quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

«Regresso»

«Alguns de nós estão sempre a querer regressar a algum lugar, como se houvesse uma cartografia da felicidade. Ou da sobrevivência. Dispomos de um conhecimento intuitivo da forma como o cérebro funciona. Não existe o mundo, existe a sua permanente construção nas nossas sinapses, a partir de sinais e estímulos, e isso nós sabemos. O regresso é uma invocação. Não queremos propriamente o que está ali onde quer que seja que regressemos. Queremos repetir as emoções que experimentámos num dado momento. Queremos regressar a um instante, não a um lugar. Pagaríamos por uma acupunctura cujas agulhas penetrassem profunda e certeiramente as partes exactas do cérebro responsáveis por reconstituir a paisagem perdida. Somos amantes de paisagens mentais, de estados de espírito. Ficamos presos a eles. Dependentes. Cobaias perfeitas e voluntárias para uma neurociência do eterno retorno.»

 Leu isto e escarneceu de si própria. Deus!, como se permitia perder tempo. O que lhe importava o que um dia tinha escrito sobre a felicidade? E a sobrevivência. O que tinha a felicidade a ver com a sobrevivência? A última vez que se debruçara sobre o assunto, ainda havia pessoas tristes a viver. Biliões delas, se lhe perguntassem. Uma imensa maioria, talvez. Anciãos, muitas. Teriam alguma vez sido felizes os centenários que a televisão exibia regularmente, com o seu ar de quem não encontra uma boa razão para estar por cá? Não, a vida não tinha uma relação directa com a felicidade, ainda que algumas vezes as duas coisas coincidissem. Vivia-se, era tudo.

Minutos depois reconciliou-se com a leitura. Estava um pouco exaltada, claro. Mas ela própria devia reconhecer que era uma viciada em regressar. Talvez não se lembrasse de ter sido particularmente feliz num cabeço como este, de onde espreitava o pôr-do-sol, mas não podia negar que o seu movimento natural era o do retorno a locais semelhantes. Não havia um sítio específico que desejasse, mas podia identificar meia dúzia de elementos topográficos reincidentes. Uma conjugação inscrita nos genes, provavelmente.

Abandonou-se um pouco a esta ideia de predestinação, de obediência a um código ancestral. Depois abanou a cabeça: os genes tratavam das questões da espécie, não do sítio aonde cada um regressava. Os homens e as mulheres não se alcandoravam em massa aos pináculos, como aves migratórias no seu percurso sazonal. Os humanos eram como dizia o livro que escrevera: reconstrutores de paisagens individuais. Escolhiam um momento da sua história pessoal e aproveitavam cada oportunidade para o invocar. O mundo apenas fornecia os elementos soltos do puzzle que eles estavam sempre a querer reconstituir. Uma fachada e uma rua, somadas a uma árvore e a uma colina em fundo, não significavam um local, mas talvez um som, um gesto, um toque ou um rosto. Indubitavelmente, uma emoção.

Sobre a sua cabeça havia um tecto de nuvens escuras, sólidas. Cobriam todo o céu visível, para trás e para os lados, excepto uma pequena faixa logo acima das serras recortadas no horizonte, à sua frente. O sol, no ocaso, aproveitava os derradeiros minutos para fazer passar por ali uns feixes dispersos que vinham incendiar pequenos círculos nas encostas de pinheiros, lá mais em baixo, ou alguns telhados das pequeníssimas aldeias em redor. Era como se ela se encontrasse numa tenda cor de cinza e desconhecidos levantassem um pouco a cobertura da entrada, com lanternas apontadas para o chão no interior. Ou como quando em pequena se escondia no fundo da cama, debaixo dos cobertores, à espera de ver surgir na cabeceira o rosto sorridente da mãe, contra a luz do dia que inundava o quarto lá fora.

Talvez devesse deixar de pendurar atributos naquela luz. Era uma epifania suficiente ver uma parte escassa do mundo pintalgada de dourados febris quando tudo o mais se esbatia no chumbo da tarde. As memórias eram agora acrescentos literários, apêndices desvirtuadores. Ela deveria concentrar-se apenas em viver o instante como ele se lhe oferecia. Nada mais.

O regresso a um local como evocação de um momento era, afinal, uma forma de esquecimento. Invocava-se um instante para esquecer o que o antecedera ou sucedera, uma fracção para esquecer o todo.


[Publicado originalmente na revista Fluir n.º 10, Janeiro de 2023]

Sem comentários:

Enviar um comentário