Ao meu monte de Verão vem cada domingo um soldado da GNR auxiliar as
pessoas que tenham hora marcada. Não, não se trata de substituir o cassetete
pela senha numerada, trocar a ronda pela banqueta de tabelião. O que se passa é
que o militar complementa o pré exercendo de bruxo ao fim-de-semana. E a mim
dá-me pena ver todas aquelas pessoas a aguardar vez. Dá-me pena porque, tirando
o meu alpendre, não há muitas sombras por aqui. Elas têm de esperar nos carros,
encolhendo-os sob os ramos de escassas oliveiras, enquanto lá dentro, no
gabinete do místico, é lida a sorte do cidadão que as antecede. Imagino o
nervosismo, a dúvida, a angústia, a raiva daqueles que, chegando em últimos, esperam
na estrada ganhar vez na próxima oliveira livre. Depois disso tudo é fácil: não
importa o futuro se se tem a oportunidade de o aguardar à sombra.
terça-feira, 31 de julho de 2012
Diário de férias (7)
Aprecio o gregarismo dos outros — na medida em que isso liberta espaço
na praia. Na Praia Grande, as pessoas tendem a amontoar-se nas zonas dos dois
acessos principais, a largas centenas de metros um do outro, libertando uma
grande faixa intermédia para os de nós que não se importam de andar um pouco ou
pretendem ficar nus. É bonito ver a humanidade assim dividida: as massas a disputar
um lugar ao sol no seu reduzido pedaço de areia e a gente que caminha e/ou se
despe a partilhar harmoniosa e folgadamente uma grande quantidade de
território.
Visto do mar, de onde as pessoas nos parecem insectos, dir-se-ia que
alguém despejou nos extremos da Praia Grande uma boa quantidade de qualquer
coisa, qualquer coisa que só a entomologia, um estudo apurado da natureza dos
insectos poderá determinar.
***
***
Quando era novo costumava passar o dia ao sol e em consequência era o “preto”
da família. Agora corro poucos riscos de ter um grande bronze. Não me entendam
mal: sei um pouco de estar de papo para o ar sem fazer nada (J), mas na praia isso não
é possível, a não ser que não nos importemos com escaldões e melanomas. Quando
nos importamos, se não passarmos o tempo a ajustar o guarda-sol (ou a ajustar
nossa carcaça em função dele), estaremos certamente ocupados (e besuntados) a
repor a camada de protector solar. Ora, isso não é a minha ideia de não fazer
nada.
É por esta e outras razões que hoje sou um homem das sombras.
segunda-feira, 30 de julho de 2012
À sombra de uma azinheira
Férias devia ser o estado natural do Homem. Nenhuma sociedade, nenhum
partido que não tenha este objectivo último merece o meu respeito. O trabalho é
uma digna forma de se chegar às férias, mas apenas isso. A sra. Merkel e os
calvinistas do PSD/CDS devem ser instrumentais e depois expulsos. Concordemos
com eles, mas só transitoriamente. O grande desígnio nacional deve ser tornarmo-nos
brasileiros. No mínimo, mudarmo-nos para o Brasil no Inverno. De resto, a
filosofia ocorre em duas circunstâncias: clima grego ou clima teutónico. Alentejo
para os sábios, Alemanha para os neuróticos e intrincados sucedâneos. Sejamos
genuínos.
Diário de férias (6)
Numa ocasião, pedi que cancelassem o meu pedido e abandonei de seguida um
restaurante onde alguém mudou a televisão de canal sem consultar os comensais.
Foi um gesto de indignação e protesto genericamente legítimo, mas no meu caso
de certo modo exagerado, de uma grandiloquência desnecessária. Eu era cliente
diário da casa e, ainda que naquela noite estivesse de olhos na TV, quase
sempre lia um jornal ou um livro enquanto comia. Quero dizer, ninguém estava à
espera que de entre os clientes fosse eu
a importar-me com o canal que o estabelecimento sintonizava.
Tinham passado de um programa informativo para um jogo de futebol — e naquela
época eu era suficientemente cândido e voluntarioso para me tentar opor ao
fascismo da bola, à ditadura das massas simpatizantes.
