E pronto, com uma, digamos, apaixonada adesão ao espírito de São Valentim encerro esta visita ao baú dos contos falhados.]
Dia de São Valentim
Uma
hora antes, encostara a bicicleta a um pinheiro e adentrara no bosque pouco
denso, sentindo nas pernas a humidade das ervas altas, uma humidade estranha e fora
de época. Queria fotografar algumas aves no seu habitat e escolheu uma rocha onde se podia sentar como numa
poltrona, mesmo que o musgo que a cobria estivesse molhado e previsivelmente
viesse a sentir isso nas nádegas. Não estava muito frio, de qualquer modo, e
estes pequenos desconfortos animavam-no, permitiam-lhe alimentar uma certa
arrogância de indivíduo rústico, maior do que a pálida faceta telúrica que na
verdade tinha.
Tinha
quase adormecido quando chegou o primeiro automóvel. Aquele era também um sítio
de encontros amorosos furtivos, ele sabia-o, denunciado pelas marcas dos
rodados na orla da clareira e os preservativos espalhados nas redondezas. O
carro estacionou e ele não se sentiu incomodado. Mesmo que não o confessasse,
as distracções eram bem-vindas. De boa vontade apontaria a objectiva como um paparazzo, se não tivesse medo das
consequências que resultariam do confronto com um namorado particularmente encorpado
e violento e mais rápido do que ele a correr.
Viu-os
sair do veículo e colou-se mais à rocha. Não ainda por receio, mas para que o
casal não interrompesse o que viera fazer. Lamentava não se ter antecipado e
escolhido o outro lado da fraga, de onde podia ver sem ser visto. O parzinho
deu logo com ele na sua posição pouco camuflada mas não pareceu importar-se. O
rapaz contornou o carro, juntou-se à acompanhante e, dando-lhe a mão, partiu
com ela tomando o sentido descendente da encosta, na direcção do desfiladeiro.
As vistas dali eram famosas na região, embora naquele dia o céu encoberto não
permitisse sonhar com pores-do-sol arrebatadores.
Nos
vinte minutos seguintes, mais uma dúzia de automóveis acorreu à clareira. Os
condutores tiveram o cuidado de estacionar as viaturas orientando-as para
diferentes pontos cardeais e colaterais, mas não tão longe umas das outras que os
seus proprietários parecessem incomodados com a presença alheia. De resto,
demorando-se uns minutos no automóvel ou saindo de imediato, todos os pares se
davam as mãos e tomavam o caminho do primeiro casal. E todos em algum momento
notavam sem reacções a presença do fotógrafo, que já não de dava ao trabalho de
disfarçar a curiosidade, embora se abstivesse de empunhar a máquina, ou pelo
menos de a apontar naquela direcção.
Dezasseis
carros depois, ele achou que aquilo era demais, que iria rebentar se não
descobrisse que espécie de convenção de São Valentim era aquela, que atracção
ou acordo levava quase duas dezenas de casais a estacionarem na mesma clareira
e a escolherem um mesmo caminho na floresta.
Geralmente,
os namorados evitavam demasiada proximidade neste tipo de encontros, sobretudo
à luz do dia. Um carro nas imediações inibia o desejo e a maior parte deles não
ia ali exactamente (ou só) para conversar. Havia, claro, o argumento do
miradouro, local de encontros românticos, menos necessitados de reserva do que
os rendez-vous passionais. Mas, ainda assim, ele estranhava aquela
multidão, tanto mais que havia vários outros pontos na zona igualmente
acessíveis e quase tão encantadores quanto aquele. O normal era que o terceiro
ou quarto automóvel achasse o local demasiado concorrido e, dando meia volta,
partisse em busca de maior sossego.
Guardou preventivamente a máquina na mochila e ele próprio se meteu pelo trilho entre pinheiros e fetos. Foi então que a parábola do flautista lhe pareceu mais viva e adequada: depois de uma volta para observar o miradouro a alguma distância, viu-o vazio, mas, subindo de seguida à plataforma rochosa, espreitou o fundo do desfiladeiro — onde trinta e dois corpos jaziam disformes e ensanguentados, alguns ainda de mãos dadas.
Nas copas dos pinheiros o vento aumentara de intensidade. Não restavam dúvidas de que o tempo estava a mudar.
Falhados? Qual a razão para os chamar assim? Bom, este final é mesmo negro, mas quantos filmes, quantos contos, quantas histórias não acabam assim no abismo?
ResponderEliminarPorque fracos, pelo menos assim os via na minha memória, e porque falharam a edição.
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