sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Narciso

Estava há poucos dias no seu novo emprego de recepcionista de uma clínica dentária quando reparou no rapaz que todas as tardes passava em frente à porta envidraçada da rua e espreitava para o interior. De início foi só a curiosidade de ver quotidianamente um gajo bonito, fazer apostas consigo mesma sobre se viria hoje, sem atraso, se olharia. Depois, convenceu-se de que aquela passagem já não era uma coincidência, que havia um motivo, e que o motivo era ela. O rapaz descobrira por acaso a nova recepcionista atrás do balcão, encantara-se e, porque era tímido, não ousava entrar, limitava-se a fazer olhares, expressões subtis e gestos mais ou menos discretos no tempo que demorava a percorrer os três metros de envidraçado. Algumas semanas mais tarde, por iniciativa e manobras dela, que o foi descobrir nos locais onde ele parava à noite, ficaram de certa forma namorados. Na última vez em que estiveram juntos, ela fez um escândalo porque ele não parava de olhar por cima do ombro dela para uma rapariga noutra mesa, com aquelas expressões que conhecia bem.
Tivesse ela sido capaz de se pôr no lugar dele, quer dizer, tivesse ela experimentado a perspectiva dele naquela mesa (sentando-se no lugar do rapaz, de frente para o espelho da parede ao fundo) e quando passava em frente à clínica (optando um dia por entrar pela porta dos clientes, espelhada pela luz da rua, em vez de pela porta de serviço, como sempre fazia) e teria descoberto que os olhares do rapaz eram uma coisa dele consigo mesmo. Não teria encetado o namoro, é certo, mas teria também poupado uma cena de ciúmes sem causa

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Futebol

Há muito que o mundo do futebol vive, já não num estado de excepção, mas numa «norma» que contamina o resto da sociedade e transforma em politicamente incorrecto o que vou escrever a seguir.
No futebol, uma falta intencional, mesmo que provoque lesão no jogador adversário, pode ser não só desculpada ou louvada mas também desejada, implorada pelos dirigentes e aficionados, se ela tiver importância no resultado do jogo — a única coisa que verdadeiramente passou a interessar, o fim que justifica todos os meios.
Jornalistas e escritores, outrora classes respeitadas, e até artistas pop, vão para as televisões debater com minúcia durante horas intermináveis os «casos do jogo» e, entre risadinhas ou leves indignações, lá arranjam forma de desculpar a falta, de a compreender ou de a justificar, se se dignam sequer falar dela duma perspectiva «moral», digamos. De resto, esta estirpe de intelectuais suspende alegremente o juízo crítico, a serenidade racional e o esforço de isenção quando se trata de futebol porque, já se sabe, a paixão clubística desculpa-se e a condição de associado pressupõe lealdade cega.
O futebol é, em suma, um particular mundo viril e neste particular mundo viril não se aplicam os princípios gerais da civilização. E desta forma gerações de pais levam gerações de filhos pequenos ao futebol e estes vão assimilando os comportamentos, a linguagem, a duplicidade de critérios, o pensamento fanático, a ideia geral de que tudo o que aprendem na escola ou «no lado feminino» da família pode ser rasurado se houver um enquadramento futebolístico.
E quase tudo vai tendo hoje um enquadramento futebolístico, ou tribal, se quisermos. A política, desde logo, onde, mais do que qualquer programa ideológico ou ideia de serviço público, nalguns partidos já vigora a fidelidade a líderes ou a facções organizadas para a mera conquista do poder. Mas também nas discussões sobre temas sociais, com os contendentes a cerrarem fileiras em claques que procuram vencer pelo ruído e pelo insulto. Pela «falta», se necessário.
Não admira que esta manhã, a propósito do caso Marega, se escreva um pouco por todo o lado que «no futebol sempre houve cânticos racistas e isso não costumava ser um problema.» E que o único deputado único candidato a fascista possa vir dizer que basicamente somos todos uns mariquinhas e ser aplaudido por milhares de energúmenos, alguns ainda a passarem por pessoas respeitáveis.

Ondas fundidas

O leitor de CDs do Chevrolet avariou há uns meses deixando-me refém das estações de rádio quando o silêncio se me torna perigoso por ir a conduzir demasiado desperto. Hoje a Antena 3 estava mais chata do que o habitual, com uma playlist que era uma egotrip de um apresentador qualquer. Mas só fui tentar a Antena 3 depois de passar sem ficar pela M80 (esse pecadilho geracional) porque a Antena 2 estava com uma intromissão. A meio de uma sinfonia simpática tinha começado a ouvir vozes. De início julguei que eram as vozes da minha cabeça a interferir com as ondas de rádio, mas notei que aquelas vozes tinham uma conversa um pouco mais cordial do que as minhas.
Algumas experiências de sintonização mais tarde, descobri que na zona do país em que circulava a Antena 2 e a Antena 1 estavam a partilhar a mesma frequência. Alguém no Lumiar ou lá onde é trocara inadvertidamente os fios ou carregara no botão errado, pensei. Mas no regresso, um par de horas depois, o problema persistia e agora era já o futebol que disputava as ondas com uma agudíssima soprano.
Demasiado pessimista para acreditar em conspirações benignas, nem por um momento imaginei, romanticamente, que alguém estava a boicotar o futebol com ópera. Não. Concluí logo que se tratava de uma acção pouco subtil para acabar com a alternativa clássica em favor do desporto único. Por estes dias já não há desaforos interditos para os sabotadores da civilização.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Micção e valores