Entretanto soçobrei ao pessimismo, ao cinismo, procuro não ser
proselitista. O que não facilita a vida, diga-se. Tentarmos ser livres
passivamente poupa-nos a discussões inúteis, ao embaraço e à maçada de sermos
sempre reivindicativos e queixosos, audivelmente, iradamente — mas reduz-nos as
opções. Por vezes, deixa-nos mesmo sem opções na hora de sair, dado o carácter
eminentemente ademocrático, ferozmente contra soluções alternativas, da
sociedade de massas. Observemos os carneiros ali no campo: para onde vai um vão
todos. So much for human superiority.
Contudo, há ainda em mim uma nostalgia bombista. Não que alguma vez o tivesse
sido. Infelizmente nunca tive essa coragem e essa eloquência. É uma nostalgia
do tempo em que aspirava a uma grande carreira na arte da, digamos,
argumentação.
Sexta-feira demo-nos ao trabalho de fazer uns quilómetros para jantar em
nenhures, fiados em sugestão de gente amiga. Boa comida em conta. Lá chegados, desilusão:
numa província onde a boa arquitectura tradicional sobrevive e em muitos casos
domina, sai-nos uma vivenda de dois pisos que tanto ficaria mal em Trás-os-Montes como no Minho. No
Alentejo fica péssima. Desilusão: o famoso prato (nada de transcendental) tem
de se encomendar com antecedência. Desilusão: já nem sequer há batatas
gratinadas. Comemos uma enorme costeleta (não fosse a Senhora da Graça de Padrões junto a
terra de mineiros) e estava bastante boa — mas também perto do meu alpendre de
Verão há onde se comam boas costeletas.
A nostalgia bombista acometeu-me no momento em que de repente a sintonia
da televisão (sim, O Pereira é um desses estabelecimentos que têm televisão)
foi mudada para, adivinharam, um jogo de futebol. Na sala de jantar estávamos
nós e uma família interessada na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos. No
bar, com o comando na mão apontado a outro ecrã, estava o dono da casa.
Mudar para um jogo de futebol é o que se espera de um bom português e o
acto, a atenção, o sentido de oportunidade, tudo isso é aplaudido em coro pela
pátria — munida de bandeirinhas chinesas e essa vuvuzela a que chamam garganta. Ao sr. Pereira
jamais teria corrido estar a ser indelicado, deselegante, desrespeitador da sua
clientela. Consigo mesmo imaginá-lo enfastiado, ou talvez até pressuroso, a
procurar um jogo de futebol, não para ele, mas para nos servir de extra, como quem cumpre um dever
ou vai mais além e mostra generosidade.
Tanta generosidade aqueceu-me o espírito, como o Vesúvio antes de cuspir
sobre Pompeia. No entanto, em vez de fazer um favor à arquitectura e simultaneamente
vingar todos os que gostam de batatas gratinadas — implodindo O Pereira —, saí ordeiramente, portuguesmente,
pagando a conta. O protesto, clamoroso, ficou apenas na recusa de deixar
gorjeta — penalizando a única pessoa que esboçou desagrado perante a bruteza de macho luso do patrão, a empregada.
Rememorando agora o jantar na sombra do meu alpendre, quando o momento
me parece tão distante quanto em geral me parece a humanidade, a minha complacência
foi por instantes substituída pelo remorso. Ah, que saudades de ter sido cândido,
voluntarioso — e bombista.
sábado, 28 de julho de 2012
Diário de férias (5)
Nem mesmo na paisagem topograficamente benévola do Alentejo as ondas
rádio logram chegar a todo o lado. Com os quilómetros na estrada perde-se por
vezes a sintonia da estação que se está a ouvir em prol de um veículo de regionalismo.
Sabemos que estamos a ouvir uma rádio local pela música pitoresca ou foleira, pelo
sotaque não lisboeta mas mimético dos
apresentadores ou pela publicidade, também ela uma irritante imitação de
irritantes fórmulas. Geralmente processamos esta informação em dois segundos e,
se não nos toma um impulso antropológico, os dedos mexem-se rápido na busca de
uma sintonia mais favorável. Nunca garantida, mesmo que captemos claras e
intensas todas as frequências da urbe.
