cinquenta metros até lá, pelo que tive tempo de reflectir. Talvez eu devesse ser menos complacente com os acontecimentos insólitos. Não era a primeira vez que a vida conspirava contra mim. Havia sobretudo que ter em conta as manobras de diversão, ocorrências sem vínculo aparente que não tinham outro objectivo senão desconcentrar-me. Estaria a ser vítima de mais uma dessas urdiduras?

A mulher não tinha aspecto de estar em apuros, tão plácida se apresentava naquele seu altar de ramos e detritos entrelaçados. Mas o que aconteceria quando ela despertasse? Resolvi, apesar de todos os sinais, ser menos supersticioso e mais magnânimo. Icei-me para o seu lado e encetei os procedimentos da técnica de reanimação. Encostei a minha boca à dela e…

Três semanas depois casámo-nos, como eu temia.


sábado, 10 de fevereiro de 2024

[Alterações Climatéricas #4]


Inundação

 

 Quando quase todos começaram a ficar amedrontados, ele parou com o tique nervoso que lhe fazia tremer o punho onde assentava o queixo, cotovelo sobre o joelho como o pensador de Rodin. Por alturas do pânico generalizado, sentiu alegria e podia tê-la manifestado com um pulo ou dois de adolescente se não estivesse demasiado ocupado a manter-se à tona da água.

As chuvas tinham sido anunciadas, mas ninguém pudera imaginar uma coisa daquelas. Excepto ele, que estava disponível para imaginar tudo o que lhe mantivesse a mente distraída. Imaginar era, aliás, o que lhe restava, já que o mundo real ficara reduzido aos vinte metros quadrados de uma cela colectiva, com raras saídas para o pátio da prisão.

Nunca ignorara que uma vida de prisioneiro seria dura demais para alguém como ele. Mas nem agora que pudera confirmar pessoalmente os horrores da penitenciária se arrependia do que fizera, caso por uma falha na sua rotina mental se deixasse pensar um pouco no assunto. Os colegas de cela tinham-no por pensador, alguém que cismava diariamente, que remoía os remorsos do que fizera ou os erros de planeamento que o tinham conduzido ali. Gozavam com ele por causa disso, como naturalmente gozariam a propósito de outra coisa qualquer. O quotidiano da prisão confirmava os seus piores receios e ele — tímido, frágil sob a falsa corpulência dos quilos a mais, e medroso — era a vítima perfeita de uma comunidade que vivia em tensão permanente.

Nas primeiras semanas, sonhara muitas vezes com a solitária, com formas de provocar a ira da direcção do presídio, uma ira que o conduzisse ao sossego do isolamento sem necessariamente o submeter a sovas demasiado violentas. Mas cedo descobriu que não existia tal coisa no sistema prisional. A doutrina em vigor falava de socialização, partilha, igualdade de tratamento e de deveres, participação na gestão do espaço comum e uma série de tretas do mesmo género. Tinha de se integrar ou conseguir morrer de um ataque cardíaco auto-infligido, já que todos os meios que permitissem o suicídio tinham sido cuidadosamente removidos e a vigilância era permanente, havia um Big Brother caridoso e pró-vida a zelar pelos detidos.

De modo que o Inferno para ele, que naquele dia não teve os recursos para disparar sobre si próprio ou presença de espírito suficiente para se lançar de um viaduto sobre o trânsito da cidade, começou ainda em vida, no momento em que entrou na penitenciária da comarca.

Bem, na verdade começou antes. Micaela era o demónio em carne e osso e era disto que ele não se arrependeria se se permitisse pensar no assunto: de lhe ter terminado com a raça.

Não foi uma decisão fácil nem rápida. No início nem era uma decisão, mas a centelha de uma ideia, a esperança vaga de que se alimentavam os seus dias. Começou por lhe desejar a morte. Uma morte natural — todos estavam sujeitos a achaques. Depois deixou de o repugnar que ela falecesse num acidente de carro. Ou de avião, já que gostava tanto de cruzar o Atlântico. Por fim, convenceu-se de que a saúde de Micaela era de ferro e que as tragédias se mantinham longe dela. A única fraqueza da mulher era ele próprio, como ela não se cansava de dizer.

