tag:blogger.com,1999:blog-104671732024-03-05T11:30:59.389+00:00Os Canhões de NavaroneRui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.comBlogger1289125tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-60537129972762535292024-02-27T03:33:00.007+00:002024-02-27T03:53:06.838+00:00«Tratar de acabar»<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEifUP8gDn6yQfQK1EyA7vo6Dic3PRs66SbqlNzFZNlPBLpzTOrgmhHa2x861qmQGQOHLV29wVA41qjIVtLBaMuYOdKCQdkhjk8AEavSmJZTMvj_KWLuIkN1G_P3kzCBarcB7wg_lG7qFR157B0Hsp0J8kmRF1fv8CijryL2_zY6uOWIsg9wAaIc/s800/7l1b76713o4b1.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="600" data-original-width="800" height="240" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEifUP8gDn6yQfQK1EyA7vo6Dic3PRs66SbqlNzFZNlPBLpzTOrgmhHa2x861qmQGQOHLV29wVA41qjIVtLBaMuYOdKCQdkhjk8AEavSmJZTMvj_KWLuIkN1G_P3kzCBarcB7wg_lG7qFR157B0Hsp0J8kmRF1fv8CijryL2_zY6uOWIsg9wAaIc/s320/7l1b76713o4b1.jpg" width="320" /></a></div><p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">A carrinha descia o caminho
de terra com o seu ar de tartaruga de lata. O motor era velho e expelia pelo
escape um fumo branco estranhamente homogéneo, num fluxo regular, contínuo, sem
os sobressaltos ou os soluços que seriam de esperar numa máquina daquela idade.
À distância, não se via um rasto de dióxido de carbono a desvanecer-se, mas a
sugestão de uma cauda de algodão que despontava da carroçaria. O motorista, de
vez em quando, pisava brevemente o acelerador e o veículo dava um ronco curto,
com os pneus a patinar um pouco no saibro, como uma fera das montanhas que
grunhisse e esgaravatasse o solo. Um pastor apoiava os queixos no cajado, à
espera que a carrinha deixasse o caminho livre para o rebanho. Um cabrito preto
com o focinho branco foi roçar-lhe as pernas e ele, sem olhar, acariciou-lhe a
cabeça como faria a um dos seus cães. Resultava algo insólito aquele afecto
mútuo entre duas espécies que ocupavam não exactamente o mesmo lugar na cadeia
alimentar. Depois o pastor retomou o passo, bradando obscenidades e batendo com
cajado no chão. Quando o rebanho reagiu ao seu comando como um único corpo, ele
começou a cantarolar num tom alto e descomplexado. Os dias de solidão nos
montes eliminavam alguns pudores. Não havia, para ele, estranheza nenhuma em um
homem cantar de forma audível, sem estar bêbado, melodias antigas e brejeiras.
Um tipo que convive sobretudo consigo próprio desinteressa-se, ao fim de uns
anos, de muitas das convenções sociais. Do outro lado da ravina, um milhafre
observava a cena, parado numa das correntes de ar ascendentes. De vez em quando,
dava involuntariamente um salto para cima, como se subisse um degrau, e então
batia as asas para retomar a sua condição estática. Mas na maior parte do tempo
conseguia permanecer verdadeiramente imóvel, suspenso no ar como se o tempo
tivesse parado, manobrando somente, de forma imperceptível, algumas penas das
pontas das asas e do rabo. Depois a corrente afrouxava ou tornava-se mais forte
e ele era de novo impulsionado ou tinha de se servir das asas para evitar
descer demasiado.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt;"> </span><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">Era grotesco que o
mundo exterior se revelasse tão bucólico e indiferente numa altura em que o
homem se preparava para o deixar. A natureza não se importava nem um pouco com
os estados de espírito alheios à mecânica habitual. O resto da humanidade seguia-a
nesta premissa. Ele espreitava a pistola pousada nas pernas e conseguia ter por
aquele pedaço de metal frio e antiquado um sentimento positivo. Sempre desejara
possuir uma arma. Não como garantia de segurança, nem por fetiche (não era um
daqueles tarados que atingiam paroxismos com artefactos militares). Apenas
tinha consciência de que haveria um dia como este e não quereria deixar de
estar na ponta de um cano quando ele chegasse. Tinha imaginado as coisas de um
modo diferente, claro — ninguém nas redondezas, um dia cinzento, vazio, sem
simbologias, sem afectos de espécie alguma, nem sequer aquele entre um pastor e
uma cria de cabra. Mas agora tinha de lidar com isto: ter um quadro agradável e
prosseguir.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt;">A carrinha enferrujada
acabou por ser apenas uma marca leve na retina, o rebanho fazia soar as
campainhas a uma distância surpreendente (andava rápido, o rebanho), e só o
milhafre se mantinha dedicado ao seu exercício de testemunha ou assombração, servindo
simultaneamente de fiel de balança a uma velha querela entre a gravidade e certos
ventos brandamente obstinados. Não, o homem não queria acreditar que acabara de
lhe ocorrer disparar a arma na direcção do raio do pássaro. Era um pensamento
estúpido de se ter em qualquer circunstância, mas nesta era sobretudo patético,
duma comicidade dispensável. Meteu o cano na boca, como uma ameaça, mas depois
percebeu que não falara e encostou-o à têmpora. Os pensamentos obedeceram e ele
voltou a pousar a pistola. Havia que meditar num punhado de coisas e não tinha
muito tempo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt;"> </span><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">O homem fechou os
olhos por uns segundos, para limpar a mente, mas o pregão indecoroso do pastor,
vindo de trás da colina, chegou-lhe aos ouvidos, e não resolveria encostar neles
a arma. Esperou e teve por fim silêncio. Era mais favorável, o silêncio. Trazia
com ele o susto, e ele necessitava do susto para o seu empreendimento. Acercou-se
mais do precipício. Estava na beira de uma garganta, no fundo da qual um
ribeiro se despenhava em pequenas cascatas sucessivas; era um sítio conhecido,
não havia muitos como aquele, e ele contava com isso para ser entendido — e
descoberto. Depois de rebentar com os seus próprios miolos, o corpo deveria
cair para o lado do abismo, e, com sorte, esmagar-se-ia numa plataforma rochosa
imediatamente à superfície do leito nervoso, perfeitamente visível para quem
espreitasse dali de cima. Não tencionava ter um último gesto de mau gosto, não
era isso.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt;"> </span><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">Outro objecto: a
velha guitarra </span><i style="font-family: Calibri, sans-serif; font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">Ovation</i><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">, de caixa
sintética negra e abaulada na parte posterior. Iria dedilhá-la por uns minutos,
como supunha que alguém no leito de morte afagaria uma amante, com dedos
trémulos de amor e angústia. Talvez soletrasse também uma das suas antigas canções,
um </span><i style="font-family: Calibri, sans-serif; font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">blues</i><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;"> em que a letra não encaixava
bem (métrica arrevesada). As cordas de </span><i style="font-family: Calibri, sans-serif; font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">nylon</i><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">
eram de uma suavidade que os dedos apreciavam. Puxou-a para junto de si,
deixando a pistola por minutos na terra húmida. Sabia que aquilo iria invocar
memórias, mas estava disposto a correr o risco. Na verdade, talvez o fizesse
por isso mesmo.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt;">O vento frio de
Dezembro dava-lhe na cara e ele lacrimejava. Era ridículo que só por essa razão
o fizesse e que isso lhe provocasse prazer. Usava agora as unhas curtas e
levava uma dúzia de anos sem praticar. Os primeiros acordes saíram imperfeitos,
faltava-lhe destreza na mão direita e não pressionava bem as cordas com os
dedos da outra. No entanto, aquele som tosco era aprazível. Nos seus melhores
tempos, costumava ficar horas a tanger a guitarra pelo simples prazer de ouvir
o timbre das cordas. Nessas alturas, dispensava a melodia; a vibração ocasional
de uma nota era suficiente para o excitar e o conduzir a um delicioso torpor.