Há um vago sentimento de invasão de privacidade quando na rádio local
ouvimos certos programas de conversas com os ouvintes. A familiaridade entre
locutor e audiência e a particularidade dos assuntos deixam-nos à porta, ligeiramente
ruborizados ou soltando gargalhadinhas, travessas ou complacentes.
Na noite de quinta-feira falava o Dr. X — voz suave, tímida, de
seminário ou sacristia, com nuances pedagógicas de psicólogo hertziano em turno
de noite —, não contraditoriamente rodeado de risadas femininas. Estas eram simultaneamente
domésticas e provocadoras, hesitando entre o à-vontade da sala de estar e a
cumplicidade do recreio ou a excitação transgressora do território novo. O
telefonema era de uma senhora, provavelmente amiga ou conhecida das que estavam
no estúdio. Antes de desligar, passou ao marido, que tinha uma pergunta a
fazer. Ouviu-se o chamamento e o marido veio de lá de dentro, a voz jovial em
crescendo enquanto passava do corredor para a sala ou para a cozinha. Ele
queria saber se o auditório já tinha a resposta para a adivinha da semana.
Percebeu-se que o fazia semanalmente, telefonar a propor uma adivinha — um
colaborador voluntarista, certamente não assalariado, dos media locais. A pergunta tinha sido para todo o auditório («Qual é
a primeira coisa que um homem faz ao levantar-se de manhã?»), mas as senhoras
em estúdio — talvez de um grémio cantante, etnográfico — tomaram conta dela. E
durante o resto do programa, dez, quinze minutos, o locutor, um Júlio Machado
Vaz ou Carlos Amaral Dias da planície branca, viu-se afastado do microfone. Lamentavelmente,
já que as tentativas de resposta das senhoras — o burburinho, os apartes, a
perda de pudor, o refustedo — eram claramente matéria excitante para um
qualquer discípulo de Freud.
sexta-feira, 27 de julho de 2012
Diário de férias (4)
O dia correu sob o signo da calvície. De manhã, em A Informação*, o puto perguntou: «Papá?
Tu és calvinista? Foste sempre calvinista? Como é que ficaste calvinista?» O
pai tentava trabalhar: «Tu queres dizer calvo,
Marco. Vai brincar para o meio do trânsito.»
O meu velho de Verão, talvez reagindo a um estímulo semelhante ao de Marco
perante um tipo enfronhado num livro, deu uns bons-dias traquinas do seu lado
do muro, mostrando pela primeira vez uma careca suada e alvacenta onde pousou
depois uma boina em padrão de xadrez. Como o troco não foi famoso pela
generosidade, ele saiu a resmungar para outro lado, creio que em busca da sua pobre
Maria da Conceição.
O passeio da tarde tinha vaga esperança em abetardas ou grous. Não se flana
no Alentejo como no Chiado se se alimenta uma mínima paixão de ornitologista.
Vai-se atento às bermas e às ondulações da paisagem, às linhas de electricidade
e aos postes telefónicos. Pára-se sempre que uma sombra não parece
suficientemente estática. E por vezes acontece. À margem do caminho lá estava
uma silhueta que tanto podia ser um calhau de costas para o sol como uma sorte
maior. Para minha alegria, os calhaus não costumam dar pequenos sacões com o
pescoço, e as galinhas, que os dão, costumam ser bem mais pequenas e estar mais
próximas das povoações.
Não era ainda uma abetarda (lá virá o dia), mas era um belo, gordo, raro
— e careca — abutre-negro. Mirámo-nos
durante um bocado na planície amarelecida e seca, como pistoleiros num duelo ao
pôr-do-sol. Ele teria aliás esse ânimo (legitimamente, depois de importunado
por um curioso de calção e boné). Eu, se ele me deixasse chegar suficientemente
perto, abraçá-lo-ia.
Mas, antes que lhe pudesse afagar a careca, o rapaz levantou voo,
pesadamente — e com ele todo um bando de calvinistas que se acoitava atrás do
morro.