Houve um tempo em que se enchia de orgulho de cada vez que ela dizia aquilo. Ele era a fraqueza de alguém como Micaela, nada menos do que isso. Depois tornou-se escravo dela e, numa fase seguinte, o bibelô de que ela punha e dispunha quando se sentia no apogeu da sua superioridade moral. Nos últimos tempos era a vítima da sua fúria, dos seus ciúmes (ele!), da sua paranóia.

Deu cabo de Micaela com uma marreta. Mas escolheu mal a arma, porque não tinha como a usar sobre si próprio, era demasiado pesada para ser brandida com eficácia contra a própria pessoa e contra o instinto de auto-preservação.

E agora ali estava ele.

A vida na prisão era um prolongamento da vida que ele tivera nos últimos tempos lá fora, com a agravante de que o número de torturadores tinha aumentado. Cada um dos condenados que lhe faziam companhia na cela gostava de o considerar, em diferentes momentos, confidente, cúmplice, mascote, criado, parceiro sexual ou saco de porrada. Oficiosamente, concluía ele, o sistema ou a vida ou os deuses lá em cima pediam-lhe que se deixasse abraçar pela esquizofrenia, mas ele não conseguia deixar de se manter lúcido.

Ah, não o tocarem, não lhe falarem, e ele não os ouvir nem os ver. Ah, estar na cela como no meio de uma rua movimentada de uma grande cidade, onde ninguém se conhece nem se fala e todos são anónimos. Ou no meio de um bosque impenetrável, no deserto, no cimo de uma colina remota. Fértil em crueldades, o sistema prisional acabou com a velha e clássica solitária, aquilo que lhe poderia salvar a vida.

E então a chuva foi subitamente anunciada e caiu, com força, perseverante, incansável. Foi no rádio dos guardas que ouviu o alerta. Claro que, apesar do tom histérico da protecção civil, ninguém esperava um dilúvio, e quando a água entrou às golfadas por baixo da porta, fazendo boiar a merda dos que insistiam em cagar nos cantos, os prisioneiros seus colegas mostraram os primeiros indícios de humanidade, de uma humanidade temente a Deus. Ele parou pela primeira vez com o tique nervoso que lhe fazia tremer o punho onde assentava o queixo.

Em menos de uma hora a água chegou à cintura dos detidos e, por mais que tivessem berrado, ninguém lhes abriu a porta, ninguém se preocupou com o seu destino. Não custava perceber que os guardas tinham abandonado as instalações ou subido aos pisos superiores para salvar a pele.

A inundação, nos seus primeiros momentos, aumentou o caos na cela. Todos praguejavam e se empurravam como se fosse possível encontrar naqueles vinte metros quadrados um culpado ou um salvador. Inevitavelmente, ele era o candidato que todos preferiam e foram-lhe exigidas explicações, soluções, e cada um dos outros lhe aplicou uma bofetada ou um soco como paga do seu silêncio.

Com o nível freático a atingir a altura do peito, os detidos subiram literalmente às paredes, agarrando-se onde puderam. Por uma vez em meses, o centro da cela tornava-se um local solitário e ele manteve-se ali, com uma alegria primitiva, recordando-se com prazer de todos os momentos na vida em que pôde estar só. No perímetro do compartimento, onde os outros tentavam encontrar formas de se elevar acima das águas, os gritos eram desesperados e ensurdecedores, mas a ele parecia-lhe que também o silêncio lhe fora finalmente concedido.

A água subiu mais um pouco e ele sentiu-se a ser erguido do chão; perdia o pé e ganhava um bem-estar quase esquecido. Mais ninguém ali sabia nadar, pelo que, no meio do pânico colectivo, ele era olhado com uma inveja inaugural e uma última raiva.

O pé-direito da cela media quatro metros, o que tornou longa a agonia geral e a ele lhe proporcionou minutos extra de solidão. Ninguém agora se atrevia a vir até ali ao centro para o incomodar. Estava só, o mundo em ebulição à sua volta e ele a ignorá-lo, a vogar e a rodar lentamente na superfície da água, entregando-se lentamente à maré com pequenos movimentos das mãos e das pernas.

