Olhando para algumas fotografias de infância, hesito. Reconheço o décor, o guarda-roupa, os restantes
personagens, mas tropeço no protagonista. Quem é aquele indivíduo? De quem são
aqueles cabelos? Aqueles olhos generosos? O sorriso inocente? Não faço ideia. As
minhas memórias, as que sobreviveram, encaixam vagamente nas cenas retratadas,
mas não evito um forte sentimento de desconfiança quando observo a criança que
supostamente era eu trinta e tal ou quarenta anos atrás. Se não houvesse outras
testemunhas, não me custaria falar em usurpação: um rapazola de belos caracóis a
fazer-se passar por este pobre artilheiro.
Avanço entretanto na cronologia do álbum e na adolescência não fico
mais descansado. Fico, aliás, mais incomodado. Que cortes de cabelo são aqueles
que me atribuem? Que trajes ridículos dizem as fotos que vesti?
Aqui o personagem não me é tão estranho, cruzei-me com ele várias
vezes, crescentemente, nos espelhos da casa de banho e do guarda-fatos. Numa ou noutra
montra. A partir de certo dia, nos espelhos atrás de balcões em cafés. Quem
sabe se na bola de espelhos de alguma discoteca dos anos oitenta, naqueles
momentos em que o êxtase nos põe a olhar parvamente o tecto.
Em todo o caso, reconhecer o gajo não é aceitar de ânimo-leve que ele e
nós somos um. Estamos a falar de alguém que vimos ao espelho há trinta anos.
Quer dizer, há trinta anos havia certamente muita gente a frequentar os mesmos
espelhos, quem pode garantir qual dos semblantes reflectidos éramos nós?
Pode acontecer que eu seja um caso particular, que mais ninguém se
intrigue assim com um álbum fotográfico. As pessoas tendem a aceitar como boas
as memórias que os outros têm da sua própria infância e adolescência. Partem do
princípio de que não há no mundo, no seu mundo, maldade suficiente para que
alguém minta sobre um período tão inocente. Eu próprio tenho partido desse princípio.
Por isso me sinto agora como uma espécie de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, embora ainda
não tenha esclarecido a que décadas corresponde cada uma das facetas.
Mas vamos que nos tenham mentido. Vamos que no que toca ao passado tudo
não passe de um embuste, uma conspiração. Talvez devêssemos pensar humildemente duas vezes
antes de nos gabarmos de feitos da infância: se calhar não éramos nós. De igual
modo, talvez possamos deixar de sofrer com as maldades que supostamente fizemos
décadas atrás: mesmo que não tenham prescrito, decerto foram cometidas por
outra pessoa. Quem tenha dúvidas, que compare o nosso DNA com o DNA das fotos a
preto e branco ou com cores deslavadas que alegadamente nos incriminam. Estou
seguro de que não coincidem nos pixéis ou nas percentagens CMYK.
O nosso passado é uma narrativa dos mais velhos. Não temos nada a ver com isso.
O nosso passado é uma narrativa dos mais velhos. Não temos nada a ver com isso.
bullshit; o nosso passado é o que de mais verdadeiro temos de património global.
ResponderEliminaro agora é uma treta e o devir, a maior incógnita.