* Martin Amis, Quetzal.
quarta-feira, 25 de julho de 2012
Diário de férias (3)
Dos meus dois velhos de Verão, é o homem quem mais resmunga e coage e
insulta, o que nas relações humanas não é propriamente uma novidade. Mas, outro
lugar-comum, creio que também é ele que mais precisa da relação. Sem a mulher, estaria
perdido, teria talvez uma não-existência decorativa em bares e tabernas. A companheira
que aparentemente o agasta é na verdade o elemento que lhe permite viver a
fantasia que vive. A sua ausência tornaria ainda mais injustificadas e ridículas
as suas fúrias e remoques, esvaziá-las-ia ainda mais de sentido e proporção. De
que outro modo poderia ele justificar para si próprio as suas tiradas
pedagógicas, a pretensa sabedoria de vida, a suposta autoridade quanto às
minudências do quotidiano? Como poderia ele indignar-se senão consigo próprio e
com a sua necessidade de afirmação? Quem mais perderia um minuto a ouvi-lo e a
ouvir as suas bravatas, a virulenta manifestação dos seus complexos
freudianos, sem virar costas girando um metafórico indicador na testa ou,
digamos, sem responder com um sopapo nos olhos?
A senhora senta as suas carnes pelo quintal olhando com majestosa
indiferença o correr dos dias e a errática azáfama do cônjuge. Ela parece
integrada na paisagem de corpo e espírito, possuída de ciência e paciência
antigas, como uma esfinge auto-justificada. Ele sai de casa tomado de irritação
e regressa com novo ânimo implicante. Pelo meio talvez tenha tratado das
ovelhas, regado alguma horta, sido útil e feliz, mas sem o saber. Ou sem o
reconhecer. Ela recebe-o como a um cachorro particularmente histérico, com as
mesmas respostas e insultos formatados aos seus latidos maçadores. Far-lhe-á o
jantar — não se deixa morrer à fome a mascote, mesmo que ela seja francamente o
oposto de um cão de companhia.
terça-feira, 24 de julho de 2012
Diário de férias (2)
A permeabilidade de muros que instala o Goucha nas minhas manhãs de
Verão é a mesma que me põe a escutar conversas de um casal de velhos. Neste caso, a
intromissão é minha, embora não seja minha a culpa — apenas queria terminar o Martin
Amis em paz e silêncio.
Durante uma parte do tempo, os velhos não conversam — retorquem com
impaciência, admoestam, resmungam. Falam por monossílabos e imprecações, com
muitos hãs? pelo meio. Imagino-os prisioneiros um do outro no pátio da
penitenciária que eles próprios construíram, esquecidos da razão porque ali se
encontram, reclamando vagamente, mecanicamente, contra as paredes, o carcereiro,
a pena.
Mas talvez o que me parece uma latência rancorosa mútua não passe de
surdez gerôntica e consequente exasperação. O que agasta os velhos pode ser a
sua própria insuficiência auditiva e não a presença odiosa do outro. Quem sabe
se as suas imprecações, por vezes em solilóquio, não se dirigem apenas ao
absurdo da biologia e da natureza? O mundo real não tem de ser tão ressentido,
pessimista e deprimente (ainda que cómico) quanto o de Money. Pois não?
Claro que se temos de ler livros assim, não é imprevidente fazê-lo num alpendre
alentejano, com o lado brilhante da vida a um passo da cerca, ali, na seara
onde passeiam ovelhas.
segunda-feira, 23 de julho de 2012
Diário de férias (1)
Há muito tempo que não ouvia televisão em casa. É uma sensação estranha
(e, claro, má) acordar com o eco da voz de Manuel Luís Goucha. Quero dizer,
penso que era o Manuel Luís Goucha, na verdade não o vi — o aparelho está na casa do vizinho, provavelmente surdo como
uma porta ou apaixonado pelos requebros tonais do apresentador.