Os primeiros prisioneiros, os que não conseguiam forma de subir até ao tecto, começavam já a afogar-se, e todos outros, ele incluído, tinham agora menos de trinta centímetros de espaço para respirar. Achou divertida a forma como alguns levantavam a cabeça, ofegantes, parecendo peixes a querer beijar o cimento do tecto. Outros, como ele, inclinavam a cabeça, o que o fez lembrar a sala de tribunal descrita por Kafka em O Processo. Mais ninguém dispunha da liberdade de movimentos que ele tinha, agarrados como estavam àquilo que lhes permitia segurar-se às paredes. Ele boiava em círculos cada vez maiores ao redor da cela, nadando de costas, para manter a boca fora da água. Não o preocupava o desfecho da catástrofe. Morria feliz e em liberdade.

 

Dois guardas de aspecto brutal, agarrando-o pelos cabelos, retiraram-lhe a cabeça da sanita, de novo entupida, e arrastaram-no pelo corredor. Iam mudá-lo de cela, para uma onde não corresse o risco de se afogar a si próprio. Lá fora ouvia-se a intempérie. «Nunca vi chover assim na minha vida», disse um dos guardas, com um tom preocupado. 


quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

[Alterações Climatéricas #3]


Velas benzidas

 

 Era agradável estar a ler ao jantar quando a luz falhava. Reuníamo-nos dez numa mesa que mal dava para seis, mas eu lá conseguia espaço para pousar o livro ao lado do prato. Não sermos obrigados a utilizar os dois talheres ajudava.

Nessas noites de invernia e blackout, bastante frequentes, retirávamos às apalpadelas os castiçais amolgados de alumínio da sua prateleira habitual e, se necessário, ainda usávamos o gargalo de garrafas para entalar velas extra. Os castiçais (como o termo soa antigo!) tinham sempre um coto de vela, mas havia uma altura em que se tornava necessário substituí-lo, não raro a meio do apagão. Aquele a quem calhasse a tarefa de encontrar as velas de reserva devia certificar-se de que enfiava a mão na caixa correcta, caso contrário teria de enfrentar a cólera da avó. A cólera dela vinha ao de cima sempre que alguém se baralhava na escuridão e regressava à cozinha com uma das velas benzidas a arder. As velas benzidas eram fáceis de distinguir, mais perfeitas no seu acabamento, e eram, naturalmente, sagradas, não se destinavam a iluminar.

Na maior parte das vezes não aconteciam desaires daqueles, todos tínhamos um treino de cegos, éramos capazes de encontrar no escuro os castiçais, os fósforos, as velas certas, tudo aquilo que fizesse falta no momento em que a luz nos abandonava. Mas, se calhavam de acontecer, a noite ficava ainda mais estragada, éramos obrigados a rezar a dobrar, já não só pela intempérie mas também pelo sacrilégio de acender em vão uma vela benzida.

Em certas ocasiões perguntei, assustado, se acenderíamos velas benzidas caso a trovoada fosse ainda mais insuportável, mas quem aferia os rigores do clima era a avó e o método dela de combater o mal meteorológico consistia apenas em rezar, rezar com fervor, voltar a rezar. Nunca acendia frivolamente uma vela benzida. Na verdade, estava certa: não me lembro de nenhuma tempestade com um desfecho dramático, tínhamos sobrevivido a todas. Mesmo quando os meus nervos gritavam o contrário. Mesmo quando os baldes e os alguidares que aparavam as infiltrações do vendaval transbordavam uma dúzia de vezes na mesma noite e o granizo lá fora tinha o tamanho de ovos.

Acendia-as, a avó, em certas datas evocativas, quando a mim isso me parecia supérfluo, um desperdício o próprio fósforo. Entendíamos o mundo de forma diferente, ela e eu. Eu olhava para as coisas no momento em que elas surgiam; a avó tinha costumes, efemérides, memórias, a Bíblia. Eu vivia no futuro, ela no passado. O resto da família, o presente entre nós, obedecia-lhe a toda a hora.

