quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013
Trash lovers
De vezes em quando, o Jumbo põe DVDs de filmes em promoção e desperta o
adolescente que há em mim. E o consumidor. (E o idiota.) Aparentemente, filmes
a um euro são boas aquisições, mas tendo em conta que a maioria deles não vale
um chavo, um euro é na realidade um preço exorbitante. Claro que o puto estúpido
que eu consigo ser não se importa nada com isso. Um contentor a transbordar de
DVDs é uma visão irresistível. Atiro-me a ele como Ali Babá ao tesouro dos
quarenta ladrões (o que, como metáfora, nem é assim tão desajustado, se considerarmos
a verdadeira natureza do capitalismo e a quantidade de vezes que já murmurei Abre-te Sésamo em frente às portas
automáticas do estabelecimento).
Partilho com Vasco Pulido Valente um vício ou um defeito (apenas um dos
muitos que ele tem, ok?): tenho demasiadas vezes uma necessidade inelutável de
consumir policiais como narcótico, para distracção da vidinha medíocre. O
cronista do Público lê policiais eu vejo policias, se os apanho. E filmes de
ETs.
Sempre que o Jumbo faz as suas feiras de um euro, eu encho uma cesta de
DVDs. Depois passeio-os pela loja com a alegria de um adolescente ou de um titular
de cartão de crédito da década passada, e de seguida, mais responsavelmente do
que estes, devolvo a maior parte dos filmes à proveniência (faço uma triagem
mental enquanto me abasteço de mercearia). Saio de lá, ainda assim, com meia
dúzia deles, geralmente mais seis do que aconselhariam o bom-gosto e o
bom-senso.
Nem sempre reconheço para mim próprio o quanto isto é patético. Por
vezes trago um Hitchcock ou um galardoado de Cannes para ludibriar a
consciência. A comparação com outros prospectores de lixo também me serve de alibi.
Ao contrário de alguns tipos que mergulham no contentor como porcos numa
manjedoura, numa ânsia de encontrar pérolas que faz transbordar o recipiente,
eu vou fazendo a selecção com pinças e torcidelas de nariz, e chego a arrumar o
que os outros desarrumam, como se o lixo em montinhos fosse menos asqueroso.
Ontem um dos trash lovers estava em franca competição comigo, mas, vendo-me atrasado no meu falso pudor, teve um gesto magnânimo: ofereceu-me uma das suas melhores descobertas. Aquilo começou por me desconcertar (eu estava a tentar passar despercebido, e não imaginava que me pudessem achar camarada numa coisa destas), e de seguida deu-me ares de superioridade. O tipo tinha-me estendido um exemplar de “A Super Patrulha” (“Crime Busters”), com Terence Hill e Bud Spencer, e por alguma razão eu achei, com uma risadinha snob, cretina, que a merda que levava no carrinho de compras se não comparava àquilo.
Ontem um dos trash lovers estava em franca competição comigo, mas, vendo-me atrasado no meu falso pudor, teve um gesto magnânimo: ofereceu-me uma das suas melhores descobertas. Aquilo começou por me desconcertar (eu estava a tentar passar despercebido, e não imaginava que me pudessem achar camarada numa coisa destas), e de seguida deu-me ares de superioridade. O tipo tinha-me estendido um exemplar de “A Super Patrulha” (“Crime Busters”), com Terence Hill e Bud Spencer, e por alguma razão eu achei, com uma risadinha snob, cretina, que a merda que levava no carrinho de compras se não comparava àquilo.