domingo, 22 de julho de 2012
Running Up That Hill*
No caminho
para casa, existia uma parede grafitada que Rita apreciava. Não era seu hábito
reparar nestas coisas. Ou antes: reparava mas não lhe agradavam, não ficava a
admirá-las. A cidade não desenvolvera vocações neste campo, se é que as tinha
desenvolvido em algum. A maior parte dos graffiti
estavam ao nível das criações dos seus filhos na primária: umas desajeitadas
reproduções de lugares comuns. Mas aquela parede fora recentemente brindada com
um pouco de talento: os gangues tinham requisitado algum artista de fora, ou um
errante Miguel Ângelo dos aerossóis, desses que só se imaginam em filmes ou
livros, passou e deixou o seu fresco, a marcar território como um cão o faria.
Talvez pelas mesmas razões.
Nos últimos
tempos ela iniciara uma rotina temerária. Tinha-se divorciado e queria voltar a
experimentar a liberdade, queria estar de novo aberta ao que o mundo tivesse
para lhe oferecer. Era em princípio um pouco exagerado como projecto de
reabilitação sair para correr depois das onze da noite, como se as coisas de
que ela sentia falta fossem nocturnas, noctívagas, mas a verdade é que não
conseguira encontrar outro horário para o jogging no meio de tudo o que tinha para fazer. Ter ficado sem um
marido não lhe concedera tempo, continuavam a existir os filhos, o trabalho e
as horas que perdia em transportes públicos. Mas talvez a escolha do horário
fosse consciente, uma necessidade de adrenalina que preenchesse o vazio. O
divórcio podia ser apresentado como uma conquista, mas era também uma derrota
amarga.
Levava, nos headphones, sob o capuz de rapper que a ajudava a isolar-se, uma
selecção musical disparatada. Ou não disparatada: nostálgica. Kate Bush. Ela
própria ordenara os temas: Babooshka, Wuthering Heights, Running Up That Hill,
e, três ou quatro canções depois, o dueto com Peter Gabriel. Não confessaria a
ninguém que ouvira isto anos antes, in
illo tempore, e muito menos que o fazia agora. Era parte das coisas que ela
reservava para si. Ouvir estas músicas fazia-a imaginar que voava em vez de
correr. Havia algo de épico naquele som, na voz. Não lhe custava adivinhar a
cantora com uma nova imagem de matrona, quilos a mais, rugas, os ossos a
começar a encolher — tinha de se lembrar de ir à Internet ver como ela estava
—, mas sentia isso como um sopro benevolente, como uma tia que a amparasse e
estimulasse e acariciasse. Ou talvez uma irmã mais velha, afinal não as
separavam assim tantos anos. E depois, no fim da selecção, havia aquela voz
masculina, rouca, aguda, esforçada, que soava como se tivesse uma sílaba para
cada vértebra da sua coluna. Peter Gabriel, agora tão gordo e careca, mas na
altura tão perfeito e tão carente, com aquela barba por fazer e a agarrar num
desespero encenado mas adorável uma Kate Bush que lhe dizia para não desistir.
Era como cortar a meta em primeiro lugar, orgástico dessa forma, e ela abria os
braços quando a voz dele soava mais aguda; levantava a cabeça, indiferente aos
olhares.
A parede
grafitada parecia diferente. Estava a vê-la a uma distância considerável, sem
óculos, com os olhos húmidos da brisa nocturna, mas parecia diferente e ela não
conseguiu perceber logo porquê. Talvez alguém tivesse desenhado por cima —
havia disso, sobreposição de tags, ou
lá como se chamava o que eles faziam. Um palimpsesto. Era assim a vida, escrever
por cima do que foi erodido. Ou nem isso, não esperar pela acção do tempo.
O que tornava
o graffito diferente era uma figura
humana. Alguém que adoptava as precauções dos predadores, confundindo-se com as
manchas verticais da pintura. Ela continuava a correr e a silhueta ia-se
tornando um pouco mais nítida. Tinha um braço levantado, como se segurasse um
telemóvel na orelha ou talvez um cigarro pensativo ao lado do rosto. Devia
recear? Passava da meia-noite, a rua estava deserta e ela era uma mulher
sozinha a fazer jogging, exposta aos
elementos. O fato-de-treino folgado não disfarçava as suas curvas. No entanto,
era de um género diferente o medo que ela sentia. Talvez nem fosse medo; algo
que temer, mas não medo.
