Tinham passado de um programa informativo para um jogo de futebol — e naquela
época eu era suficientemente cândido e voluntarioso para me tentar opor ao
fascismo da bola, à ditadura das massas simpatizantes.
Entretanto soçobrei ao pessimismo, ao cinismo, procuro não ser
proselitista. O que não facilita a vida, diga-se. Tentarmos ser livres
passivamente poupa-nos a discussões inúteis, ao embaraço e à maçada de sermos
sempre reivindicativos e queixosos, audivelmente, iradamente — mas reduz-nos as
opções. Por vezes, deixa-nos mesmo sem opções na hora de sair, dado o carácter
eminentemente ademocrático, ferozmente contra soluções alternativas, da
sociedade de massas. Observemos os carneiros ali no campo: para onde vai um vão
todos. So much for human superiority.
Contudo, há ainda em mim uma nostalgia bombista. Não que alguma vez o tivesse
sido. Infelizmente nunca tive essa coragem e essa eloquência. É uma nostalgia
do tempo em que aspirava a uma grande carreira na arte da, digamos,
argumentação.
Sexta-feira demo-nos ao trabalho de fazer uns quilómetros para jantar em
nenhures, fiados em sugestão de gente amiga. Boa comida em conta. Lá chegados, desilusão:
numa província onde a boa arquitectura tradicional sobrevive e em muitos casos
domina, sai-nos uma vivenda de dois pisos que tanto ficaria mal em Trás-os-Montes como no Minho. No
Alentejo fica péssima. Desilusão: o famoso prato (nada de transcendental) tem
de se encomendar com antecedência. Desilusão: já nem sequer há batatas
gratinadas. Comemos uma enorme costeleta (não fosse a Senhora da Graça de Padrões junto a
terra de mineiros) e estava bastante boa — mas também perto do meu alpendre de
Verão há onde se comam boas costeletas.
A nostalgia bombista acometeu-me no momento em que de repente a sintonia
da televisão (sim, O Pereira é um desses estabelecimentos que têm televisão)
foi mudada para, adivinharam, um jogo de futebol. Na sala de jantar estávamos
nós e uma família interessada na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos. No
bar, com o comando na mão apontado a outro ecrã, estava o dono da casa.
Mudar para um jogo de futebol é o que se espera de um bom português e o
acto, a atenção, o sentido de oportunidade, tudo isso é aplaudido em coro pela
pátria — munida de bandeirinhas chinesas e essa vuvuzela a que chamam garganta. Ao sr. Pereira
jamais teria corrido estar a ser indelicado, deselegante, desrespeitador da sua
clientela. Consigo mesmo imaginá-lo enfastiado, ou talvez até pressuroso, a
procurar um jogo de futebol, não para ele, mas para nos servir de extra, como quem cumpre um dever
ou vai mais além e mostra generosidade.
Tanta generosidade aqueceu-me o espírito, como o Vesúvio antes de cuspir
sobre Pompeia. No entanto, em vez de fazer um favor à arquitectura e simultaneamente
vingar todos os que gostam de batatas gratinadas — implodindo O Pereira —, saí ordeiramente, portuguesmente,
pagando a conta. O protesto, clamoroso, ficou apenas na recusa de deixar
gorjeta — penalizando a única pessoa que esboçou desagrado perante a bruteza de macho luso do patrão, a empregada.
Rememorando agora o jantar na sombra do meu alpendre, quando o momento
me parece tão distante quanto em geral me parece a humanidade, a minha complacência
foi por instantes substituída pelo remorso. Ah, que saudades de ter sido cândido,
voluntarioso — e bombista.
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