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013
Segunda Lei de Newton
Ainda pensa nele com frequência, e alimenta com denodo
aquela ideia tola de que um dia se vão encontrar à entrada da ponte. Volta lá
todos os sábados, à mesma hora, com a desculpa do trekking. No início
imaginava-o a ir até ali nem que fosse uma vez por curiosidade, como se também
ele ocupasse os seus pensamentos com ideias daquelas. A literatura dedica-se
frequentemente a testar realidades alternativas, a averiguar como seriam as
coisas se diferentes opções fossem tomadas, diferentes forças tivessem agido, a
conceber novos destinos e desfechos para eventos conhecidos do público ou do
autor. Pode dizer-se muitas vezes que um romance é uma variação sobre um tema e
que, sendo as variações infinitas, os temas o não são. No caso dela, isto é uma
verdade insofismável: o seu único tema é o encontro malogrado.
Acontece que ela não é uma escritora, apenas uma
pessoa um pouco perdida, pelo que o exercício ficcional reiterado não lhe traz
elogios da crítica, mas a censura branda do psicanalista. Imaginá-lo uma alma
gémea, alguém que não resiste um dia a vir até ali interrogar-se sobre que rumo
teria tomado a sua vida se tivesse comparecido ao encontro, faz parte da
patologia dela e é uma nova motivação para a saída de sábado à tarde. Que se
junta à já de si suficiente tendência para remoer frustrações com método.
Hoje, porém, está prestes a descobrir que as coisas
podem mudar. Parou como sempre na entrada da ponte, para consultar o telemóvel
e perscrutar o horizonte num gesto ritual, evocativo, fingindo uma pausa para beber água e
retomar o fôlego. Sempre pensou que se o encontrasse a meio de uma das suas
caminhadas a visão dele seria suficiente para a deter. Mas, porque ela está de
momento parada e ele vem com o braço pelo ombro de uma qualquer, o princípio fundamental
da dinâmica será demonstrado de forma diferente: quando ela os vê, sente um
desejo súbito de experimentar o jogging e sai a correr na direcção da
força que emana do casal, mas em sentido contrário à localização deles.
Se a força gravitacional dos corpos pode ser uma
boa imagem para descrever o amor, a segunda Lei de Newton pode talvez usar-se com
igual propriedade para assinalar a evolução desportiva de uma rapariga magoada.
terça-feira, 26 de fevereiro de 2013
Primeira Lei de Newton
O ritmo dos seus passos abranda com a subida, mas não é subida que a
faz abrandar. À entrada da ponte pára, como se estivesse indecisa quanto ao
caminho a escolher. Mas não está. Olha em volta, mas não há sinal da silhueta
dele no horizonte. Consulta o telemóvel, e não tem nenhuma mensagem. Não está
segura de querer ter uma mensagem. Podia ser uma do género «Estou atrasado, não
demoro», mas também podia ser pior. Um evasivo «Não posso» ou um assertórico «Não
vou, foi um engano.» Afinal, as coisas não haviam ficado assim tão claras.
Tinham combinado às duas no parque, mas quanta convicção há num «sim»? Ela não
lhe mandou nenhum sms a pedir-lhe que confirmasse, temia dar-lhe uma
oportunidade de agora responder «não». É mais fácil responder do que tomar a
iniciativa. Por vezes também é mais fácil aparecer a um encontro do que
dizer-se que não se quer ir a esse encontro. A inércia dos corpos e da vida. Ela
deposita nesse princípio da dinâmica as suas últimas esperanças, se tudo o
resto falhar. Tem esperança que ele apareça nem que seja para não se dar ao
trabalho de faltar.
Consulta de novo o horizonte e o ecrã do telemóvel, mas não há sinal
dele, nenhuma das suas manifestações possíveis tem lugar. Apenas a passagem do
tempo, assinalada com quatro dígitos que há muito deixaram de ser 14:00.
Então começa a descer o caminho pelo outro lado e os seus passos vão
acelerando. Como uma bola que, depois de quase se deter ao chegar ao cume,
ganhasse de novo velocidade na descida, a gravidade vencendo o atrito. Em poucos
minutos adopta um passo furioso, como o daquelas outras raparigas que vão ao parque
para caminhar, gastar calorias em marchas vigorosas, de fato de treino justo,
garrafa de água na mão e um tagarelar ofegante. Ao fim de um quarto de hora de
caminhada, descobrindo centenas de metros depois prazeres insuspeitados no
esforço físico e remoendo o despeito amoroso, consegue-se imaginar a fazer
aquilo para o resto dos seus dias: tornar-se viciada em caminhadas e presa a um
encontro que não ocorreu. Não é preciso muito: umas sapatilhas com bom piso e
um espírito romântico obsessivo, também ele obediente, na sua persistência, à primeira
Lei de Newton.