Subiu no
elevador. As escadas, o esforço adicional de as galgar como remate da
prescrição de exercícios que fizera a si própria, ficariam para outra noite. De
certa forma, gostava da emoção de ser esperada, ou simplesmente espiada, mas
não tinha perdido de todo o bom-senso.
Espreitou pela
janela da sala enquanto desenroscava a tampa de plástico de uma garrafa de
água. A figura tinha desaparecido, restava a parede tal como ela a via nas
últimas semanas. Bebeu a água e virou-se para ir à cozinha preparar um copo de
leite quente ou algo que confortasse o estômago antes de dormir. No momento em
que avançava na penumbra do compartimento, pareceu-lhe esbarrar em alguma coisa.
Não havia ali nada com que pudesse chocar, tanto quando o seu conhecimento da
cartografia do apartamento lho lembrava e tanto quanto os seus olhos já
habituados à escuridão conseguiam adivinhar. E na verdade não sentiu
fisicamente um obstáculo — embora se tivesse detido, como se se tivesse
materializado ali alguém que, ombro no ombro, medisse forças consigo. Era
aquela coisa dos fantasmas, pensou, dos espíritos. Se somos capazes de imaginar
uma presença, ela certamente tem como se manifestar. Dedicou uns segundos a
ponderar o fenómeno, a conceber uma voz que lhe dizia das sombras: vês como se
quiser te faço parar? Depois reflectiu sobre a sua própria fantasia e deixou de
ver habitantes nas sombras. Foi-se deitar.
* In Aranda
* In Aranda
Morrisey
—
Havia uma música dos Smiths onde se repetia hang
the DJ, hang the DJ e era a minha última noite e eu entrei na pista da
discoteca possuída pelas fúrias a berrar aquele refrão. Gostava da música, pelo
que, afinal, era uma injustiça fazer coro de um slogan assim, mas suponho que retoricamente não me importava que se
matasse alguém, fosse quem fosse. Não estava era preparada para descobrir que ele era o DJ naquela noite. Eu para ali
aos berros a reclamar a morte do DJ, simultaneamente eufórica pela bebida e
pela música e infeliz de amores, e o DJ era ele. Os nossos olhares cruzaram-se
quando eu rodopiava, e o que vi a seguir a tomar consciência de que era ele foi
o meu reflexo num dos espelhos da discoteca. Eu de boca aberta, desgrenhada,
braços no ar, escanzelada, sem jeito para aquilo, apenas histérica e demasiado
bebida — a pedir que se enforcasse o DJ.*
*
Rita, in Aranda
segunda-feira, 16 de julho de 2012
Álbum fotográfico
O povo diz que o futuro a Deus
pertence e isto tanto pode ser uma manifestação de impotência como de renúncia.
Mas e o passado? A quem pertence o passado?
Olhando para algumas fotografias de infância, hesito. Reconheço o décor, o guarda-roupa, os restantes
personagens, mas tropeço no protagonista. Quem é aquele indivíduo? De quem são
aqueles cabelos? Aqueles olhos generosos? O sorriso inocente? Não faço ideia. As
minhas memórias, as que sobreviveram, encaixam vagamente nas cenas retratadas,
mas não evito um forte sentimento de desconfiança quando observo a criança que
supostamente era eu trinta e tal ou quarenta anos atrás. Se não houvesse outras
testemunhas, não me custaria falar em usurpação: um rapazola de belos caracóis a
fazer-se passar por este pobre artilheiro.
Avanço entretanto na cronologia do álbum e na adolescência não fico
mais descansado. Fico, aliás, mais incomodado. Que cortes de cabelo são aqueles
que me atribuem? Que trajes ridículos dizem as fotos que vesti?
Aqui o personagem não me é tão estranho, cruzei-me com ele várias
vezes, crescentemente, nos espelhos da casa de banho e do guarda-fatos. Numa ou noutra
montra. A partir de certo dia, nos espelhos atrás de balcões em cafés. Quem
sabe se na bola de espelhos de alguma discoteca dos anos oitenta, naqueles
momentos em que o êxtase nos põe a olhar parvamente o tecto.
