terça-feira, 23 de agosto de 2016

Montes ígneos

Da única janela da minha infância que dava para a serra, víamos à noite por vezes incêndios em curso. Ficávamos encavalitados uns nos outros a olhar o clarão ou as chamas com fascínio e medo, ou talvez antes aquele “respeito” que os antigos e a vida rural nos diziam ser o sentimento certo em relação a determinados fenómenos. De dia, ou quando ainda não eram horas de deitar, víamos passar os “homens da brigada” (que hoje se chamariam sapadores florestais) na caixa de carga de camionetas muito rodadas, negros das cinzas como carvoeiros, cabisbaixos como condenados, munidos de varapaus com tiras de pneu na ponta — chuços de uma milícia mal armada contra os demónios das brasas. Eram, para a minha memória, simultaneamente uns bravos e uns rejeitados — não constava que o seu trabalho fosse alvo de cobiça.
Naquele tempo, haver incêndios significava que havia floresta, a proporção da área ardida ainda não excedia a área arborizada. Lamentava-se como uma das fatalidades da vida, simultaneamente nefasta e previsível, incómoda mas inevitável, como a seca no Verão e as inundações no Inverno. Julgo até que se lamentava mais o perigo inerente às chamas — para casas, pessoas e animais — do que a “área ardida”. Esta forma de uma outra “burocracia” como a pequena sociedade local tratava os incêndios fazia-me pensar neles como um fenómeno da Natureza e, inspirado por leituras de sagas pré-históricas, imaginava chamas a serem despertadas por raios de trovoadas que não ouvira ou efeitos ópticos de pedaços de quartzo ou de fundos de garrafas esquecidos nos montes que, inexplicavelmente, as mais das vezes só à noite faziam convergir suficientes fotões para a ignição miraculosa.
Mais tarde, quando comecei a viajar, questionei-me porque não era um braseiro permanente o tórrido Alentejo, coberto em Agosto de uma palhiça que parecia capaz de arder apenas com a fricção de corpos que frequentassem o centeio. Mas o meu imaginário nessas primeiras viagens, embora já impudente, não saíra ainda muito dos livros juvenis: o seco Alentejo não tinha trovoadas, no desértico Alentejo não havia gente para esquecer vidros nos montes.
A minha casa actual tem uma ampla varanda para outra serra, e no que vai de Agosto já vi iniciarem-se à noite mais fogos do que tenho memória que acontecia em igual período na infância. Ainda há pouco começou outro, onde meia hora antes havia apenas o dorso escuro do Alvão, há agora chamas que sobem uma crista.
Talvez seja desta outra amplitude de vistas, que cobre uma área mais vasta, com mais hectares combustivos por metro quadrado de panorama fruível. Talvez a sofreguidão dos velhos atiçadores de Satanás — que noutras alturas eu imaginava serem afugentados pelos “homens da brigada” à força de chibatadas de borracha brandidas à distância de um cabo de sachola, pouco mais — aumente com a perspectiva de se lhes terminar o alimento um destes dias (o gado é mais inquieto e ávido onde o pasto é escasso, só se permite tempo e languidez onde ele abunda). Ou, tendo em conta que o mundo já não é explicado por antigas visões belzebúticas e que o moderno comércio já não tem muito que explorar naquelas encostas, talvez simplesmente o número de tolos pirómanos de aldeia tenha aumentado na mesma proporção em que aumentaram os vários tipos de tolos nas televisões.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Agosto em Aranda