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013
Grândolas de manhã à noite
À direita e à esquerda é agora moda haver quem se incomode com o uso da
Grândola como forma de calar políticos. A democracia, o direito de expressão e
mais não sei o quê... Vão tomar no cu outra vez! O grande atropelo à democracia,
à decência e à dignidade é a manutenção de Relvas no Governo. Enquanto ele lá
continuar, enquanto for ministro deste país um tipo que representa os nossos
piores defeitos em vez de nos representar, a vida pública portuguesa devia hoje
ser feita de grândolas de manhã à noite. Devíamos levantar-nos às cinco da
manhã para cantar a Grândola durante as abluções; voltar a ela antes do almoço ou
do moscatel; entoá-la nas vésperas com o chá ou a imperial; atacá-la em coro depois
do jantar ou do brandy; voltar a ela à hora de regressar a casa, ébrios ou
purificados pela missa do galo. Um país que tem Relvas como ministro precisa de
ser varrido a grândolas, precisa de um tsunami de grândolas. A palavra-passe
para aceder à cidadania portuguesa nestes dias devia ser «grândola». Grândola devia
ser a única palavra da língua
portuguesa. A qualquer pergunta que nos fizessem nós devíamos responder grândola. O nosso quotidiano devia ser
grandolizado. Devíamos amar-nos ao som de Grândola,
Vila Morena. Dizer grândola como quem diz amo-te. Dizer Grândola como quem
diz vai-te foder. Dizer grândola como quem diz tá tudo, vai-se andando, nunca
pior, as coisas que costumamos dizer quando não estamos contentes nem tristes.
Todos aqueles que não são Relvas ou cúmplices de Relvas neste país deviam enfiar
uma polifónica Grândola pelo cu acima do Governo, dos seus acólitos e dos
sujeitos do PS que se incomodam com a Vila Morena. E, não dando resultado, a
própria azinheira, com todos os nós e toda a rugosidade da sua venerável casca sem idade, deveria ser enfiada pelo cu acima daquela gente.
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013
Guarda-fatos
«Havia um guarda-fatos lá em casa que era
como o baú de um mágico. No seu metro e setenta de largura de madeira sólida,
continha roupa de várias gerações e modas, entre camisas, gravatas, calças,
coletes, casacos, jaquetas, sobretudos, gabardinas e algumas peças femininas
avulsas. Os cabides tinham de ser robustos, como a vareta que os sustentava,
porque sobrepunham-se em cada um múltiplas camadas de vestuário, como estratos
geológicos. O grande gavetão que ficava por baixo das portas espelhadas alojava
um ou outro adereço, cintos, suspensórios, botões de punho, mas também
correspondência em maços atados por cordéis, fotografias, recortes de jornais,
uma variedade de cachimbos — e sobretudo mistérios. Por cima do armário
amontoavam-se caixas de sapatos e de chapéus que um friso trabalhado na parte
anterior e nas laterais escondia na penumbra do quarto.
Recorri àquele móvel em diferentes fases
da minha vida. Inicialmente, usava-o para me esconder de tias beijoqueiras ou
de visitas que não desejava. Na infância, aquilo não era um armário, era uma
sala, a gruta do Aladino, com um cheiro que me acompanharia o resto da vida.
Podia mover-me lá dentro sem sentir uma ponta de claustrofobia, não estava mais
limitado nem menos curioso do que o Robinson Crusoé. Mais tarde visitava-o pelo
Carnaval, como quem se dirige a uma loja de fantasias. Era possível encontrar ali
peças excêntricas, datadas, risíveis, largueironas, de cortes ou cores
extravagantes, que eu combinava da forma mais absurda que me ocorresse.
