A carrinha descia o caminho de terra com o seu ar de tartaruga de lata. O motor era velho e expelia pelo escape um fumo branco estranhamente homogéneo, num fluxo regular, contínuo, sem os sobressaltos ou os soluços que seriam de esperar numa máquina daquela idade. À distância, não se via um rasto de dióxido de carbono a desvanecer-se, mas a sugestão de uma cauda de algodão que despontava da carroçaria. O motorista, de vez em quando, pisava brevemente o acelerador e o veículo dava um ronco curto, com os pneus a patinar um pouco no saibro, como uma fera das montanhas que grunhisse e esgaravatasse o solo. Um pastor apoiava os queixos no cajado, à espera que a carrinha deixasse o caminho livre para o rebanho. Um cabrito preto com o focinho branco foi roçar-lhe as pernas e ele, sem olhar, acariciou-lhe a cabeça como faria a um dos seus cães. Resultava algo insólito aquele afecto mútuo entre duas espécies que ocupavam não exactamente o mesmo lugar na cadeia alimentar. Depois o pastor retomou o passo, bradando obscenidades e batendo com cajado no chão. Quando o rebanho reagiu ao seu comando como um único corpo, ele começou a cantarolar num tom alto e descomplexado. Os dias de solidão nos montes eliminavam alguns pudores. Não havia, para ele, estranheza nenhuma em um homem cantar de forma audível, sem estar bêbado, melodias antigas e brejeiras. Um tipo que convive sobretudo consigo próprio desinteressa-se, ao fim de uns anos, de muitas das convenções sociais. Do outro lado da ravina, um milhafre observava a cena, parado numa das correntes de ar ascendentes. De vez em quando, dava involuntariamente um salto para cima, como se subisse um degrau, e então batia as asas para retomar a sua condição estática. Mas na maior parte do tempo conseguia permanecer verdadeiramente imóvel, suspenso no ar como se o tempo tivesse parado, manobrando somente, de forma imperceptível, algumas penas das pontas das asas e do rabo. Depois a corrente afrouxava ou tornava-se mais forte e ele era de novo impulsionado ou tinha de se servir das asas para evitar descer demasiado.
Era grotesco que o mundo exterior se revelasse tão bucólico e indiferente numa altura em que o homem se preparava para o deixar. A natureza não se importava nem um pouco com os estados de espírito alheios à mecânica habitual. O resto da humanidade seguia-a nesta premissa. Ele espreitava a pistola pousada nas pernas e conseguia ter por aquele pedaço de metal frio e antiquado um sentimento positivo. Sempre desejara possuir uma arma. Não como garantia de segurança, nem por fetiche (não era um daqueles tarados que atingiam paroxismos com artefactos militares). Apenas tinha consciência de que haveria um dia como este e não quereria deixar de estar na ponta de um cano quando ele chegasse. Tinha imaginado as coisas de um modo diferente, claro — ninguém nas redondezas, um dia cinzento, vazio, sem simbologias, sem afectos de espécie alguma, nem sequer aquele entre um pastor e uma cria de cabra. Mas agora tinha de lidar com isto: ter um quadro agradável e prosseguir.
A carrinha enferrujada
acabou por ser apenas uma marca leve na retina, o rebanho fazia soar as
campainhas a uma distância surpreendente (andava rápido, o rebanho), e só o
milhafre se mantinha dedicado ao seu exercício de testemunha ou assombração, servindo
simultaneamente de fiel de balança a uma velha querela entre a gravidade e certos
ventos brandamente obstinados. Não, o homem não queria acreditar que acabara de
lhe ocorrer disparar a arma na direcção do raio do pássaro. Era um pensamento
estúpido de se ter em qualquer circunstância, mas nesta era sobretudo patético,
duma comicidade dispensável. Meteu o cano na boca, como uma ameaça, mas depois
percebeu que não falara e encostou-o à têmpora. Os pensamentos obedeceram e ele
voltou a pousar a pistola. Havia que meditar num punhado de coisas e não tinha
muito tempo.
O homem fechou os olhos por uns segundos, para limpar a mente, mas o pregão indecoroso do pastor, vindo de trás da colina, chegou-lhe aos ouvidos, e não resolveria encostar neles a arma. Esperou e teve por fim silêncio. Era mais favorável, o silêncio. Trazia com ele o susto, e ele necessitava do susto para o seu empreendimento. Acercou-se mais do precipício. Estava na beira de uma garganta, no fundo da qual um ribeiro se despenhava em pequenas cascatas sucessivas; era um sítio conhecido, não havia muitos como aquele, e ele contava com isso para ser entendido — e descoberto. Depois de rebentar com os seus próprios miolos, o corpo deveria cair para o lado do abismo, e, com sorte, esmagar-se-ia numa plataforma rochosa imediatamente à superfície do leito nervoso, perfeitamente visível para quem espreitasse dali de cima. Não tencionava ter um último gesto de mau gosto, não era isso.
