domingo, 23 de outubro de 2022

«Porque fazer hoje, se pode ser depois?»
Por definição, esta maneira de ser ainda nos vai levar longe.

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Metamorfose

Do outro lado da esplanada senta-se uma septuagenária com ar frágil. Imagino-a à espera do chá com bolo, como outras que frequentam o sítio, algumas prestes a adentrarem no labirinto de Alzheimer.
Minutos depois volto a olhar e noto que à sua frente tem um café e um copo de água e que está a retirar um cigarro do pacote, com gestos precisos, habituados e elegantes. À primeira baforada, que lança erguendo uma inesperada cabeça de femme fatale, está já completa a metamorfose: é agora uma veterana agente da CIA, com um ar determinado e firme, duro, controlando remota e friamente operações secretas, quiçá a abdução de Putin.

domingo, 9 de outubro de 2022

Os anos 20, outra vez

Na história nacional da infâmia (esperemos que algum dia se possa fazer), encontraremos dois momentos premonitoriamente sinistros protagonizados pelo PSD. O primeiro aconteceu na noite das últimas presidenciais, quando um Rui Rio histérico celebrou mais os bons resultados de André Ventura e os maus da esquerda bloquista e comunista do que a vitória do seu correligionário. O segundo teve lugar há poucos dias, quando Montenegro pedinchou ao Presidente da Assembleia um lugar de vice-presidente para o Chega.
Repete-se a atracção fatal da direita pelo abismo da extrema-direita que geralmente antecede e prepara o fascismo. Está tudo na História, a de há um século e a que se desenrola hoje perante os nossos olhos, na Europa, nos EUA, no Brasil. Leitura aconselhada: Como Travar o Fascismo, de Paul Mason.

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Feriado no parque

A grande vertente relvada que se inclina para o rio nega a ideia de parque, está vazia, silenciosa, parada debaixo do Sol como se alguém tivesse congelado um momento no tempo sem humanidade. As pessoas, dá-se conta depois, existem e estão distribuídas em grupos de dois a quatro na fileira de bancos que acompanham a margem, distanciados entre si uns vinte metros. Da perspectiva em que se vêem, os bancos parecem estações de uma linha de metro e as pessoas neles, sem já saberem o que fazer a um feriado, matam o tempo enquanto esperam — figuras de um último quadro de Hopper movendo apenas imperceptivelmente indicadores e polegares nos seus ecrãs tácteis.

terça-feira, 4 de outubro de 2022

"Hungry like the Wolf"

O enredo do filme, uma reconstituição histórica, passa-se em 1979/1980 e na banda sonora ouve-se em dois momentos a canção “Hungry Like the Wolf”, dos Duran Duran, lançada apenas em 1982. Uma imprecisão de somenos, a banda sonora não é parte dos factos. E havia decerto maneiras menos agradáveis de falhar o rigor histórico. 

domingo, 2 de outubro de 2022

Casais 2 - Scroll around

O segundo casal chega de carro e estaciona recatadamente, mas sem romantismo, ignorando as vistas. Quando desligam o motor, ambos debruçam o rosto sobre os seus pequenos ecrãs, não sei se num scroll up and down como prelúdio erótico ou se porque simplesmente a viagem para ali os manteve demasiado tempo afastados das suas ligações afectivas.

Casais 1 - Woodstock

Saem sorridentes a cheirar a marijuana de uma zona que imaginei lamacenta, ele em tronco nu, t-shirt numa rodilha a pender-lhe do cinto, barbas hirsutas e rabo-de-cavalo; ela com vestido comprido e rendado de rapariga em flor, óculos redondos, gancho no cabelo e bolsa de palha ao ombro. Espreitei-lhes por cima das cabeças a ver se havia um Woodstock ali atrás, mas só vi silêncio e pó de oiro, e o vestido, reparei depois, vinha imaculado.

Tempo enredado

De um lado, muros de pedra antigos e pequenas árvores que por serem autóctones e de folhas ríspidas parecem também antigas, tudo banhado por sol e sombras de velhos fins de Verão; do outro, uma rapariga em trajes desportivos que fala para um pequeno ecrã como personagem de Espaço 1999 ou Star Trek e uma voz que lhe responde, com uma cara que não vejo, talvez do outro lado do mundo ou de um planeta distante, quem sabe. Ia dizer passado e futuro à beira-rio mas por ter invocado séries televisivas de outros fins de Verão ocorre-me que é apenas o tempo a enredar-se na sua própria fábula.