— Eu sou do género de sair à noite com a música aos berros no carro, ainda sou — disse Mário. — Meto um CD e abro os vidros. É a minha forma de estar deprimido, não te rias. Não quero saber o que pensam os outros. Escolho o que de mais foleiro houver na minha discoteca. Não tenho nada assim de muito foleiro, mas sempre se arranja alguma coisa. Bem, não te vou enganar, há coisas bastante foleiras na minha discoteca. Mesmo hardcore, na verdade. Um tipo previne-se, não é? Se sabes que tens essa panca não ficas à espera que os discos te apareçam no carro. Compra-los. E olha que é preciso alguma atenção ao mercado do lixo. Comprar esterco exige um certo método, quando a tua formação é outra. Tens de te libertar de tudo o que aprendeste e tentar pensar como um imbecil, um falhado, um bimbo, ou seja lá como for que se designam os que genuinamente compram aquelas coisas.
— Antigamente era mais simples, estava tudo nas feiras, nos ciganos, e só ali. Passar por lá a ver aquelas capas e a ouvir aquelas canções era um prazer e uma grande galhofa. Ah, que castiço o povo, que típico. Que divertido misturarmo-nos e sermos condescendentes. Comprava-se uma cassete ou duas, para ajudar os vendedores e para as pormos de surpresa no leitor numa qualquer festa das nossas. Mijávamo-nos a rir com aquilo; trazer o vulgo para casa era divertido.
— Claro que de repente a foleirice não é só um divertimento inofensivo, é mainstream — Mário fez um parêntese. — Houve um tipo da televisão que também achou divertidíssimo levar aquilo para o seu show, queria rir-se e gozar à brava mesmo nas trombas dos pacóvios que iam lá interpretar as suas cantiguitas de tasca, embaixadores esforçados da província. O gajo ria-se e eles começaram a rir-se nas suas costas (talvez também na cara) e passaram a sofisticar-se e a teorizar sobre a sua arte, genuína e tal, verdadeiramente popular, e de repente aquilo saiu do esgoto, do submundo, da clandestinidade, e era o que estava a dar. O tipo da televisão, ou porque aquilo fez revelar-se a sua verdadeira face, ou porque viu a audiência mudar, deixou-se de Monty Phyton e mais não sei o quê e pintou o cabelo e abraçou incondicionalmente o povo. Isto é, em resumo, a história da TV nos últimos vinte anos. Deprimente, não é?
— Mas o que estava a dizer é que gosto de pôr a música aos berros no carro. Irrompo pela baixa com o que de mais brejeiro encontrar no porta-luvas e as pessoas admiram-se por aquele som sair deste carro, conduzido por um tipo bem-parecido, endinheirado, como eu. Ou não se admiram com isso, admiram-se por a matrícula não corresponder ao esperado; uma matrícula nacional, pode lá ser. Ou já nem se admiram de todo, eu é que alimento esta ilusão de originalidade. Creio que a única altura em que a minha atitude causa mesmo surpresa é quando chego atrasado e de volume no máximo aos concertos de música clássica da família. O velho bobo a regressar à corte, agregada em volta de Mozart como numa missa contra as invasões bárbaras.
— Mas não era de dramas existenciais que te queria falar. Ouvir música aos berros não é só a uma forma de épater le bourgeois (expressão irónica na minha boca, não? Gosto dela). É um estímulo de que necessito amiúde. Claro que também ouço coisas decentes. Tenho a minha própria banda sonora. E para esta viagem tinha de ser realmente criterioso. Não estamos apenas a ir de um sítio a outro. Estamos a recuar no tempo, estamos a passar de uma época para outra. É isso o que realmente me excita nesta ideia. Voltar a Aranda… Voltar a Aranda é como viajar no tempo.
— Bem, trouxe os cedês adequados. 

in Aranda

Agosto

O mês de Agosto de 2016 difere do mês de Agosto de 1986 e do de 1996 em não haver diferenças entre a música aos berros de carros de emigrantes e a música aos berros de carros de residentes. Prova, talvez, de que a União Europeia funcionou.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Dirty, dirty Harry

Parece que Clint Eastwood reafirmou o seu republicanismo façanhudo (à americana), desta vez defendendo o voto em Trump e desvalorizando as suas declarações racistas. Isto é típico em Eastwood. Coisa atípica, se tivermos em conta as habituais posições políticas do actor e realizador, foi o Gran Torino. Ou talvez não, talvez tenhamos de ver o filme de novo. Possivelmente na primeira ocasião comovemo-nos com a já respeitável idade do homem ou iludimo-nos com a (nossa) muita humana vontade de redenção. Julgávamos que o envelhecimento lhe amolecera o músculo cardíaco e temperara as ideias, mas provavelmente Clint Eastwood não deixara de ser Dirty Harry e Gran Torino é bom mas hipócrita — ou nós vimo-lo mal.