Outro objecto: a velha guitarra Ovation, de caixa sintética negra e abaulada na parte posterior. Iria dedilhá-la por uns minutos, como supunha que alguém no leito de morte afagaria uma amante, com dedos trémulos de amor e angústia. Talvez soletrasse também uma das suas antigas canções, um blues em que a letra não encaixava bem (métrica arrevesada). As cordas de nylon eram de uma suavidade que os dedos apreciavam. Puxou-a para junto de si, deixando a pistola por minutos na terra húmida. Sabia que aquilo iria invocar memórias, mas estava disposto a correr o risco. Na verdade, talvez o fizesse por isso mesmo.
O vento frio de
Dezembro dava-lhe na cara e ele lacrimejava. Era ridículo que só por essa razão
o fizesse e que isso lhe provocasse prazer. Usava agora as unhas curtas e
levava uma dúzia de anos sem praticar. Os primeiros acordes saíram imperfeitos,
faltava-lhe destreza na mão direita e não pressionava bem as cordas com os
dedos da outra. No entanto, aquele som tosco era aprazível. Nos seus melhores
tempos, costumava ficar horas a tanger a guitarra pelo simples prazer de ouvir
o timbre das cordas. Nessas alturas, dispensava a melodia; a vibração ocasional
de uma nota era suficiente para o excitar e o conduzir a um delicioso torpor.
Não o assustava que houvesse uma ponta de demência neste desinteresse pela
harmonia ou por uma pauta. Debruçava-se muito sobre a caixa de ressonância da
viola, não tanto para ouvir com distinção as notas soltas como para sentir a
vibração no peito. Envolvia assim mais do que um sentido; empenhava-se
fisicamente no exercício.
Ao fim de uns minutos
a canção começou finalmente a desenhar-se. Não era muito original (pode um blues ser original?), mas tinha
carácter. Claro que o homem não estava com ânimo para projectar a voz. Se
houvesse alguém nas redondezas dificilmente perceberia que ele cantava. A dez
metros o que se ouvia era um murmúrio, o tipo de ruído que um praticante de meditação
oriental de cliché debitaria. A letra era previsível, paixões frustradas, a
velha e estúpida história sobre o amor entre homens e mulheres. Irritou-se e a Ovation foi estatelar-se no fundo
penhasco. Começava a sentir falta do aço frio da Walther.
Esperar um desfile era a coisa errada de se fazer, mas ele passou algum tempo com o olhar marrado de um perdigueiro a pensar que isso aconteceria. Os rostos do passado a comparecerem para um último rendez-vous. Não um ajuste de contas, não era isso. Também não estava a pensar numa recapitulação post mortem, ou tempore mortis. Era algo diferente. O passado era um sítio de névoas e meias palavras. De equívocos. Parecia-lhe adequado que um dia as pessoas pudessem conversar sem o detalhe de terem de coexistir. Uma conversa franca, sem trunfos na manga, eis algo que ele sempre achara que poderia ter lugar no final do jogo, ou melhor, do confronto. Conversar abertamente era uma opção que não estava vedada aos pugilistas depois do combate. Seria absurdo que as pessoas tivessem de morrer sem experimentarem essa possibilidade. Havia conversas que ele considerava forçoso terem lugar. Tanta coisa fora escondida, tantos mal-entendidos, tantas relações ficaram pela superfície. Viver era somar enganos, fingir, e o homem fingira abundantemente. Dado que era ele que se despedia, a necessidade de reencontrar pessoas não era uma coisa para seu benefício. Sim, talvez houvesse uma questão de ego, a vontade de retocar o retrato para a posteridade, mas mais do que tudo pretendia um último gesto de honradez. Em muitos dos casos, retocar a imagem significava uma espécie de crueldade. Lamentava tanta hipocrisia de que fora capaz e retractar-se disso não seria uma herança simpática.
Mas à sua volta agora
havia apenas silêncio e o ar cortante do solstício. Não lhe seria dada a
oportunidade de que se achava credor. Talvez passassem por ali mais alguns
pastores, entre eles a rapariga muda e pasmada e bonita à sua maneira bravia que
conhecia de outras ocasiões, mas nada tinha a dizer a tais personagens. Não
serviriam para lhe acolher as disposições testamentárias; entabular a última
conversa com qualquer deles era um sucedâneo sem interesse. Nada teria que
temer dos pastores, era certo: nem um o demoveria. Talvez ficassem por ali um
bocado, a olhá-lo, aguardando o tiro e a queda, curiosos quanto ao desfecho,
mas sem nenhum outro interesse nos acontecimentos. Estabelecer comércio com
eles apenas serviria para atrasar um processo que estava irremediavelmente
iniciado. Com a rapariga viria ainda o risco de ressuscitar na carne do homem
um desejo que já não tinha vez. Restava-lhe desenrolar os últimos pensamentos e
ceder à ideia mórbida de experimentar o ponto de vista dos que teriam de lidar
com a recolha dos restos mortais.