Não o assustava que houvesse uma ponta de demência neste desinteresse pela
harmonia ou por uma pauta. Debruçava-se muito sobre a caixa de ressonância da
viola, não tanto para ouvir com distinção as notas soltas como para sentir a
vibração no peito. Envolvia assim mais do que um sentido; empenhava-se
fisicamente no exercício. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt;">Ao fim de uns minutos
a canção começou finalmente a desenhar-se. Não era muito original (pode um <i>blues</i> ser original?), mas tinha
carácter. Claro que o homem não estava com ânimo para projectar a voz. Se
houvesse alguém nas redondezas dificilmente perceberia que ele cantava. A dez
metros o que se ouvia era um murmúrio, o tipo de ruído que um praticante de meditação
oriental de cliché debitaria. A letra era previsível, paixões frustradas, a
velha e estúpida história sobre o amor entre homens e mulheres. Irritou-se e a <i>Ovation</i> foi estatelar-se no fundo
penhasco. Começava a sentir falta do aço frio da <i>Walther</i>.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt;"> </span><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">Esperar um desfile
era a coisa errada de se fazer, mas ele passou algum tempo com o olhar marrado
de um perdigueiro a pensar que isso aconteceria. Os rostos do passado a
comparecerem para um último </span><i style="font-family: Calibri, sans-serif; font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">rendez-vous</i><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">.
Não um ajuste de contas, não era isso. Também não estava a pensar numa
recapitulação </span><i style="font-family: Calibri, sans-serif; font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">post mortem</i><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">, ou </span><i style="font-family: Calibri, sans-serif; font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">tempore
mortis</i><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">. Era algo diferente. O passado era um sítio de névoas e meias
palavras. De equívocos. Parecia-lhe adequado que um dia as pessoas pudessem
conversar sem o detalhe de terem de coexistir. Uma conversa franca, sem trunfos
na manga, eis algo que ele sempre achara que poderia ter lugar no final do
jogo, ou melhor, do confronto. Conversar abertamente era uma opção que não
estava vedada aos pugilistas depois do combate. Seria absurdo que as pessoas
tivessem de morrer sem experimentarem essa possibilidade. Havia conversas que
ele considerava forçoso terem lugar. Tanta coisa fora escondida, tantos
mal-entendidos, tantas relações ficaram pela superfície. Viver era somar
enganos, fingir, e o homem fingira abundantemente. Dado que era ele que se
despedia, a necessidade de reencontrar pessoas não era uma coisa para seu
benefício. Sim, talvez houvesse uma questão de ego, a vontade de retocar o
retrato para a posteridade, mas mais do que tudo pretendia um último gesto de honradez.
Em muitos dos casos, retocar a imagem significava uma espécie de crueldade.
Lamentava tanta hipocrisia de que fora capaz e retractar-se disso não seria uma
herança simpática.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt;">Mas à sua volta agora
havia apenas silêncio e o ar cortante do solstício. Não lhe seria dada a
oportunidade de que se achava credor. Talvez passassem por ali mais alguns
pastores, entre eles a rapariga muda e pasmada e bonita à sua maneira bravia que
conhecia de outras ocasiões, mas nada tinha a dizer a tais personagens. Não
serviriam para lhe acolher as disposições testamentárias; entabular a última
conversa com qualquer deles era um sucedâneo sem interesse. Nada teria que
temer dos pastores, era certo: nem um o demoveria. Talvez ficassem por ali um
bocado, a olhá-lo, aguardando o tiro e a queda, curiosos quanto ao desfecho,
mas sem nenhum outro interesse nos acontecimentos. Estabelecer comércio com
eles apenas serviria para atrasar um processo que estava irremediavelmente
iniciado. Com a rapariga viria ainda o risco de ressuscitar na carne do homem
um desejo que já não tinha vez. Restava-lhe desenrolar os últimos pensamentos e
ceder à ideia mórbida de experimentar o ponto de vista dos que teriam de lidar
com a recolha dos restos mortais. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt;"> </span><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">Antes de todos,
apareceria Sílvia, a doce Sílvia. Ninguém a anteciparia nesta conclusão. Ele
enviara um </span><i style="font-family: Calibri, sans-serif; font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">e-mail</i><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;"> para todos os seus contactos.