Visitava-o também sempre que me apetecia sonhar com épocas passadas ou
geografias longínquas, quando me bastava escolher um dos muitos cachimbos para
que novas histórias tivessem lugar naquele quarto. No final da adolescência
morava no guarda-fatos o meu estilista, era ali que eu me fornecia de
indumentária para me imaginar na vanguarda da moda e das atitudes.
Numa das vezes que usei o armário para
compor a figura escolhi uma gabardina. Pareceu-me, por alguma fotografia que vi
na imprensa ou imagem breve na televisão, que o defunto vocalista dos Joy
Division usava gabardinas escuras. Achei lógico. Tinha lido coisas sobre a
banda, conseguira uma cassete, identificava-me com aquele ambiente depressivo e
ao mesmo tempo frenético. Era Verão, mas tinha chovido e a noite ficara um
pouco mais fresca. Razões suficientes, pensei, para procurar no guarda-fatos
uma gabardina. Estava farto das minhas roupas sem dignidade nem estilo, os
trajes gastos e únicos e sem carácter de um filho da baixa classe média
provinciana. Cobri-me com aquela peça, provavelmente militar, e saí para rua
com a auto-estima nos píncaros, ar fatal, passo gingão, cigarro no canto da
boca — a suar demasiado. Atrevi-me a cruzar a praça e a entrar no Luxor, o
melhor café da vila, com uma decoração vagamente colonial. Encostei-me ao
balcão e pedi cerveja.
Contava voltar-me para apreciar o ambiente
como um Humphrey Bogart discreto, mas o que me esperava eram olhares de
escárnio, comentários, risadas, dedos apontados. Eu era o centro das atenções,
mas não porque me distinguisse pela elegância, causasse sensação e inveja.
Em cinco minutos tinha desmoronado o edifício
que diligentemente construíra meia hora antes. Queria colher os frutos da
ousadia, da diferença, mas apenas sentia vergonha. Era só um miúdo ridículo,
demasiado vestido para a estação, que descolorava o cabelo nas fontes com água
oxigenada.
Bebi o fino de um gole e saí de imediato,
cabeça baixa, mais deprimido do que antes, com vontade de ler outra vez sobre o
suicídio do meu ídolo.»
Pedro in Aranda
sábado, 16 de fevereiro de 2013
Boas decisões
Em vez de me pôr a escrever as ninharias do costume, passei a noite a
ler, com proveito e prazer, este blogue: http://ancorasenefelibatas.wordpress.com.
terça-feira, 12 de fevereiro de 2013
Beatas e expressões
Descem a rua com os seus trajes austeros, quase um uniforme, os seus missais seguros com as duas mãos ao nível do ventre e envoltos em rendas, os seus rostos duros, ferozes, até, desenhados a moral e censura. Têm expressões de instrumentos de Deus, prontas para Lhe limparem a casa (e a do padre, Seu representante) ou exercerem a Sua fúria vingadora, mais para isto do que para aquilo. Olhamo-las e imaginamos que o amor a Deus e a obediência à Verdade são a causa de terem rostos que não enganam, que transparecem a condição de cães de guarda da moral.
E no entanto erramos frequentemente no jogo de adivinhar se uma fotografia no JN é de vítima ou carrasco. Não raro os mortos têm cara de vilões e os assassinos expressão sofredora.
