Velas benzidas
Nessas
noites de invernia e blackout,
bastante frequentes, retirávamos às apalpadelas os castiçais amolgados de
alumínio da sua prateleira habitual e, se necessário, ainda usávamos o gargalo
de garrafas para entalar velas extra. Os castiçais (como o termo soa antigo!)
tinham sempre um coto de vela, mas havia uma altura em que se tornava
necessário substituí-lo, não raro a meio do apagão. Aquele a quem calhasse a
tarefa de encontrar as velas de reserva devia certificar-se de que enfiava a
mão na caixa correcta, caso contrário teria de enfrentar a cólera da avó. A
cólera dela vinha ao de cima sempre que alguém se baralhava na escuridão e
regressava à cozinha com uma das velas benzidas a arder. As velas benzidas eram
fáceis de distinguir, mais perfeitas no seu acabamento, e eram, naturalmente,
sagradas, não se destinavam a iluminar.
Na
maior parte das vezes não aconteciam desaires daqueles, todos tínhamos um
treino de cegos, éramos capazes de encontrar no escuro os castiçais, os
fósforos, as velas certas, tudo aquilo que fizesse falta no momento em que a
luz nos abandonava. Mas, se calhavam de acontecer, a noite ficava ainda mais
estragada, éramos obrigados a rezar a dobrar, já não só pela intempérie mas
também pelo sacrilégio de acender em vão uma vela benzida.
Em
certas ocasiões perguntei, assustado, se acenderíamos velas benzidas caso a
trovoada fosse ainda mais insuportável, mas quem aferia os rigores do clima era
a avó e o método dela de combater o mal meteorológico consistia apenas em
rezar, rezar com fervor, voltar a rezar. Nunca acendia frivolamente uma vela
benzida. Na verdade, estava certa: não me lembro de nenhuma tempestade com um
desfecho dramático, tínhamos sobrevivido a todas. Mesmo quando os meus nervos
gritavam o contrário. Mesmo quando os baldes e os alguidares que aparavam as infiltrações
do vendaval transbordavam uma dúzia de vezes na mesma noite e o granizo lá fora
tinha o tamanho de ovos.
Acendia-as,
a avó, em certas datas evocativas, quando a mim isso me parecia supérfluo, um
desperdício o próprio fósforo. Entendíamos o mundo de forma diferente, ela e
eu. Eu olhava para as coisas no momento em que elas surgiam; a avó tinha
costumes, efemérides, memórias, a Bíblia. Eu vivia no futuro, ela no passado. O
resto da família, o presente entre nós, obedecia-lhe a toda a hora.
Não
tanto quando a luz falhava. Quando a luz falhava a casa parecia finalmente
ampla, havia privacidade, podiam esquecer-se de mim. O espaço comum reduzia-se
àquilo que as velas iluminavam. Fora do alcance da luz existia o mundo de cada
um e menos disposição para se invadir o mundo alheio. A noite recuperava uma
boa parte da sua função primordial.
Sou
capaz de me lembrar de algumas das leituras que fiz em noites daquelas, mas
sempre que penso no assunto é o mesmo livro que evoco. Um volume de folhas
grossas, amareladas, com textura e odor a fundo de baú, tomado de empréstimo na
biblioteca itinerante. Um romance sobre homens pré-históricos e a sua luta para
preservar o fogo. Parece demasiado adequado, bem sei, mas não houve qualquer
planeamento da minha parte. Escolhi-o à sorte e estava sempre a tentar lê-lo, à
espera que me mandassem interromper a leitura, porque a comer não se lia.
Depois
vinha a tempestade, a luz falhava e eu podia ficar à mesa com o livro. Nessas
alturas podia. Cheguei a pensar, posteriormente, que a súbita tolerância do meu
vício estava relacionada com o ditado que se aplicava noutras ocasiões, quando
por conveniência se queria dizer que sem testemunhas não havia pecado: o que os olhos não vêem o coração não sente.
Claro que eles me podiam ver, se o quisessem mesmo, mas não se pode negar que
há na meia-luz das velas sombras bastantes para usar como convenha.
A
avó, no topo da mesa, tinha forte miopia e deixava de me ver. O resto da
família, que me podia ver se quisesse, talvez ficasse contente por não ter de
pensar no assunto. Devia ser cansativo lidar com a avó e comigo todos os dias,
balançando entre um sentimento e outro. A avó só queria rezar, e eles rezavam,
como não o fazer? Eu só queria ler, e se falhava a luz ninguém se importava com
isso, não se notava a ausência da minha voz nas orações, no longo responso
quotidiano.
Quando
ela adoeceu numa daquelas noites sem luz, eu não tinha nada de particular em
mente, apenas me ocorreu que era uma boa ocasião para recorrer ao stock de velas benzidas. Havia, de
resto, uma surpreendente concordância entre o regime instituído pela avó cá em
casa e o que narrava o livro que eu estava a ler, O Clã do Fogo. Nele aprendi que os anciães pré-históricos tinham um
lugar de relevo nos grupos sociais e por isso eram frequentemente velados com
tochas ao redor do corpo. Quer dizer, não tão frequentemente, só quando
morriam. O fogo era o que de mais importante o clã tinha, e as sucessivas
gerações dedicavam-se a preservar a chama. Literalmente — ninguém saberia como
a reacender, se acaso a deixassem extinguir. Transportavam e alimentavam
permanentemente as brasas. Era isto o que o livro tinha de fascinante e era por
isso que a maior homenagem que se podia fazer aos mortos ilustres era rodeá-los
de múltiplas chamas, tantas mais quanto maior fosse a importância do defunto.
Eu
achava a avó importante, não se me pode negar isso. Não era aliás possível que
eu não lhe reconhecesse importância. Ela era o centro da família. Tudo na casa
girava em torno dela. Era indubitavelmente a cabeça do clã.
Acompanhei
o resto da família quando a levaram em braços para a cama e estive tão perto da
cabeceira quanto pude enquanto o médico, que atravessou o temporal, a examinou.
Estava perto da cabeceira quando ela ordenou que me levassem dali, desprezando
a minha vontade — mesmo se lhe faltavam as forças para outras coisas.
Depois
de a avó ter adormecido e de todos nos termos finalmente deitado, eu não
conseguia dormir nem deter os pensamentos. Era a primeira vez que eu via o
ancião do meu próprio clã soçobrar daquele modo, a primeira vez que o ancião
dos anciães (eram quase todos anciães, do meu ponto de vista) recolhia febril ao
leito perante a aflição generalizada.
A
luz não tinha voltado, mas eu sabia onde e como encontrar os castiçais e os
fósforos, e desta vez parecia-me evidente por muitas razões que não seria
repreendido por usar as velas benzidas. Mesmo que o meu domínio do fogo se
revelasse incipiente e os resultados da iniciativa incertos, tendencialmente
catastróficos, fatais.
A
avó morreu carbonizada — mas sem testemunhas não havia pecado.
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