Da única janela da minha infância que dava para a serra, víamos à noite
por vezes incêndios em curso. Ficávamos encavalitados uns nos outros a olhar o clarão ou as
chamas com fascínio e medo, ou talvez antes aquele “respeito” que
os antigos e a vida rural nos diziam ser o sentimento certo em relação a
determinados fenómenos. De dia, ou quando ainda não eram horas de deitar,
víamos passar os “homens da brigada” (que hoje se chamariam sapadores florestais)
na caixa de carga de camionetas muito rodadas, negros das cinzas como carvoeiros, cabisbaixos
como condenados, munidos de varapaus com tiras de pneu na ponta — chuços de uma
milícia mal armada contra os demónios das brasas. Eram, para a minha memória,
simultaneamente uns bravos e uns rejeitados — não constava que o seu trabalho
fosse alvo de cobiça.
Naquele tempo, haver incêndios significava que havia floresta, a proporção da área ardida ainda não excedia a área arborizada. Lamentava-se como uma das fatalidades da vida, simultaneamente nefasta e previsível, incómoda mas inevitável, como a seca no Verão e as inundações no Inverno. Julgo até que se lamentava mais o perigo inerente às chamas — para casas, pessoas e animais — do que a “área ardida”. Esta forma de uma outra “burocracia” como a pequena sociedade local tratava os incêndios fazia-me pensar neles como um fenómeno da Natureza e, inspirado por leituras de sagas pré-históricas, imaginava chamas a serem despertadas por raios de trovoadas que não ouvira ou efeitos ópticos de pedaços de quartzo ou de fundos de garrafas esquecidos nos montes que, inexplicavelmente, as mais das vezes só à noite faziam convergir suficientes fotões para a ignição miraculosa.
Naquele tempo, haver incêndios significava que havia floresta, a proporção da área ardida ainda não excedia a área arborizada. Lamentava-se como uma das fatalidades da vida, simultaneamente nefasta e previsível, incómoda mas inevitável, como a seca no Verão e as inundações no Inverno. Julgo até que se lamentava mais o perigo inerente às chamas — para casas, pessoas e animais — do que a “área ardida”. Esta forma de uma outra “burocracia” como a pequena sociedade local tratava os incêndios fazia-me pensar neles como um fenómeno da Natureza e, inspirado por leituras de sagas pré-históricas, imaginava chamas a serem despertadas por raios de trovoadas que não ouvira ou efeitos ópticos de pedaços de quartzo ou de fundos de garrafas esquecidos nos montes que, inexplicavelmente, as mais das vezes só à noite faziam convergir suficientes fotões para a ignição miraculosa.
Mais tarde, quando comecei a viajar, questionei-me porque não era um
braseiro permanente o tórrido Alentejo, coberto em Agosto de uma palhiça que
parecia capaz de arder apenas com a fricção de corpos que frequentassem o centeio.
Mas o meu imaginário nessas primeiras viagens, embora já impudente, não saíra ainda
muito dos livros juvenis: o seco Alentejo não tinha trovoadas, no desértico
Alentejo não havia gente para esquecer vidros nos montes.
A minha casa actual tem uma ampla varanda para outra serra, e no que
vai de Agosto já vi iniciarem-se à noite mais fogos do que tenho memória que
acontecia em igual período na infância. Ainda há pouco começou outro, onde meia
hora antes havia apenas o dorso escuro do Alvão, há agora chamas que sobem uma
crista.
Talvez seja desta outra amplitude de vistas, que cobre uma área mais
vasta, com mais hectares combustivos por metro quadrado de panorama fruível.
Talvez a sofreguidão dos velhos atiçadores de Satanás — que noutras alturas eu
imaginava serem afugentados pelos “homens da brigada” à força de chibatadas de borracha
brandidas à distância de um cabo de sachola, pouco mais — aumente com a perspectiva de se
lhes terminar o alimento um destes dias (o gado é mais inquieto e ávido onde o pasto
é escasso, só se permite tempo e languidez onde ele abunda). Ou, tendo em conta
que o mundo já não é explicado por antigas visões belzebúticas e que o moderno
comércio já não tem muito que explorar naquelas encostas, talvez simplesmente o
número de tolos pirómanos de aldeia tenha aumentado na mesma proporção em que
aumentaram os vários tipos de tolos nas televisões.
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