Antes de todos, apareceria Sílvia, a doce Sílvia. Ninguém a anteciparia nesta conclusão. Ele enviara um e-mail para todos os seus contactos. Dizia apenas “Adeus”. Depois do desaparecimento, seria um instante até que se cruzassem informações. O homem não era de dizer nada, muito menos por e-mail. Uma despedida com tão ampla audiência significaria necessariamente alguma coisa. Um tipo que não faz piadas não começa de repente a fazê-las. O seu adeus é de facto um adeus, nada mais nem menos do que um adeus. Como não estava próximo da reforma nem tinha férias marcadas no calendário, aquela palavrinha intrigante conduziria os pensamentos dos destinatários exactamente para onde ele pretendia. Seria então que todos descobririam a dimensão da sua ignorância sobre a vida do homem.
Todos não, Sílvia lembrar-se-ia.
Ele imaginava-a a duvidar alguns momentos antes de se convencer a si própria de
que tinha a melhor pista. Ela iria invocar um período da sua vida. No início,
fá-lo-ia contrariada, como quem vacila antes de entrar num compartimento
escuro. Depois, penetraria lentamente na penumbra, com um meio sorriso, e
acenderia a sua lanterna. O feixe de luz evidenciaria muitas coisas que a
incomodavam, mas devolveria ao olhar outras que ela não poderia propriamente classificar
como pérfidas. Seria neste preâmbulo, quando se detivesse nesta parte das suas
memórias, que Sílvia ouviria algumas campainhas. Ela e o homem tinham vezes sem
conta frequentado aquele exacto varandim sobre o rio. Era uma coisa
clandestina. Ninguém sonhava que um homem como ele e uma mulher como ela pudessem
estender-se lado a lado, por decisão e com prazer, num sítio assim. Mas eles
fizeram-no. E era então que ele executava o velho número de circo, se punha a
fazer o pino à beira do precipício. Fazia-o com certo risco, mas a vertigem que
ela sentia na altura vinha directamente do olhar do homem, como um presságio. E
ele sublinhava-a declarando secamente que, depois de morto, haveria de querer
que as suas cinzas fossem lançadas daquele local para a corrente lá no fundo.
Ela achava sempre de um extremo mau gosto que ele falasse daquilo nos encontros,
e dizia-o com voz aguda e mãos sobre os olhos. Ele quase se ria e provocava-a
mais. Declarava que talvez não fosse necessário esse incómodo, talvez ele
próprio se lançasse dali ainda antes de ser cinza. Depois faziam amor e, por
algum tempo, tudo ficava bem.
A pastora muda acabou por se assomar e as divagações do homem cessaram. Trazia o rosto vermelho e sujo do costume — talvez um resto de remelas nos olhos, os cabelos oleosos presos num rabo-de-cavalo apressado ou desajeitado —, mas só uma insensibilidade granítica lhe negaria a beleza e a sensualidade. Amarrara o impermeável gasto na cintura, o que lhe realçava o busto, que pressionava de dentro e para cima a camisola grossa de lã. Seria, por força das circunstâncias, uma rapariga rude, algo estúpida, talvez; ou então não, frequentava o colégio da vila e ao fim-de-semana retomava placidamente o seu lugar na vida selvagem da montanha. O homem não sabia nada disto. Em encontros anteriores tinham-se limitado a esta exacta contemplação mútua. Dir-se-iam dois elementos de tribos ou civilizações com origens reciprocamente nos antípodas. Ele não deixara de se sentir um pouco colono ou ocupante ou repórter de exotismos, a observar o rosto rústico como uns séculos antes se fizera em África e na América. Ela devolvia-lhe o pasmo, no seu papel de indígena curiosa. Mas o que havia nela de Pocahontas da serra rapidamente brotava à superfície da pele crestada e dura. Ou pelo menos o homem era capaz de imaginar isso. Sentia por ela um desejo erótico indubitável mas só vagamente insinuado, e não pela sinalética habitual. Não se tratava de uma Lolita: ela não exibia, mesmo no verão, mais pele do que aquela que tinha no rosto e nos punhos. Mas o olhar franco e sustentado, desafiador, os olhos inesperadamente azuis e os lábios num constante beijo infantil exerciam com suficiência o seu papel lascivo. Depois, algum dos animais do rebanho tresmalhava-se e ela abria instintivamente a boca para cumprir o seu ofício. Saía-lhe um gemido rouco que denunciava a inadequação do seu aparelho vocal. Falava com os animais, mas a língua enrolava-se de uma maneira particular naquele frasear, e o seu idioma era imperceptível para os outros humanos. Os bichos entendiam-na e retomavam o caminho certo. Neste processo, o desejo sexual do homem era transportado para uma nova dimensão. Havia algo de bizarro naquilo, possivelmente, mas no que afastaria outros machos via ele subtilezas afrodisíacas. Comparava os gemidos que a rapariga haveria de dar na cama com os de outras mulheres e não sentia que a pastora saísse diminuída do cotejo.
