quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

[Alterações Climatéricas #3]


Velas benzidas

 

 Era agradável estar a ler ao jantar quando a luz falhava. Reuníamo-nos dez numa mesa que mal dava para seis, mas eu lá conseguia espaço para pousar o livro ao lado do prato. Não sermos obrigados a utilizar os dois talheres ajudava.

Nessas noites de invernia e blackout, bastante frequentes, retirávamos às apalpadelas os castiçais amolgados de alumínio da sua prateleira habitual e, se necessário, ainda usávamos o gargalo de garrafas para entalar velas extra. Os castiçais (como o termo soa antigo!) tinham sempre um coto de vela, mas havia uma altura em que se tornava necessário substituí-lo, não raro a meio do apagão. Aquele a quem calhasse a tarefa de encontrar as velas de reserva devia certificar-se de que enfiava a mão na caixa correcta, caso contrário teria de enfrentar a cólera da avó. A cólera dela vinha ao de cima sempre que alguém se baralhava na escuridão e regressava à cozinha com uma das velas benzidas a arder. As velas benzidas eram fáceis de distinguir, mais perfeitas no seu acabamento, e eram, naturalmente, sagradas, não se destinavam a iluminar.

Na maior parte das vezes não aconteciam desaires daqueles, todos tínhamos um treino de cegos, éramos capazes de encontrar no escuro os castiçais, os fósforos, as velas certas, tudo aquilo que fizesse falta no momento em que a luz nos abandonava. Mas, se calhavam de acontecer, a noite ficava ainda mais estragada, éramos obrigados a rezar a dobrar, já não só pela intempérie mas também pelo sacrilégio de acender em vão uma vela benzida.

Em certas ocasiões perguntei, assustado, se acenderíamos velas benzidas caso a trovoada fosse ainda mais insuportável, mas quem aferia os rigores do clima era a avó e o método dela de combater o mal meteorológico consistia apenas em rezar, rezar com fervor, voltar a rezar. Nunca acendia frivolamente uma vela benzida. Na verdade, estava certa: não me lembro de nenhuma tempestade com um desfecho dramático, tínhamos sobrevivido a todas. Mesmo quando os meus nervos gritavam o contrário. Mesmo quando os baldes e os alguidares que aparavam as infiltrações do vendaval transbordavam uma dúzia de vezes na mesma noite e o granizo lá fora tinha o tamanho de ovos.

Acendia-as, a avó, em certas datas evocativas, quando a mim isso me parecia supérfluo, um desperdício o próprio fósforo. Entendíamos o mundo de forma diferente, ela e eu. Eu olhava para as coisas no momento em que elas surgiam; a avó tinha costumes, efemérides, memórias, a Bíblia. Eu vivia no futuro, ela no passado. O resto da família, o presente entre nós, obedecia-lhe a toda a hora.

Não tanto quando a luz falhava. Quando a luz falhava a casa parecia finalmente ampla, havia privacidade, podiam esquecer-se de mim. O espaço comum reduzia-se àquilo que as velas iluminavam. Fora do alcance da luz existia o mundo de cada um e menos disposição para se invadir o mundo alheio. A noite recuperava uma boa parte da sua função primordial.

Sou capaz de me lembrar de algumas das leituras que fiz em noites daquelas, mas sempre que penso no assunto é o mesmo livro que evoco. Um volume de folhas grossas, amareladas, com textura e odor a fundo de baú, tomado de empréstimo na biblioteca itinerante. Um romance sobre homens pré-históricos e a sua luta para preservar o fogo. Parece demasiado adequado, bem sei, mas não houve qualquer planeamento da minha parte. Escolhi-o à sorte e estava sempre a tentar lê-lo, à espera que me mandassem interromper a leitura, porque a comer não se lia.

Depois vinha a tempestade, a luz falhava e eu podia ficar à mesa com o livro. Nessas alturas podia. Cheguei a pensar, posteriormente, que a súbita tolerância do meu vício estava relacionada com o ditado que se aplicava noutras ocasiões, quando por conveniência se queria dizer que sem testemunhas não havia pecado: o que os olhos não vêem o coração não sente. Claro que eles me podiam ver, se o quisessem mesmo, mas não se pode negar que há na meia-luz das velas sombras bastantes para usar como convenha.

A avó, no topo da mesa, tinha forte miopia e deixava de me ver. O resto da família, que me podia ver se quisesse, talvez ficasse contente por não ter de pensar no assunto. Devia ser cansativo lidar com a avó e comigo todos os dias, balançando entre um sentimento e outro. A avó só queria rezar, e eles rezavam, como não o fazer? Eu só queria ler, e se falhava a luz ninguém se importava com isso, não se notava a ausência da minha voz nas orações, no longo responso quotidiano.

 

Quando ela adoeceu numa daquelas noites sem luz, eu não tinha nada de particular em mente, apenas me ocorreu que era uma boa ocasião para recorrer ao stock de velas benzidas. Havia, de resto, uma surpreendente concordância entre o regime instituído pela avó cá em casa e o que narrava o livro que eu estava a ler, O Clã do Fogo. Nele aprendi que os anciães pré-históricos tinham um lugar de relevo nos grupos sociais e por isso eram frequentemente velados com tochas ao redor do corpo. Quer dizer, não tão frequentemente, só quando morriam. O fogo era o que de mais importante o clã tinha, e as sucessivas gerações dedicavam-se a preservar a chama. Literalmente — ninguém saberia como a reacender, se acaso a deixassem extinguir. Transportavam e alimentavam permanentemente as brasas. Era isto o que o livro tinha de fascinante e era por isso que a maior homenagem que se podia fazer aos mortos ilustres era rodeá-los de múltiplas chamas, tantas mais quanto maior fosse a importância do defunto.

Eu achava a avó importante, não se me pode negar isso. Não era aliás possível que eu não lhe reconhecesse importância. Ela era o centro da família. Tudo na casa girava em torno dela. Era indubitavelmente a cabeça do clã.

Acompanhei o resto da família quando a levaram em braços para a cama e estive tão perto da cabeceira quanto pude enquanto o médico, que atravessou o temporal, a examinou. Estava perto da cabeceira quando ela ordenou que me levassem dali, desprezando a minha vontade — mesmo se lhe faltavam as forças para outras coisas.

Depois de a avó ter adormecido e de todos nos termos finalmente deitado, eu não conseguia dormir nem deter os pensamentos. Era a primeira vez que eu via o ancião do meu próprio clã soçobrar daquele modo, a primeira vez que o ancião dos anciães (eram quase todos anciães, do meu ponto de vista) recolhia febril ao leito perante a aflição generalizada.

A luz não tinha voltado, mas eu sabia onde e como encontrar os castiçais e os fósforos, e desta vez parecia-me evidente por muitas razões que não seria repreendido por usar as velas benzidas. Mesmo que o meu domínio do fogo se revelasse incipiente e os resultados da iniciativa incertos, tendencialmente catastróficos, fatais.

A avó morreu carbonizada — mas sem testemunhas não havia pecado.

 

 


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