Freak show
Saio à rua e vejo um pequeno desfile que num relance me parece um freak show. Um grupo bizarro de rapazes e homens batendo em tambores, liderado por um sujeito a cavalo e seguido em procissão por meia dúzia de junkies de membros magros e rosto desfigurado. O do cavalo manobra no ar um bastão quase invisível de fino e felizmente inútil (o ritmo já é incerto que chegue assim, sem ninguém obedecer à sua marcação errónea). Cavalga como certas figuras antigas de aldeia, costas arqueadas, queixo recolhido no peito, dormitando ou mal equilibrando a bebedeira. Os que o seguem, com as suas idades, estaturas e bombos sem aprumo nem ordem, imitam demasiado bem uma tropa fandanga que tivesse por uniforme os andrajos desenterrados num saque de aldeia miserável. Atrás do cortejo, os heroinómanos das redondezas, embasbacados e marchando como zombies sem destino.
Depois esfrego os olhos e noto que é apenas um desfile de Carnaval, um que não precisou de investir muito nos disfarces para alcançar aquele efeito. É uma ronda dos arredores que desceu à cidade percutindo bombos e causando pasmo aos junkies do bairro e a mim. Ou só a mim: os junkies nem assistem ao triste cortejo, apenas coincidiram na rua no momento do desfile, a caminho dos seus habituais compromissos inadiáveis.
sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013
Nem tudo é repetível
Lá em casa levávamos broncas se numa visita curta a um compartimento ou
na passagem por um corredor acendíamos lâmpadas fluorescentes em vez de
incandescentes. Estávamos avisados e informados: as lâmpadas incandescentes
consumiam mais quando acesas em permanência; as fluorescentes, mais baratas em
utilizações prolongadas, custavam caro a acender. Se apenas estávamos de
passagem ou íamos entrar e sair, não havia nenhuma boa desculpa para acender
lâmpadas fluorescentes. Esse erro agastava sobremaneira o nosso pai,
provocando-lhe em certas alturas uma irascibilidade que só viemos a percebemos de
todo quando soubemos o que era viver com um ordenado que demasiadas vezes não
chegava ao fim do mês.
Hoje, num reflexo daqueles tempos, desloco-me pela casa apagando a luz
dos compartimentos atrás de mim, mesmo que tencione voltar, enquanto acendo a
dos que me ficam no caminho. Por vezes fico às escuras alguns metros, se os
interruptores não estão próximos e acho supérfluo iluminar uns poucos passos.
Não me perturba este jogo. Como não me perturba ir a pé para o trabalho. O
ambiente ganha com isso. Eu gasto menos com isso. Perturba-me que venha a
precisar de uma mercearia que venda fiado e não a encontre. Não encontre mercearias
de espécie nenhuma. Nem tudo do passado é repetível. No portugalzinho provinciano
e comunitário de Salazar era possível levar uma grande lista de compras e
dinheiro nenhum na carteira. Os franchises
de hoje, mesmo quando apresentam rostos mais simpáticos por detrás da
registadora, não têm a mesma confiança na palavra dada. Além de que, suspeito,
a companhia da electricidade é hoje mais despida de escrúpulos na hora de
definir tarifários.
A humanidade por detrás do culto
Depois do post “Mulher a rezar” revisitei, agora com atenção, os nichos
religiosos ao fundo da rampa do Calvário de que já falei algumas vezes. Passo
ali todos os dias, de carro ou a pé, mas não tinha percebido que o Cristo coroado
e flagelado não carrega a cruz (está agarrado a uma coluna) e que do outro lado
é a casa de um Santo António com o Menino ao colo, e não de uma Virgem Maria (embora
a de Fátima também esteja presente, num altar subalterno aos pés do franciscano).
Espreitei e vi como ardiam velas em latinhas que parecem de
refrigerantes, com gravuras no exterior, vi plantas em vasos que dão aos nichos
um certo ambiente de estufa, vi as vassouras que diariamente varrem os pequenos
compartimentos, as bisnagas com que se borrifam as plantas e a cerâmica ou o
barro pintado das figuras, vi na sua mundana caixa de supermercado o rolo de
papel de alumínio de onde saem os fundos que protegem os tabuleiros das velas,
vi a prosaica caixa dos fósforos que acendem as velas, vi o saco preto reciclável
onde se acumulam as latinhas já usadas — vi, enfim, os bastidores de oratórios
ou santuários demasiado pequenos para terem resguardados da vista os produtos e
os objectos que revelam a humanidade por detrás do culto.
