quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

[Alterações Climatéricas #6

E pronto, com uma, digamos, apaixonada adesão ao espírito de São Valentim encerro esta visita ao baú dos contos falhados.]


Dia de São Valentim

 

 Aquilo lembrava a história do flautista de Hamelin, só que não havia flautista, apenas os ratos que o seguiam, que também não eram ratos. Mas o abismo ficava naquela direcção, uma centena de metros à frente, e ele não conseguia deixar de pensar que era para ali mesmo que todos se dirigiam, para onde mais poderia ser?

Uma hora antes, encostara a bicicleta a um pinheiro e adentrara no bosque pouco denso, sentindo nas pernas a humidade das ervas altas, uma humidade estranha e fora de época. Queria fotografar algumas aves no seu habitat e escolheu uma rocha onde se podia sentar como numa poltrona, mesmo que o musgo que a cobria estivesse molhado e previsivelmente viesse a sentir isso nas nádegas. Não estava muito frio, de qualquer modo, e estes pequenos desconfortos animavam-no, permitiam-lhe alimentar uma certa arrogância de indivíduo rústico, maior do que a pálida faceta telúrica que na verdade tinha.

Tinha quase adormecido quando chegou o primeiro automóvel. Aquele era também um sítio de encontros amorosos furtivos, ele sabia-o, denunciado pelas marcas dos rodados na orla da clareira e os preservativos espalhados nas redondezas. O carro estacionou e ele não se sentiu incomodado. Mesmo que não o confessasse, as distracções eram bem-vindas. De boa vontade apontaria a objectiva como um paparazzo, se não tivesse medo das consequências que resultariam do confronto com um namorado particularmente encorpado e violento e mais rápido do que ele a correr.

Viu-os sair do veículo e colou-se mais à rocha. Não ainda por receio, mas para que o casal não interrompesse o que viera fazer. Lamentava não se ter antecipado e escolhido o outro lado da fraga, de onde podia ver sem ser visto. O parzinho deu logo com ele na sua posição pouco camuflada mas não pareceu importar-se. O rapaz contornou o carro, juntou-se à acompanhante e, dando-lhe a mão, partiu com ela tomando o sentido descendente da encosta, na direcção do desfiladeiro. As vistas dali eram famosas na região, embora naquele dia o céu encoberto não permitisse sonhar com pores-do-sol arrebatadores.

Nos vinte minutos seguintes, mais uma dúzia de automóveis acorreu à clareira. Os condutores tiveram o cuidado de estacionar as viaturas orientando-as para diferentes pontos cardeais e colaterais, mas não tão longe umas das outras que os seus proprietários parecessem incomodados com a presença alheia. De resto, demorando-se uns minutos no automóvel ou saindo de imediato, todos os pares se davam as mãos e tomavam o caminho do primeiro casal. E todos em algum momento notavam sem reacções a presença do fotógrafo, que já não de dava ao trabalho de disfarçar a curiosidade, embora se abstivesse de empunhar a máquina, ou pelo menos de a apontar naquela direcção.

Dezasseis carros depois, ele achou que aquilo era demais, que iria rebentar se não descobrisse que espécie de convenção de São Valentim era aquela, que atracção ou acordo levava quase duas dezenas de casais a estacionarem na mesma clareira e a escolherem um mesmo caminho na floresta.

Geralmente, os namorados evitavam demasiada proximidade neste tipo de encontros, sobretudo à luz do dia. Um carro nas imediações inibia o desejo e a maior parte deles não ia ali exactamente (ou só) para conversar. Havia, claro, o argumento do miradouro, local de encontros românticos, menos necessitados de reserva do que os rendez-vous passionais. Mas, ainda assim, ele estranhava aquela multidão, tanto mais que havia vários outros pontos na zona igualmente acessíveis e quase tão encantadores quanto aquele. O normal era que o terceiro ou quarto automóvel achasse o local demasiado concorrido e, dando meia volta, partisse em busca de maior sossego.

Guardou preventivamente a máquina na mochila e ele próprio se meteu pelo trilho entre pinheiros e fetos. Foi então que a parábola do flautista lhe pareceu mais viva e adequada: depois de uma volta para observar o miradouro a alguma distância, viu-o vazio, mas, subindo de seguida à plataforma rochosa, espreitou o fundo do desfiladeiro — onde trinta e dois corpos jaziam disformes e ensanguentados, alguns ainda de mãos dadas.

Nas copas dos pinheiros o vento aumentara de intensidade. Não restavam dúvidas de que o tempo estava a mudar.

2 comentários:

  1. Falhados? Qual a razão para os chamar assim? Bom, este final é mesmo negro, mas quantos filmes, quantos contos, quantas histórias não acabam assim no abismo?

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    1. Porque fracos, pelo menos assim os via na minha memória, e porque falharam a edição.

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