Dizia apenas “Adeus”. Depois do desaparecimento, seria um instante até que se
cruzassem informações. O homem não era de dizer nada, muito menos por </span><i style="font-family: Calibri, sans-serif; font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">e-mail</i><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">. Uma despedida com tão ampla
audiência significaria necessariamente alguma coisa. Um tipo que não faz piadas
não começa de repente a fazê-las. O seu adeus é de facto um adeus, nada mais
nem menos do que um adeus. Como não estava próximo da reforma nem tinha férias
marcadas no calendário, aquela palavrinha intrigante conduziria os pensamentos
dos destinatários exactamente para onde ele pretendia. Seria então que todos descobririam
a dimensão da sua ignorância sobre a vida do homem.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt;">Todos não, Sílvia lembrar-se-ia.
Ele imaginava-a a duvidar alguns momentos antes de se convencer a si própria de
que tinha a melhor pista. Ela iria invocar um período da sua vida. No início,
fá-lo-ia contrariada, como quem vacila antes de entrar num compartimento
escuro. Depois, penetraria lentamente na penumbra, com um meio sorriso, e
acenderia a sua lanterna. O feixe de luz evidenciaria muitas coisas que a
incomodavam, mas devolveria ao olhar outras que ela não poderia propriamente classificar
como pérfidas. Seria neste preâmbulo, quando se detivesse nesta parte das suas
memórias, que Sílvia ouviria algumas campainhas. Ela e o homem tinham vezes sem
conta frequentado aquele exacto varandim sobre o rio. Era uma coisa
clandestina. Ninguém sonhava que um homem como ele e uma mulher como ela pudessem
estender-se lado a lado, por decisão e com prazer, num sítio assim. Mas eles
fizeram-no. E era então que ele executava o velho número de circo, se punha a
fazer o pino à beira do precipício. Fazia-o com certo risco, mas a vertigem que
ela sentia na altura vinha directamente do olhar do homem, como um presságio. E
ele sublinhava-a declarando secamente que, depois de morto, haveria de querer
que as suas cinzas fossem lançadas daquele local para a corrente lá no fundo.
Ela achava sempre de um extremo mau gosto que ele falasse daquilo nos encontros,
e dizia-o com voz aguda e mãos sobre os olhos. Ele quase se ria e provocava-a
mais. Declarava que talvez não fosse necessário esse incómodo, talvez ele
próprio se lançasse dali ainda antes de ser cinza. Depois faziam amor e, por
algum tempo, tudo ficava bem.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt;"> </span><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">A pastora muda acabou
por se assomar e as divagações do homem cessaram. Trazia o rosto vermelho e
sujo do costume — talvez um resto de remelas nos olhos, os cabelos oleosos
presos num rabo-de-cavalo apressado ou desajeitado —, mas só uma
insensibilidade granítica lhe negaria a beleza e a sensualidade. Amarrara o
impermeável gasto na cintura, o que lhe realçava o busto, que pressionava de
dentro e para cima a camisola grossa de lã. Seria, por força das
circunstâncias, uma rapariga rude, algo estúpida, talvez; ou então não,
frequentava o colégio da vila e ao fim-de-semana retomava placidamente o seu
lugar na vida selvagem da montanha. O homem não sabia nada disto. Em encontros
anteriores tinham-se limitado a esta exacta contemplação mútua. Dir-se-iam dois
elementos de tribos ou civilizações com origens reciprocamente nos antípodas.
Ele não deixara de se sentir um pouco colono ou ocupante ou repórter de
exotismos, a observar o rosto rústico como uns séculos antes se fizera em
África e na América. Ela devolvia-lhe o pasmo, no seu papel de indígena
curiosa. Mas o que havia nela de Pocahontas da serra rapidamente brotava à
superfície da pele crestada e dura. Ou pelo menos o homem era capaz de imaginar
isso. Sentia por ela um desejo erótico indubitável mas só vagamente insinuado, e
não pela sinalética habitual. Não se tratava de uma Lolita: ela não exibia,
mesmo no verão, mais pele do que aquela que tinha no rosto e nos punhos. Mas o
olhar franco e sustentado, desafiador, os olhos inesperadamente azuis e os
lábios num constante beijo infantil exerciam com suficiência o seu papel
lascivo. Depois, algum dos animais do rebanho tresmalhava-se e ela abria
instintivamente a boca para cumprir o seu ofício. Saía-lhe um gemido rouco que
denunciava a inadequação do seu aparelho vocal. Falava com os animais, mas a
língua enrolava-se de uma maneira particular naquele frasear, e o seu idioma
era imperceptível para os outros humanos. Os bichos entendiam-na e retomavam o
caminho certo. Neste processo, o desejo sexual do homem era transportado para
uma nova dimensão. Havia algo de bizarro naquilo, possivelmente, mas no que
afastaria outros machos via ele subtilezas afrodisíacas. Comparava os gemidos
que a rapariga haveria de dar na cama com os de outras mulheres e não sentia
que a pastora saísse diminuída do cotejo.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt;">Nunca os separou
menos do que uma dúzia de metros, mesmo quando ele fazia inflectir a sua
caminhada para uma trajectória que se cruzava com a dela. A pastora sabia
algumas coisas de geometria e os seus passos desenhavam figuras elípticas que
lhe permitiam evitar a proximidade. Não teriam como falar, evidentemente,
embora o homem acreditasse que havia suficiente comunicação entre eles. Esta
fuga encenada da rapariga era apenas uma das partes do jogo, também ela parecia
conduzir o seu rebanho em função do posicionamento daquele homem grave e
silencioso, perscrutador. Se ele, ao invés de vir ao seu encontro, se deixava
cair debaixo de alguma árvore ou encostava a uma pedra das redondezas, absorto
nas suas deambulações, ela sabia detectar-lhe a presença e encontrava caminhos
que os manteriam na órbita um do outro.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt;">Não poderia haver
sexo entre eles, mesmo que a questão se pusesse. Talvez ela não tivesse senão
uma consciência animal deste assunto, um profundo instinto de reprodução
despido de considerações eróticas. No entanto, o homem sabia-se por vezes
observado por um par de grandes olhos azuis quando ocorria manter relações com Sílvia
no seu local favorito. Que curiosidade aguentava a pastora ali, que
aprendizagem tinha lugar? Seria que o grau de desenvolvimento intelectual que o
homem lhe atribuía era equivocado e ela os espreitava com genuína e vulgar
curiosidade adolescente, o desejo a despertar, ou mesmo em ebulição?