Em todo o caso, reconhecer o gajo não é aceitar de ânimo-leve que ele e
nós somos um. Estamos a falar de alguém que vimos ao espelho há trinta anos.
Quer dizer, há trinta anos havia certamente muita gente a frequentar os mesmos
espelhos, quem pode garantir qual dos semblantes reflectidos éramos nós?
Pode acontecer que eu seja um caso particular, que mais ninguém se
intrigue assim com um álbum fotográfico. As pessoas tendem a aceitar como boas
as memórias que os outros têm da sua própria infância e adolescência. Partem do
princípio de que não há no mundo, no seu mundo, maldade suficiente para que
alguém minta sobre um período tão inocente. Eu próprio tenho partido desse princípio.
Por isso me sinto agora como uma espécie de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, embora ainda
não tenha esclarecido a que décadas corresponde cada uma das facetas.
Mas vamos que nos tenham mentido. Vamos que no que toca ao passado tudo
não passe de um embuste, uma conspiração. Talvez devêssemos pensar humildemente duas vezes
antes de nos gabarmos de feitos da infância: se calhar não éramos nós. De igual
modo, talvez possamos deixar de sofrer com as maldades que supostamente fizemos
décadas atrás: mesmo que não tenham prescrito, decerto foram cometidas por
outra pessoa. Quem tenha dúvidas, que compare o nosso DNA com o DNA das fotos a
preto e branco ou com cores deslavadas que alegadamente nos incriminam. Estou
seguro de que não coincidem nos pixéis ou nas percentagens CMYK.
O nosso passado é uma narrativa dos mais velhos. Não temos nada a ver com isso.
O nosso passado é uma narrativa dos mais velhos. Não temos nada a ver com isso.
sábado, 14 de julho de 2012
quinta-feira, 12 de julho de 2012
Ciberdúvidas
O
anúncio da Secretaria de Estado da Cultura garantindo apoio ao Ciberdúvidas é
uma boa notícia (outra coisa não se esperaria de Francisco José Viegas). Mas é
também uma demonstração de como o “mercado” não assegura sequer os serviços
mínimos na área da cultura. José Mário Costa, responsável pelo portal, tentou «contactar vários possíveis mecenas,
desde entidades públicas a privadas, mas todas as respostas foram negativas». O
“mercado” está-se naturalmente borrifando para a cultura portuguesa. Neste
caso, o Estado não. Ainda bem.
Pândegos
A editora,
começando por se rir do estereótipo propagado pelo humorista, reflecte a seguir
sobre ele. Concluindo que os programas sobre literatura e artes talvez precisem
de ser mais animados para convocarem mais espectadores.
Creio que
se esqueceu de João Baião. João Baião inventou a TV em movimento (ou aos
pinchos, ou lá o que era) — mas parece que isso não serviu de muito as artes ou
a literatura.
Talvez,
talvez o público se afaste dos programas culturais por causa de formatos aborrecidos
ou de apresentadores sem carisma. Aceitemos por momentos esta versão optimista.
Imaginemos que doravante a televisão pública apenas contratava gente com o perfil,
digamos, de um Herman José, de um John Stewart,
ou, sei lá, de um Jay Leno. Íamos todos divertir-nos muito, oh, se íamos.
Isto é um
pouco como ver o actor José Pedro Gomes (aliás, par de Bruno Nogueira) orgulhar-se
por os seus espectáculos desempenharem um papel fundamental na consolidação do
público do teatro. O que é verdade — se considerarmos que todo o teatro é
comédia ligeira e todo o espectador um pobre diabo à espera de que o façam rir.
Sem esforço.
sábado, 7 de julho de 2012
É o que dá ter governos de esquerda
«El Gobierno impide una presa en el Navia que afectaría al oso pardo»
P.S.: Diria o Zé Povinho: O problema do Tua e do Sabor é que os ursos estão em Lisboa.