Decerto não veria nada disso se tivesse ido ali apenas para rezar.
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013
Eventualmente ou o princípio da incerteza
Obedecendo a um particular entendimento das coisas ou a uma estranha
obsessão, os responsáveis pelas legendas no cinema geralmente traduzem do
inglês um indubitável eventually por
um incerto eventualmente. Por exemplo:
as águas de um rio que em inglês vão inelutavelmente dar ao mar, por difícil e
longo que seja o caminho, em português não têm garantido esse destino salgado,
só eventualmente encontram a foz.
Hoje, num filme que me passou pelo ecrã, a expressão «in the end
everybody dies» foi traduzida como «eventualmente todos morrem». Fiquei
baralhado. O tradutor teve bizarras dificuldades com a expressão original,
procurou uma correspondente em inglês e só então traduziu a ideia (com o erro
habitual)? Terá imaginado uma primeira tradução do género «todos acabam por
morrer», feito de seguida a retroversão para, sei lá, «everyone eventually
dies» e só então se sentiu capaz de balbuciar alguma coisa em português? Ou é
na verdade o grémio das legendas partidário do princípio da incerteza até no
que se refere à morte?
Os habitantes do parque: notas para um inventário
O parque não é habitado por gnomos ou outros seres mitológicos, pelo
menos que eu saiba. Nem há assim tanta gente que se possa dizer que é do parque. Às horas que o percorro, de
dia, lembro-me de um clérigo de uma religião alternativa, com a sua gabardina dois
números acima, um saco na mão direita e frequentes olhos no céu; um reformado pesadão
de bengala e cão idoso pela trela que tem um pedaço do parque como quintal; um
advogado e um pastor alemão com o mesmo ar de poucos amigos, ambos sem açaimo,
numa caminhada enérgica antes do expediente da tarde; duas ou três senhoras
indistintas e decididas no seu fato-de-treino claro e no seu trekking pós almoço; os habituais
funcionários camarários vestidos de verde-almeida e responsáveis pela relva, na
parte em que o parque é relvado; um senhor com luvas, protectores de orelhas e eventuais
problemas de colesterol ou próstata cumprindo a prescrição médica… Quase todos
os outros são meros transeuntes que atalham pelo parque a caminho de qualquer destino
alhures, geralmente indiferentes ao caudal do rio, à azáfama da passarada ou ao
estádio da floração. Ao final da tarde a fauna aumenta, mas malogradamente
outras ocupações impedem-me de lhe fazer o inventário. E às minhas horas da
noite já quase não sobra ninguém: um ou outro corredor de calças de lycra, uma
ou outra parka com gente anónima dentro.
Há contudo nos últimos tempos um sujeito careca nos seus quarentas que
se posiciona durante a hora de almoço numa escadaria com vista para uma das represas.
Talvez tenha agora descoberto que aquele é um bom sítio para almoçar. Talvez
tenha voltado a fumar e ali, meio camuflado pela vegetação, não o assolem tanto
os remorsos nem a censura de familiares ou colegas. Talvez seja vítima de
desgosto recente e os olhos com que vê a queda da água não sejam indiferentes à
melancólica beleza da corrente. Talvez, enfim, seja apenas um dealer a variar de ponto de distribuição
por gosto ou cálculo e o telemóvel lhe trema nas mãos em resultado de um
mercado em alta e não de um astral em baixa.
quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013
A partir de “Portugal, finis terrae”, de Pedro Rosa Mendes
A Ler tem um novo número nas
bancas, mas aquele que é urgente ir comprar, para quem ainda não o fez, é o de
Janeiro. Por causa de “Portugal, finis
terrae”, esclarecedor ensaio de Pedro Rosa Mendes ali publicado. Nenhum
português deveria considerar-se informado (ou adulto) sem o ter lido. É um
texto escrito em tom vigoroso, porém sóbrio, acerca das origens históricas da
crise que vivemos. Informa, alerta e incomoda, não deixa quase ninguém incólume:
dos partidos da alternância à «Europa» (grafada com aspas, num interessante
paralelismo com o costume de Vasco Pulido Valente), passando pelos EUA. Talvez
poupe um pouco, em minha opinião injustamente, os portugueses enquanto povo.