Tocar-se-ia enquanto eles copulavam?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt;">O homem já não tinha
tempo para perceber a dimensão do seu preconceito, da sua ignorância. A
rapariga aparecera-lhe com um olhar diferente, como certos animais que farejam
a morte. Pensou ver no rosto dela um pequeno esgar de comiseração, uma súplica
ainda mais muda do que ela própria. Ela viu a pistola e não teve qualquer
sobressalto, como se desviasse os olhos para ali apenas para confirmar algo que
já sabia. Ele pegou na arma pela coronha e acariciou o cano negro com a outra
mão. Fez o esforço de sorrir levemente, como se dissesse que estava tudo bem,
não era um momento dramático, não seria uma tragédia aquilo que ia ali ter
lugar. Era outra coisa. A rapariga teve o que lhe pareceu um imperceptível
gesto de assentimento (ou seria um encolher de ombros?) e virou-se para o gado,
com um grunhido que a devolveu à existência bruta de que, ao fim e ao cabo,
talvez só tivesse saído em alguns momentos na imaginação do homem. Era cada vez
mais tarde, mas ele não podia deixar de ficar a olhar para as costas dela até
que se tornassem indistintas todas as curvas femininas que nela existiam.</span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">O estampido ficou a
ecoar durante algum tempo no despenhadeiro. A passarada esvoaçou em pânico ou,
se mais longínqua, aninhou-se nos galhos tétricos do Inverno, sem saber de onde
vinha a ameaça. As cabras que subiam as arribas do lado oposto detiveram-se com
os pescoços hirtos e os olhos arregalados. As crias encostaram-se-lhes nos
quartos traseiros. Só um velho bode, com um avental amarrado a meio do abdómen
(pendente como os órgãos sexuais cuja actividade inibia), teve o sangue-frio de
retomar de imediato a degustação de arbustos e tufos. O resto do mundo pareceu
fugir ou ficar expectante. A pastora sentiu certos músculos das costas
retesarem-se. Aguardava-se a qualquer instante um cadáver lá no fundo, onde as
águas revoltas lambiam até fazer espuma a beira da plataforma rochosa. O homem
viu ou intuiu tudo isto. Tinha a testa vermelha e a arder de ter encostado ali
o cano, no momento em que desviou o ângulo do disparo. Tinha também um resto de
erecção — ignorava se em memória da rapariga selvagem, se como o último
estertor do enforcado. Depois pôs-se de pé, deixou cair a pistola junto ao
corpo e, dando um impulso como os mergulhadores, lançou-se de cabeça apontada
às rochas, sem a proteger com os braços. Não houve agonia mensurável, velho
receio; uma parte do crânio estilhaçou-se ao mesmo tempo que o pescoço
quebrava, e o cadáver ficou em posição inconcebível.</span><span style="text-align: left;"> </span></p>Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-76798303193050819812024-02-25T18:23:00.000+00:002024-02-25T18:23:12.841+00:00«Almoço de Domingo»<p> </p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Simão irrompe na sala. Os meus sentidos pêsames, diz, sem
clareza para os presentes. Olham-no com a curiosidade de perceber em que coisas
se perde aquela cabeça. Sentidos pêsames para todos, repete Simão, e parece
sair-lhe uma vénia com as palavras. E um sorriso. Simão sorri. Os presentes,
inseguros, acenam imperceptivelmente, o que deixa Simão inquieto, talvez não
tenha sido a melhor entrada da sua vida.</span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif; font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">Se pudesse voltar atrás, faria as coisas de forma diferente.
Entrava em passo marcial, talvez, levantando bem os joelhos, estacava em frente
à mesa, batia os tacões um no outro e só então soltava a frase que escolhera.
Os meus sentidos pêsames.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Mas Simão não saberia como voltar atrás. A vida é um fluxo
irreversível, oh se é, não há volta atrás. A natureza e os seus defeitos são
uma coisa que irrita Simão, tanta complexidade, tanta beleza — perfeição,
diz-se — e não há como se retroceder, um ano, uma semana, meia hora, um minuto
que seja. Simão retrocederia, não tem dúvidas nenhumas, mais de um ano, olé,
talvez dois ou três, mas agora entrou na sala e as pessoas olham-no. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Não é bem um sorriso, aquilo, mas é, ainda assim, uma forma
de se mostrar amistoso. Ele sabe o que se diz: que tem a expressão de um tolo,
como aquelas vítimas de AVC, incapazes de imporem outras expressões aos
músculos da face. Mas as pessoas precipitam-se nas suas considerações. Uma
coisa é o Simão público; outra, aquilo que ele é em privado.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Este é o Simão público, acabado de irromper na sala com o
seu melhor ricto facial, a expressão de quem olha os outros como se eles,
predadores experientes, tivessem o sol pelas costas. Um ar de esforço, os
cantos da boca levantados quase dolorosamente e os olhos semicerrados, é isto
que as pessoas vêem. Sempre. Isto e os caracóis cinzentos descuidados,
enriçados. E a barba de uma semana, duas. E as roupas, bem, as roupas
desesperadas por um ferro de engomar e, num ponto ou noutro, por agulha e
linha.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Mas Simão irrompe amistosamente e logo saúda todos os
presentes. Os meus sentidos pêsames, diz, e pretende colher de imediato o
efeito da sua saudação, passeando os olhos ofuscados pela sala.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Devia ter treinado mais, percebe, sem desistir da sua
expressão de marca. À cabeceira da mesa, a irmã diz Simão e ele entende logo o
que ela quer dizer, falhou a entrada triunfal. Simão, e é uma voz que casa
ternura e raiva. Raiva ou uma tristeza profunda e revoltada. Simão, diz a irmã,
e ele percebe.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">De qualquer modo, já que ali está, afunda as mãos numa
travessa e sai de lá com as asas de um frango. Ou de dois frangos: parecem
ambas asas esquerdas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">A irmã, Simão, e ele percebe, mas não recua. O ricto e os
olhos semicerrados. É um Simão amistoso, este que ele trouxe à sala. Os meus
sentidos pêsames, diz para a irmã, e ela percebe, mas não perdoa. Ou perdoa,
mas disfarça, estão pessoas em casa, na sala.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Simão quer dizer bom dia, diz a irmã, e ele acena. Isso.