P.S.: Diria o Zé Povinho: O problema do Tua e do Sabor é que os ursos estão em Lisboa.
quinta-feira, 5 de julho de 2012
A subtil gradação da vileza
Portugal ganharia se nos blogues e nos jornais escrevessem comentadores
menos engajados, um pouco menos simpatizantes de grémios e bíblias. O jeito que
nos dava ter ironistas a sério, daqueles que observam o mundo como dandies
de monóculo e copinho de brandy na mão ou deuses sentados em nuvens e indiferentes
aos resultados das batalhas humanas. Os ironistas são geralmente cruéis, porque
não se condoem das nossas irrelevantes tristezas nem se excitam com as nossas alegrias
fátuas. É esta a sua agudeza e a sua utilidade. Têm sempre presente a big
picture; para eles, como para os deuses, não passamos de efémeros grãos de
areia. Eles mesmos não passam de grãos de areia e sabem-no, por isso o seu lúcido
desapego de colectividades, de conveniências e pequenos acontecimentos. (Por isso,
também, o omnipresente copinho na mão: lucidez em demasia constrange.)
O caso Relvas é só mais um dos que revelam como entre nós a acutilância e a ironia são substituídas pela indignação emproada e pela hipocrisia congénita. Os comentadores tugas entretêm-se agora, freudianamente, a comparar o nariz-de-pinóquio socrático com a, para o que aqui interessa, não menos helénica penca relviana*. Como se fosse esse o ponto. Como se aos cidadãos não inscritos em partidos interessasse a ponta de um corno a subtil gradação da vileza dos protagonistas.
Para uma nação insalubre como a nossa, o afastamento do Sr. Relvas é uma necessidade sanitária que não precisa de ser cotejada com comportamentos análogos de outros bacharéis**. Impõe-se por si. Mas se os comentadores querem atrasar a História com calibragens, entretenham-se a calcular, para cada caso (Sócrates, Relvas e os mais que virão), a energia que se deve empregar nos respectivos pontapés-no-cu. Desde que os apliquem em tempo útil e independentemente dos importantes resultados a que cheguem.
* Este post e este, do blogue Blasfémias, ilustram o texto acima. O segundo é paradigmático.
** O dicionário do Word explica porque se aplica bem este termo às vidas académicas em análise.
O caso Relvas é só mais um dos que revelam como entre nós a acutilância e a ironia são substituídas pela indignação emproada e pela hipocrisia congénita. Os comentadores tugas entretêm-se agora, freudianamente, a comparar o nariz-de-pinóquio socrático com a, para o que aqui interessa, não menos helénica penca relviana*. Como se fosse esse o ponto. Como se aos cidadãos não inscritos em partidos interessasse a ponta de um corno a subtil gradação da vileza dos protagonistas.
Para uma nação insalubre como a nossa, o afastamento do Sr. Relvas é uma necessidade sanitária que não precisa de ser cotejada com comportamentos análogos de outros bacharéis**. Impõe-se por si. Mas se os comentadores querem atrasar a História com calibragens, entretenham-se a calcular, para cada caso (Sócrates, Relvas e os mais que virão), a energia que se deve empregar nos respectivos pontapés-no-cu. Desde que os apliquem em tempo útil e independentemente dos importantes resultados a que cheguem.
* Este post e este, do blogue Blasfémias, ilustram o texto acima. O segundo é paradigmático.
** O dicionário do Word explica porque se aplica bem este termo às vidas académicas em análise.
quarta-feira, 4 de julho de 2012
Um bocejo e um breve espevitar de orelhas
As notícias que revelam a saga familiar de dois gémeos separados à
nascença — os meninos Relvas e Sócrates — foram recebidas com um longo bocejo. A
previsibilidade do mundo não sói entusiasmar.
Já aquelas que anunciam a perda de mandato do menino Macário fizeram levantar
uma ou outra orelhita. Ainda assim, nenhuma excitação que deva preocupar os
cardiologistas: são notícias efémeras, que com o tempo do seu lado a Justiça se encarregará de tornar desactualizadas, desmentidas.
Ainda nada de novo na pátria da mesmice.
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