Nunca os separou
menos do que uma dúzia de metros, mesmo quando ele fazia inflectir a sua
caminhada para uma trajectória que se cruzava com a dela. A pastora sabia
algumas coisas de geometria e os seus passos desenhavam figuras elípticas que
lhe permitiam evitar a proximidade. Não teriam como falar, evidentemente,
embora o homem acreditasse que havia suficiente comunicação entre eles. Esta
fuga encenada da rapariga era apenas uma das partes do jogo, também ela parecia
conduzir o seu rebanho em função do posicionamento daquele homem grave e
silencioso, perscrutador. Se ele, ao invés de vir ao seu encontro, se deixava
cair debaixo de alguma árvore ou encostava a uma pedra das redondezas, absorto
nas suas deambulações, ela sabia detectar-lhe a presença e encontrava caminhos
que os manteriam na órbita um do outro.
Não poderia haver
sexo entre eles, mesmo que a questão se pusesse. Talvez ela não tivesse senão
uma consciência animal deste assunto, um profundo instinto de reprodução
despido de considerações eróticas. No entanto, o homem sabia-se por vezes
observado por um par de grandes olhos azuis quando ocorria manter relações com Sílvia
no seu local favorito. Que curiosidade aguentava a pastora ali, que
aprendizagem tinha lugar? Seria que o grau de desenvolvimento intelectual que o
homem lhe atribuía era equivocado e ela os espreitava com genuína e vulgar
curiosidade adolescente, o desejo a despertar, ou mesmo em ebulição?
Tocar-se-ia enquanto eles copulavam?
O homem já não tinha tempo para perceber a dimensão do seu preconceito, da sua ignorância. A rapariga aparecera-lhe com um olhar diferente, como certos animais que farejam a morte. Pensou ver no rosto dela um pequeno esgar de comiseração, uma súplica ainda mais muda do que ela própria. Ela viu a pistola e não teve qualquer sobressalto, como se desviasse os olhos para ali apenas para confirmar algo que já sabia. Ele pegou na arma pela coronha e acariciou o cano negro com a outra mão. Fez o esforço de sorrir levemente, como se dissesse que estava tudo bem, não era um momento dramático, não seria uma tragédia aquilo que ia ali ter lugar. Era outra coisa. A rapariga teve o que lhe pareceu um imperceptível gesto de assentimento (ou seria um encolher de ombros?) e virou-se para o gado, com um grunhido que a devolveu à existência bruta de que, ao fim e ao cabo, talvez só tivesse saído em alguns momentos na imaginação do homem. Era cada vez mais tarde, mas ele não podia deixar de ficar a olhar para as costas dela até que se tornassem indistintas todas as curvas femininas que nela existiam.
O estampido ficou a ecoar durante algum tempo no despenhadeiro. A passarada esvoaçou em pânico ou, se mais longínqua, aninhou-se nos galhos tétricos do Inverno, sem saber de onde vinha a ameaça. As cabras que subiam as arribas do lado oposto detiveram-se com os pescoços hirtos e os olhos arregalados. As crias encostaram-se-lhes nos quartos traseiros. Só um velho bode, com um avental amarrado a meio do abdómen (pendente como os órgãos sexuais cuja actividade inibia), teve o sangue-frio de retomar de imediato a degustação de arbustos e tufos. O resto do mundo pareceu fugir ou ficar expectante. A pastora sentiu certos músculos das costas retesarem-se. Aguardava-se a qualquer instante um cadáver lá no fundo, onde as águas revoltas lambiam até fazer espuma a beira da plataforma rochosa. O homem viu ou intuiu tudo isto. Tinha a testa vermelha e a arder de ter encostado ali o cano, no momento em que desviou o ângulo do disparo. Tinha também um resto de erecção — ignorava se em memória da rapariga selvagem, se como o último estertor do enforcado. Depois pôs-se de pé, deixou cair a pistola junto ao corpo e, dando um impulso como os mergulhadores, lançou-se de cabeça apontada às rochas, sem a proteger com os braços. Não houve agonia mensurável, velho receio; uma parte do crânio estilhaçou-se ao mesmo tempo que o pescoço quebrava, e o cadáver ficou em posição inconcebível.