Disfarça mana, não podemos embaraçar as pessoas, fazê-las perceber as suas
limitações no que se refere ao entendimento.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Ele está muito contente por nos ter aqui a todos, continua,
como se o interpretasse, a irmã, olhando-o com olhos de tutora.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Simão esconde as asas dos frangos atrás das costas. Foi
apanhado. Está, de facto, contente por ver aquela gente ali, na sala, mas não
havia necessidade desta exposição, a sua irmã sabe que ele detesta ser o centro
das atenções.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Bem, talvez não deteste assim tanto ser o centro das
atenções, o que ele detesta são manifestações de afecto, sobretudo
manifestações de afecto que o apanham com asas de frango nas mãos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Agora as pessoas vão olhar para ele com complacência por ser
um tipo que se alegra com visitas e não com admiração por ser alguém que sabe
entrar com elegância numa sala.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Merda, mana, diz Simão, e as pessoas estremecem.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Ele olha em volta. Sim, agora colhe o impacto das suas
palavras. Merda, mana, repete. Depois quer desaparecer, sente-se enfastiado.
Mas toma com resignação o seu lugar na mesa e isso parece contentar toda a
gente.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Simão pousa os pedaços de frango no prato à sua frente e
levanta um pouco o nariz. Nota a fragrância: respira-se alívio na sala. A pouco
e pouco as pessoas ignoram-no, e isso permite-lhes sentir confiança,
empenharem-se nas conversas, agir com naturalidade. Talvez seja melhor assim,
pensa.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">O seu olhar pousa agora no guardanapo com motivos
campestres, uma herança. Poderia ficar assim horas, costuma ficar assim horas,
sem que isso o incomode nem um pouco, mas sabe que não é altura de ceder. Hoje
é um dia importante e ele comprometeu-se, faria boa figura.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Depois de uma pausa, um momento de concentração, volta à
superfície, com aquele seu ar simpático. Vai inclinando a cabeça e o sorriso
para onde há mais fulgor nas conversas. Parece-lhe adequado este movimento algo
pendular, à esquerda e à direita. Como se estivesse num <i style="mso-bidi-font-style: normal;">court</i> de ténis. As conversas educadas são assim, oscilam entre
interlocutores. Pelo canto do olho espreita a irmã, Simonetta (irritante o
critério baptismal dos pais deles), quer ver se ela se orgulha da sua
capacidade de se interessar. Simonetta devolve-lhe um olhar cansado.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Na sua extrema cordialidade, Simão quase se esquece de
comer. Mas não seria natural ele não comer, sobretudo num almoço tão importante
quanto este. Interrompe, por isso, o acompanhamento dos diálogos, e durante
minutos ataca o frango assado, com verdadeiro apetite.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Talvez aproveitando a sua aparente distracção, no outro topo
da mesa um dos comensais aproveita para sussurrar para a orelha mais próxima. Isso
não é bonito nem justo. Simão está a esforçar-se, porque não podem os outros
imitá-lo? De qualquer modo, o seu compromisso é de ferro, não vai fazer um
escândalo, não hoje. Ele é capaz de aguentar, não há-de ser por sua causa,
mesmo que tenha razões para isso, que a harmonia se há-de quebrar. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Depois parece-lhe que o sussurro tem uma resposta, também
sussurrada, e isso começa a ser demais. Simão ergue o queixo e arrota — no
último momento limita-se a arrotar. A mesa estremece e os que segredaram
mostram um ar bem compungido. Simão fica contente por apenas ter arrotado,
seria uma pena deitar tudo a perder por uma precipitação sua. Pôr-se a chorar
baixinho agora não lhe traria as palavras ditas em surdina, e medidas um pouco
mais drásticas, como sair intempestivamente ou partir um prato, indisporiam a
irmã e desagregariam o grupo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Ele não queria o grupo desfeito, ter as pessoas longe era
pior do que as ter a sussurrar ali ao lado. Desejava ouvir-lhes todos os dias
as vozes incessantes, tac tac tac tac, como bicos de cegonha. Ali por perto,
como agora, com as bocas visíveis, era quando mais se aproximavam do silêncio.
Quanto mais audíveis mais silenciosas. Inofensivas. Sussurros destes, considera
Simão, são ainda assim melhores do que todas as conversas de que os seus
ouvidos não alcançam nem o rumor, mesmo que ele saiba melhor do que ninguém
como ouvir atrás das portas, como entrar na casa das pessoas e ouvir as suas
conversas. O que não suporta é imaginar a quantidade de tempo que as pessoas
têm para falar longe dele. É nessas alturas que a sua cabeça se enche de outras
vozes, mais dolorosas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Durante alguns segundos, Simão pensa numa frase que encoraje
os outros a manter conversas para toda a audiência. Sim, ele também pode fazer
um esforço. A irmã iria apreciar um novo gesto seu, algo que complementasse a
sua entrada quase-triunfal. A sua falhada-entrada-quase-triunfal.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Os enterros costumam ser bonitos ao domingo, diz, e a frase
soou-lhe bem. Tem dúvidas quanto à verdade da proposição, mas não rejeita a
ideia. A irmã diz baixinho Simão. Ok, não se fala de boca cheia, mana, retorque
Simão, como se falassem por códigos. Sim, não se fala de boca cheia, fica
contente por se entenderem a irmã. Mas Simão insiste: está um belo dia para um
enterro, não acham?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">A inquietação regressa à mesa. Simonetta tem um gesto de
desespero, está cansada da franqueza do irmão. Se quiseres, podes comer na
cozinha, diz-lhe ela, naquele tom de desistência que ele odeia. Na cozinha pode
ouvir as vozes da sala e ser ele próprio, resmungar baixinho as suas
considerações, a irmã sabe disso. Mas hoje ele quer fazer um esforço e
conversar com as pessoas, conviver. E, na verdade, é domingo e está um belo dia
para um enterro, será ele o único a notá-lo?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">De qualquer modo, os sussurros acabaram. Os comensais estão
silenciosos ou soltam algumas observações genéricas em tom perfeitamente
razoável. Parece que as coisas podem seguir novamente um rumo aprazível para
todos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Há, no entanto, alguma rigidez na postura das pessoas. Simão
não deixa de notar isso, mas pode ser só porque elas não estão habituadas a um
almoço franco. As refeições em família ou entre amigos são hoje em dia raras e