Não tanto quando a luz falhava. Quando a luz falhava a casa parecia finalmente ampla, havia privacidade, podiam esquecer-se de mim. O espaço comum reduzia-se àquilo que as velas iluminavam. Fora do alcance da luz existia o mundo de cada um e menos disposição para se invadir o mundo alheio. A noite recuperava uma boa parte da sua função primordial.

Sou capaz de me lembrar de algumas das leituras que fiz em noites daquelas, mas sempre que penso no assunto é o mesmo livro que evoco. Um volume de folhas grossas, amareladas, com textura e odor a fundo de baú, tomado de empréstimo na biblioteca itinerante. Um romance sobre homens pré-históricos e a sua luta para preservar o fogo. Parece demasiado adequado, bem sei, mas não houve qualquer planeamento da minha parte. Escolhi-o à sorte e estava sempre a tentar lê-lo, à espera que me mandassem interromper a leitura, porque a comer não se lia.

Depois vinha a tempestade, a luz falhava e eu podia ficar à mesa com o livro. Nessas alturas podia. Cheguei a pensar, posteriormente, que a súbita tolerância do meu vício estava relacionada com o ditado que se aplicava noutras ocasiões, quando por conveniência se queria dizer que sem testemunhas não havia pecado: o que os olhos não vêem o coração não sente. Claro que eles me podiam ver, se o quisessem mesmo, mas não se pode negar que há na meia-luz das velas sombras bastantes para usar como convenha.

A avó, no topo da mesa, tinha forte miopia e deixava de me ver. O resto da família, que me podia ver se quisesse, talvez ficasse contente por não ter de pensar no assunto. Devia ser cansativo lidar com a avó e comigo todos os dias, balançando entre um sentimento e outro. A avó só queria rezar, e eles rezavam, como não o fazer? Eu só queria ler, e se falhava a luz ninguém se importava com isso, não se notava a ausência da minha voz nas orações, no longo responso quotidiano.

 

Quando ela adoeceu numa daquelas noites sem luz, eu não tinha nada de particular em mente, apenas me ocorreu que era uma boa ocasião para recorrer ao stock de velas benzidas. Havia, de resto, uma surpreendente concordância entre o regime instituído pela avó cá em casa e o que narrava o livro que eu estava a ler, O Clã do Fogo. Nele aprendi que os anciães pré-históricos tinham um lugar de relevo nos grupos sociais e por isso eram frequentemente velados com tochas ao redor do corpo. Quer dizer, não tão frequentemente, só quando morriam. O fogo era o que de mais importante o clã tinha, e as sucessivas gerações dedicavam-se a preservar a chama. Literalmente — ninguém saberia como a reacender, se acaso a deixassem extinguir. Transportavam e alimentavam permanentemente as brasas. Era isto o que o livro tinha de fascinante e era por isso que a maior homenagem que se podia fazer aos mortos ilustres era rodeá-los de múltiplas chamas, tantas mais quanto maior fosse a importância do defunto.

Eu achava a avó importante, não se me pode negar isso. Não era aliás possível que eu não lhe reconhecesse importância. Ela era o centro da família. Tudo na casa girava em torno dela. Era indubitavelmente a cabeça do clã.

Acompanhei o resto da família quando a levaram em braços para a cama e estive tão perto da cabeceira quanto pude enquanto o médico, que atravessou o temporal, a examinou. Estava perto da cabeceira quando ela ordenou que me levassem dali, desprezando a minha vontade — mesmo se lhe faltavam as forças para outras coisas.

Depois de a avó ter adormecido e de todos nos termos finalmente deitado, eu não conseguia dormir nem deter os pensamentos. Era a primeira vez que eu via o ancião do meu próprio clã soçobrar daquele modo, a primeira vez que o ancião dos anciães (eram quase todos anciães, do meu ponto de vista) recolhia febril ao leito perante a aflição generalizada.

A luz não tinha voltado, mas eu sabia onde e como encontrar os castiçais e os fósforos, e desta vez parecia-me evidente por muitas razões que não seria repreendido por usar as velas benzidas. Mesmo que o meu domínio do fogo se revelasse incipiente e os resultados da iniciativa incertos, tendencialmente catastróficos, fatais.

A avó morreu carbonizada — mas sem testemunhas não havia pecado.