A grande singularidade do texto de Pedro Rosa Mendes, a par da sua opinião
informada e da coragem com que ele a expressa, é a independência em relação às
instituições e em relação às tendências político-partidárias. Há, à esquerda e
à direita, outras pessoas no país que fazem diagnósticos coincidentes, pelo
menos em boa parte, mas as suas relações afectivas ou de interesses, o seu
comprometimento ou proximidade aos partidos, limitam-lhes a coerência,
tornam-nas inconsequentes, inúteis ou perniciosas. O mundo dos comentadores
políticos é geralmente um território de canto coral ou onde drapejam bandeiras.
É hoje para mim claro que o futuro português não pode ser construído
pelos partidos, estes partidos. Dos municípios ao Governo, o país precisa de um
reset, de se reinventar
politicamente, e isso não se consegue fazer com gente tão implicada, tão
cúmplice, tão presa aos métodos e aos desígnios das facções. Não se consegue
fazer com protagonistas que andam pelo país como mercenários a repartir
despojos ou por militantes que estão na política tão estupidamente como no
futebol.
Não se trata de tirar razão à esquerda ou à direita, de invocar um
hipotético centro virtuoso. Não tem nada que ver com esta posição ingénua,
igualmente maniqueísta, de consensos pantanosos.
Trata-se de dizer abertamente que os partidos portugueses são cancros
na sociedade e que detêm, em doses semelhantes, a culpa da situação que
vivemos. (Da culpa que podemos reivindicar como nacional — nunca deixemos a
«Europa» de fora disto.)
Como diz Rosa Mendes, «não haveria Passos Coelho sem Sócrates». Mas
quem pode verdadeiramente negar que Passos Coelho seria o Sócrates da década
anterior e Sócrates o Passos Coelho destes anos se a História lhes tivesse
concedido vencer eleições em períodos diferentes? Quem pode jurar, sem
hipocrisia ou cegueira, que distingue os Governos por muito mais do que o tempo
e as circunstâncias em que lhes calhou governar?
Há decerto elementos no actual Governo que têm as melhores intenções,
mas que liberdade lhes deixam ou que trabalho farão que não seja arruinado
pelos colegas menos escrupulosos e mais oportunistas? (E mais poderosos.)
Um país não se devia governar, mesmo em tempos de crise, com
sebastianistas, revolucionários, salvadores nomeados pelo Presidente ou pelas
instituições (nacionais e estrangeiras). Mas também é certo que jamais se
governará com a actual classe política.
A democracia ainda não foi destronada do pódio de melhor sistema de
governo, e não me parece provado que a democracia representativa tenha os dias
contados, que mereça ter os dias
contados. Apenas precisa de outros representantes. Precisa de uma faxina.
O problema é que em Portugal é muito difícil formar partidos políticos.
Não porque as leis e a burocracia sejam particularmente inexoráveis, mas porque
um novo partido em Portugal é sempre considerado uma coisa excêntrica, terá
previsivelmente um eleitorado da dimensão daquele que têm os partidos
monotemáticos, de âmbito e programa circunscritos a uma ideia e um punhado de
simpatizantes que se conhecem pessoalmente.
A vileza dos representantes em Portugal é pelo menos igualada pela
estupidez dos representados. O eleitorado português é suficientemente perspicaz
para reconhecer um cretino quando vê um — mas é também suficientemente
estúpido, ou está suficientemente implicado, para votar de novo nele.