quando ocorrem escolhem-se restaurantes muito frequentados ou acende-se a
televisão num programa ruidoso. Não há intimidade nem entrega.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Gostaria de partilhar estas considerações com Simonetta, mas
ela há um bocado que pousou os talheres e o fixa com <i style="mso-bidi-font-style: normal;">aquele</i> olhar. Oh, não, pensa Simão. Não agora, mana. Não em frente
às pessoas. Ele tinha-se retraído, não tinha? Não percas o controlo, mana.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Simonetta serve-se de novo de vinho, está um pouco
embriagada e gosta da sensação. Está também farta. Nem é que as coisas estejam
a correr mal (não estão), mas cansa-a que nunca corram <i style="mso-bidi-font-style: normal;">bem</i>, que sejam só suportáveis, que no fim todos sintam alívio por
não ter acontecido <i style="mso-bidi-font-style: normal;">praticamente</i> nada
e não prazer por terem passado um bom bocado. Que culpa tem ela que <i style="mso-bidi-font-style: normal;">aquilo</i> tivesse acontecido? Não foi
Simonetta que os juntou e muito menos foi ela que os separou. De resto, não
poderia jurar pela inocência do irmão. Inocência quanto às causas, bem
entendido, porque as consequências ocorreram todas pela mão dele.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">O Simão gosta de pensar que é pintor, diz de forma sombria a
irmã, e Simão sente que alguns diques chegaram ao seu ponto máximo de
resistência. A pintura é uma tolice, uma tolice inofensiva, como aquele seu
sorriso pateta. Em volta todos guardam um silêncio vigilante. Na verdade,
prossegue Simonetta depois de uma curta reflexão, essas são as únicas coisas
inofensivas nele.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Não se fala de boca cheia, mana!, grita Simão do seu lado da
mesa, esperançado que os códigos ainda resultem. Os olhos enchem-se-lhe de água,
como os diques.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Tem jeito com as cores, o meu irmão, insiste com cinismo
Simonetta, sobretudo tem jeito para não as misturar. Já viram as telas dele?
São o máximo: cada uma de sua cor. Nem sei porque usa aqueles pincéis fininhos,
um rolo teria o mesmo resultado. Mas ele gosta de pensar que há técnica e arte
na forma como cobre minuciosamente uma tela de verde ou de azul. É hilariante.
E estúpido.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Simão revolve a comida no prato com os dois talheres, como
se misturasse cimento e areia numa obra. As suas bochechas estão inchadas ao
jeito de alguém que sopra para um balão ou de uma criança que se recusa a
respirar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">O meu irmão arranjou para si uma terapia ocupacional,
declara depois Simonetta, consistiu nisso o seu último acto ajuizado. Aliás,
custa perceber como ainda arranjou cabeça para decisão tão sensata.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">E ri-se nervosamente.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Simão pousa os talheres e balanceia o corpo para trás e para
a frente. Algo está para acontecer e ele tenta ignorar a intuição. Chora
baixinho.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Mana, mana, diz, não passes para lá do arco-íris.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">O arco-íris? Não é cómico o meu irmão?, solta uma gargalhada
cruel Simonetta. O que é que há depois do arco-íris? Simão não lhe sabe dizer
de momento, mas lembra-se que é algo mau, muito mau, porque ele já lá esteve e
tem a certeza de que só voltou por milagre.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">A irmã esvazia outro copo de vinho e deixa-se ficar a
olhá-lo indecisa quanto aos sentimentos. De qualquer modo, não lhe apetece
parar, está farta de se conter, de ser o elemento lúcido e responsável.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Não precisas de te acanhar, maninho, diz ela, todos aqui
sabem o que te aconteceu. Loucura momentânea, determinou o juiz. Ela era uma
cabra, também sabemos isso, até a mim exasperava, mas não valia a pena
teres-lhe feito aquilo. Logo no dia em que te deixou. Inteligente era teres-lhe
agradecido, grandessíssimo tonto.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Oh, não, não o devias ter dito, mana. Não a devias ter
evocado. Tantas camadas de tinta que ele passou sobre aquele tempo, tela após
tela a recobrir o passado e agora ela é evocada e trazida à luz do dia num
almoço de amigos. Continuou a amá-la mesmo depois do último estremecimento
debaixo da almofada com que a sufocou.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Simão levanta-se. A irmã pensa que ele vai buscar outra asa
de frango para disfarçar o constrangimento, o imbecil. Mas é a faca de trinchar
que ele traz na mão e lhe passa de imediato na garganta com a subtileza de um
profissional. O sangue de Simonetta é escuro como o de um touro de liça e
mistura-se com o arroz no prato como se se misturasse com a areia da arena.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Os convidados à volta da mesa olham-no, imobilizados,
brancos de espanto e medo. Simão hesita mas depois despede-se, os meus sentidos
pêsames. Ninguém esboça um gesto, ninguém murmura uma palavra. Ele apercebe-se
de como finalmente conseguiu impressionar a audiência, mas o sabor do sucesso é
amargo. Ainda assim repete, os meus sentidos pêsames, e ocorre-lhe que estas
palavras poderiam agora estar a ser tomadas como uma piada, como se ele fosse
dado a brincadeiras. Tanto mais que não consegue deixar cair aquele sorriso
eterno.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Ao sair para o quintal das traseiras nota o sol de Verão
coado pela ramada antiga de morangueiro. Não evita dizer para si mesmo que está
um belo dia para um enterro. Mas depois lembra-se com incerta contrariedade que
os enterros raramente ocorrem no dia do decesso. Estala os lábios com pena e
mete pelo atalho da bouça, a pensar que se pudesse voltar atrás um ano ou dois
fazia as coisas de forma diferente.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"><o:p> </o:p></span></p>Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-68974362229778646372024-02-22T04:47:00.005+00:002024-02-22T04:49:35.250+00:00«Regresso»<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">«Alguns de nós estão sempre a querer regressar a algum
lugar, como se houvesse uma cartografia da felicidade. Ou da sobrevivência. Dispomos
de um conhecimento intuitivo da forma como o cérebro funciona. Não existe o
mundo, existe a sua permanente construção nas nossas sinapses, a partir de
sinais e estímulos, e isso nós sabemos. O regresso é uma invocação. Não
queremos propriamente o que está ali onde quer que seja que regressemos.