Uma e vinte da noite. A CMTV, no estrito cumprimento do seu dever moral, passa repetidamente um vídeo em que um alemão tatuado de trinta anos, como diz a legenda, urina num carro da PSP e ri. André Ventura e dois outros tipos comentam, graves. No tasco onde me retiro para ler e observar a vida selvagem, os poucos clientes e os funcionários, habitantes de madrugadas consecutivas de televisão daquela, indignam-se num coro mecânico, esperado. Lá fora, ignorando a pequena crise hertziana, as primeiras vagas de banais estudantes da universidade local começam a migração entre um bar e outro. Se a natureza apertar, como sói apertar, chegar-se-ão a uma esquina, a um poste, à penumbra azarada da entrada de um prédio, a uma árvore sobrante, ao pneu de um carro — da PSP, se tiver de ser — e urinarão, rindo, injustamente ignorados pelo televangelismo nacional.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Corvos-marinhos

É claro que há temas mais importantes e urgentes para comentar, mas as minhas notas do último mês resumem-se a quatro tópicos: «corvos-marinhos», «guarda-chuva», «raspadinha», «ler no café dos freaks». Ajuda talvez esclarecer que tomo notas mais por impulso sensual do que por imperativo intelectual. Uma epifania bucólica — já para não dizer pós-prandial — faz-me abrir o bloco-de-notas do telemóvel; um achado filosófico ou uma ponderosa conclusão política sob o duche lembram-me a trabalheira que dá construir uma argumentação e, ainda que honestamente comprometido com o dever de intervir, procrastino.

Opto assim pelos corvos-marinhos, e já menos para cumprir a inspiração do que para disfarçar a inércia.

Não os havia, tanto quanto sei, corvos-marinhos, assim como não havia garças-reais, cegonhas ou esquilos, no meu próprio e privado condado de Yoknapatawpha. Nas últimas duas décadas e meia toda esta fauna começou a aparecer, como que sublinhando a penas e caudas farfalhudas os índices de desertificação do INE (a disseminação de algumas espécies percorre o caminho inverso do crescimento populacional humano).

Descobrir novas espécies no meu próprio território foi talvez o que mais próximo tive de um deslumbramento a la Jules Verne (muitos anos depois de os ter lancinantemente desejado enquanto lhe lia os livros). Pode-se sentir o maravilhamento de um Attemborough por umas horas ou uns dias quando não se conta com novidades faunísticas na zona e sobretudo quando se é razoavelmente ignorante em questões zoológicas. Comecei, creio, por pasmar de queixo erguido ao longo de escassos quilómetros da planície ribeirinha do Avelames quando vi os primeiros bichos a planar que não eram aves de rapina e, percebi então, eram cegonhas, que só conhecia vagamente de condados distantes. Poucos anos depois persegui com a discrição possível enquanto fazia jogging na Nacional 206 a cauda encurvada e ruiva de um esquilo, sem saber então que pertencia a um esquilo. Em anos mais recentes, foi a garça-real que entrou para o meu zoo, à beira Corgo, sem se mexer, simplesmente pousada, encolhendo fleumática e premonitoriamente os ombros, no tronco curvado de um pinheiro (que, by the way, já não existe, e também isto é simbólico). Demorou-me uns dias e custou-me um guia ilustrado de aves descobrir-lhe a raça, mas ficámos amigos. A mais recente descoberta (não conta, por ser mascote urbana, o furão que me invadiu a varanda do terceiro andar num mês de Agosto e me deixou umas horas a ponderar-lhe a espécie e a ameaça fofa dos dentes) foi um par de corvos-marinhos que vi há quinze dias pousado em ramos altos junto ao lago, primeiro confundindo-o, em douta peritagem, com crias crescidas de garça-real e depois, ao notar que os bichos tinham pés de pato, buscando rendido na Internet outra genealogia.

Não tem interesse nenhum para a magna questão dos populismos na Europa este pasmar com espécies avícolas no perímetro de um lago, bem sei. Mas pareceram-me adequadas, agora que com a oficialização do Brexit se retoma a época da fox hunting, umas linhas de genuína zoofilia britânica, não como comentário, mas como lamento político.