Parecemos condenados a concluir como Pedro Rosa Mendes concluiu o
ensaio dele, utópica ou apocalipticamente: «Resta, pois, a rua, morada comum da
raiva.» De facto, as possibilidades anteriores à rua, numa escalada de tomada
de poder, parecem condenadas ao fracasso. Não se imagina que os independentes
bem-intencionados dos anos recentes da política portuguesa possam formar um
novo partido, mais sério e competente; não se imagina que esse partido fosse votado,
caso pudesse formar-se; mas também não se imagina que os partidos actuais possam
gerar anticorpos suficientemente poderosos para debelar a sua infecção interna.
Será um problema de imaginação aquilo que nos aflige? Ou de coragem (de fazer e
votar diferente)?
* Quem não conseguir comprar a Ler de Janeiro, pode encontrar aqui o
ensaio de Pedro Rosa Mendes: http://www.mynetpress.com/mailsystem/noticia.asp?ref4=4%23k&ID=%7B05DAEA92-2ABB-42ED-89ED-7F3F0B378A5D%7D
Mulher a rezar
Antes de se virar a esquina e iniciar a rampa do Calvário, há de cada lado
da estrada uma capelinha ou pequeno santuário com portão em barras de ferro. De
um lado está Cristo carregando a Cruz, do outro uma santa, provavelmente uma
das várias manifestações da Virgem. A mulher reza daquele lado. Numa observação
menos atenta, não se diria que reza: posição do corpo a três quartos, como quem
está de passagem e mal se deteve para uma espreitadela curiosa; sapatos e roupa
de sair em passeio; cabelo acabado de lavar no cabeleireiro; a carteira na mão direita,
a de fora, exactamente como quando ela se encosta ao vidro de uma montra a passar
os olhos pelos saldos ou pela nova colecção. Dir-se-ia visitante, turista, mas
a mão esquerda, firmemente agarrada a uma das barras do portão, impregnando-se de
ferrugem, segurando-se ali como náufrago à corda salvífica, confirma que reza.
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013
A guitarra que falava
Por timidez, desinteresse ou incompetência, sempre fui nalguns assuntos
um tipo um pouco retardado. Quando a isso se somavam as dificuldades
financeiras, eu podia ser bastante neandertal em relação à restante rapaziada.
E misantropo.
Um dia no intervalo das aulas um colega quis partilhar comigo a música
que ouvia no seu novo walkman.
Senti-me honrado, naturalmente, mas também assustado. Sabia que existiam mas nunca
tinha experimentado ouvir música numa coisa daquelas. Qual seria a sensação?
Como se ajustava o aparelho nas orelhas?
Acontece que o colega não queria apenas que eu ouvisse a música, queria
que reparasse como o guitarrista dos Lynyrd Skynyrd fazia falar a guitarra.
Eram muitas experiências novas para tão pouco tempo. Walkman. Guitarras que falam. Lynyrd Skynyrd (quem?). Ajustei os
auriculares e a primeira coisa que disse ou pensei foi que a música parecia vir
de todo o lado, ou estar dentro da nossa cabeça. O colega sorria. Eu ainda não
tinha interiorizado a experiência e, por educação, para não abusar da
generosidade, já me estava a obrigar a tentar decifrar o que queria ele dizer
com uma guitarra que fala. Havia um solo, sim, mas por mais que me esforçasse
não entendia nenhuma palavra — e já sabia algumas coisas de inglês. Para mim não
havia nada de metafórico no que me fora pedido: eu estava mesmo a tentar ouvir
uma guitarra a falar, balbucios que fossem.
Fingindo conhecimento e afectando desinteresse, acabei por dizer que
sim, de facto era uma guitarra eloquente, embora não apreciasse muito a música.
(Podia ter contemporizando mais, sido menos herético, dizendo-lhe apenas
que “não era sensível ao tema”— se fosse
capaz de usar com rapidez a ambiguidade das palavras, de pensar a tempo na
utilidade da sua amplitude semântica para uma boa convivência social.)
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