Queremos repetir as emoções que experimentámos num dado momento. Queremos
regressar a um instante, não a um lugar. Pagaríamos por uma acupunctura cujas agulhas
penetrassem profunda e certeiramente as partes exactas do cérebro responsáveis
por reconstituir a paisagem perdida. Somos amantes de paisagens mentais, de
estados de espírito. Ficamos presos a eles. Dependentes. Cobaias perfeitas e
voluntárias para uma neurociência do eterno retorno.»<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"> </span><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 18pt;">Leu isto e escarneceu de si própria. Deus!, como se permitia
perder tempo. O que lhe importava o que um dia tinha escrito sobre a
felicidade? E a sobrevivência. O que tinha a felicidade a ver com a
sobrevivência? A última vez que se debruçara sobre o assunto, ainda havia
pessoas tristes a viver. Biliões delas, se lhe perguntassem. Uma imensa
maioria, talvez. Anciãos, muitas. Teriam alguma vez sido felizes os centenários
que a televisão exibia regularmente, com o seu ar de quem não encontra uma boa
razão para estar por cá? Não, a vida não tinha uma relação directa com a
felicidade, ainda que algumas vezes as duas coisas coincidissem. Vivia-se, era
tudo.</span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Minutos depois reconciliou-se com a leitura. Estava um pouco
exaltada, claro. Mas ela própria devia reconhecer que era uma viciada em
regressar. Talvez não se lembrasse de ter sido particularmente feliz num cabeço
como este, de onde espreitava o pôr-do-sol, mas não podia negar que o seu
movimento natural era o do retorno a locais semelhantes. Não havia um sítio
específico que desejasse, mas podia identificar meia dúzia de elementos
topográficos reincidentes. Uma conjugação inscrita nos genes, provavelmente.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Abandonou-se um pouco a esta ideia de predestinação, de
obediência a um código ancestral. Depois abanou a cabeça: os genes tratavam das
questões da espécie, não do sítio aonde cada um regressava. Os homens e as
mulheres não se alcandoravam em massa aos pináculos, como aves migratórias no
seu percurso sazonal. Os humanos eram como dizia o livro que escrevera:
reconstrutores de paisagens individuais. Escolhiam um momento da sua história
pessoal e aproveitavam cada oportunidade para o invocar. O mundo apenas
fornecia os elementos soltos do <i>puzzle</i>
que eles estavam sempre a querer reconstituir. Uma fachada e uma rua, somadas a
uma árvore e a uma colina em fundo, não significavam um local, mas talvez um
som, um gesto, um toque ou um rosto. Indubitavelmente, uma emoção.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Sobre a sua cabeça havia um tecto de nuvens escuras,
sólidas. Cobriam todo o céu visível, para trás e para os lados, excepto uma
pequena faixa logo acima das serras recortadas no horizonte, à sua frente. O sol,
no ocaso, aproveitava os derradeiros minutos para fazer passar por ali uns
feixes dispersos que vinham incendiar pequenos círculos nas encostas de
pinheiros, lá mais em baixo, ou alguns telhados das pequeníssimas aldeias em
redor. Era como se ela se encontrasse numa tenda cor de cinza e desconhecidos
levantassem um pouco a cobertura da entrada, com lanternas apontadas para o
chão no interior. Ou como quando em pequena se escondia no fundo da cama,
debaixo dos cobertores, à espera de ver surgir na cabeceira o rosto sorridente
da mãe, contra a luz do dia que inundava o quarto lá fora.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Talvez devesse deixar de pendurar atributos naquela luz. Era
uma epifania suficiente ver uma parte escassa do mundo pintalgada de dourados
febris quando tudo o mais se esbatia no chumbo da tarde. As memórias eram agora
acrescentos literários, apêndices desvirtuadores. Ela deveria concentrar-se
apenas em viver o instante como ele se lhe oferecia. Nada mais. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18pt;">
</p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">O regresso a um local como evocação de um momento era,
afinal, uma forma de esquecimento. Invocava-se um instante para esquecer o que
o antecedera ou sucedera, uma fracção para esquecer o todo.<o:p></o:p></span></p><div style="text-align: right;"><br /></div><div style="text-align: right;">[Publicado originalmente na revista <i>Fluir </i>n.º 10, Janeiro de 2023]</div>Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-63104775293028446472024-02-20T01:48:00.002+00:002024-02-20T01:48:22.002+00:00Função empáticaO parque aqui da cidade vai sendo frequentado em dias de sol por imigrantes de diversas proveniências, todos com a mesma ânsia de natureza e ar livre que move os autóctones em domingos e dias feriados. Africanos, ucranianos, brasileiros, falantes de árabe. Hoje era uma família de asiáticos — crianças e um par de adultos, provavelmente chineses — a jogar badminton com alegria e risadas universais.<br /><br /><div>O pessimista em mim sussurra-me que não hão-de tardar a pronunciar-se contra isto as pálidas brigadas do ódio, encerradas nas suas páginas bafientas e sem sol do Facebook, com os seus maus fígados já incapazes da função empática.<br /><br /></div><div>Mas hoje havia o riso e o seu poder regenerador, quem sabe se curativo de doenças biliares.</div>Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-13448269732712469382024-02-19T04:48:00.003+00:002024-02-19T04:54:48.835+00:00Santa Úrsula e os comunistasReza o Martirológio Romano (catálogo de santos) que Santa Úrsula (séc. IV) morreu mártir às mãos dos hunos em Colónia, na Alemanha, acompanhada de 11.000 outras virgens. A descoberta no século XII de um vasto cemitério no exterior da muralha levou a que os católicos vissem ali confirmada a lenda e logo empilharam as ossadas numa igreja de homenagem à mártir e seu séquito.<br /><br />Num momento da História, descobre-se que o exagerado número de mártires pode dever-se à interpretação errada das iniciais numa inscrição antiga, que leu «onze mil virgens» onde estaria «onze mártires virgens». Exames de ADN revelam entretanto que as ossadas encontradas são anteriores, do tempo dos romanos. Nada disso demoveu os peregrinos (nem os editores dos martirológios), que continuaram a comparecer na Igreja para louvar os 11 mil crânios e as 22 mil tíbias virgens. (Parece que não estão lá tantos ossos, mas que se há-de fazer.) <br /><br />Esta edificante história — contada pelo narrador de “Elizabeth Finch”, de Julian Barnes — fez-me lembrar alguns comunistas dos nossos tempos. A História e a Ciência podem ter descoberto muitas coisas sobre a Rússia e as suas virgens, mas eles, irmanando-se no grau de devoção a velhos católicos ultramontanos, hão-de ir sempre ali peregrinar com fervor — como se as ossadas dos gulags, deste século ou do outro, fossem de louvar, não de lamentar.<br /><br />Algumas reacções à morte de Alexei Navalny, não obstante o defeitos que se queiram apontar ao defunto, mostram como já era bem tempo de os comunistas actualizarem o seu próprio catálogo de santos. Ou mártires. Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-18445944696339032582024-02-14T03:47:00.005+00:002024-02-14T03:50:08.921+00:00[Alterações Climatéricas #6 <br /><br />E pronto, com uma, digamos, <i>apaixonada </i>adesão ao espírito de São Valentim encerro esta visita ao baú dos contos falhados.]<div><br /></div><div><br /></div><div><p align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 20pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Dia de São Valentim<o:p></o:p></span></b></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;"><o:p> </o:p></span></b></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;"><o:p> </o:p></span><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">Aquilo
lembrava a história do flautista de Hamelin, só que não havia flautista, apenas
os ratos que o seguiam, que também não eram ratos. Mas o abismo ficava naquela
direcção, uma centena de metros à frente, e ele não conseguia deixar de pensar
que era para ali mesmo que todos se dirigiam, para onde mais poderia ser?</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Uma
hora antes, encostara a bicicleta a um pinheiro e adentrara no bosque pouco
denso, sentindo nas pernas a humidade das ervas altas, uma humidade estranha e fora
de época. Queria fotografar algumas aves no seu <i style="mso-bidi-font-style: normal;">habitat</i> e escolheu uma rocha onde se podia sentar como numa
poltrona, mesmo que o musgo que a cobria estivesse molhado e previsivelmente
viesse a sentir isso nas nádegas. Não estava muito frio, de qualquer modo, e
estes pequenos desconfortos animavam-no, permitiam-lhe alimentar uma certa
arrogância de indivíduo rústico, maior do que a pálida faceta telúrica que na
verdade tinha.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Tinha
quase adormecido quando chegou o primeiro automóvel. Aquele era também um sítio
de encontros amorosos furtivos, ele sabia-o, denunciado pelas marcas dos
rodados na orla da clareira e os preservativos espalhados nas redondezas. O
carro estacionou e ele não se sentiu incomodado. Mesmo que não o confessasse,
as distracções eram bem-vindas. De boa vontade apontaria a objectiva como um <i style="mso-bidi-font-style: normal;">paparazzo</i>, se não tivesse medo das
consequências que resultariam do confronto com um namorado particularmente encorpado
e violento e mais rápido do que ele a correr.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Viu-os
sair do veículo e colou-se mais à rocha. Não ainda por receio, mas para que o
casal não interrompesse o que viera fazer. Lamentava não se ter antecipado e
escolhido o outro lado da fraga, de onde podia ver sem ser visto. O parzinho
deu logo com ele na sua posição pouco camuflada mas não pareceu importar-se. O
rapaz contornou o carro, juntou-se à acompanhante e, dando-lhe a mão, partiu
com ela tomando o sentido descendente da encosta, na direcção do desfiladeiro.
As vistas dali eram famosas na região, embora naquele dia o céu encoberto não
permitisse sonhar com pores-do-sol arrebatadores. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Nos
vinte minutos seguintes, mais uma dúzia de automóveis acorreu à clareira. Os
condutores tiveram o cuidado de estacionar as viaturas orientando-as para
diferentes pontos cardeais e colaterais, mas não tão longe umas das outras que os
seus proprietários parecessem incomodados com a presença alheia. De resto,
demorando-se uns minutos no automóvel ou saindo de imediato, todos os pares se
davam as mãos e tomavam o caminho do primeiro casal. E todos em algum momento
notavam sem reacções a presença do fotógrafo, que já não de dava ao trabalho de
disfarçar a curiosidade, embora se abstivesse de empunhar a máquina, ou pelo
menos de a apontar naquela direcção. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Dezasseis
carros depois, ele achou que aquilo era demais, que iria rebentar se não
descobrisse que espécie de convenção de São Valentim era aquela, que atracção
ou acordo levava quase duas dezenas de casais a estacionarem na mesma clareira
e a escolherem um mesmo caminho na floresta.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Geralmente,
os namorados evitavam demasiada proximidade neste tipo de encontros, sobretudo
à luz do dia. Um carro nas imediações inibia o desejo e a maior parte deles não
ia ali exactamente (ou só) para conversar. Havia, claro, o argumento do
miradouro, local de encontros românticos, menos necessitados de reserva do que
os <i>rendez-vous</i> passionais. Mas, ainda assim, ele estranhava aquela
multidão, tanto mais que havia vários outros pontos na zona igualmente
acessíveis e quase tão encantadores quanto aquele. O normal era que o terceiro
ou quarto automóvel achasse o local demasiado concorrido e, dando meia volta,
partisse em busca de maior sossego.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Guardou
preventivamente a máquina na mochila e ele próprio se meteu pelo trilho entre
pinheiros e fetos. Foi então que a parábola do flautista lhe pareceu mais viva
e adequada: d</span><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">epois de uma volta para observar o miradouro a alguma distância, viu-o vazio, mas, subindo de seguida à plataforma rochosa, espreitou o fundo do
desfiladeiro — onde trinta e dois corpos jaziam disformes e ensanguentados, alguns ainda de
mãos dadas.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Nas
copas dos pinheiros o vento aumentara de intensidade. Não restavam dúvidas de
que o tempo estava a mudar.</span></p></div>Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-77076464270521634512024-02-12T04:09:00.002+00:002024-02-14T03:49:22.997+00:00 [Alterações Climatéricas #5]<p><br /></p><p align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 20pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">A bela adormecida do Mosela</span></b><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 20pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;"><o:p> </o:p></span><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">O
que havia com aldeias como Beilstein, à margem do Mosela, é que não facilitavam
o </span><i style="font-family: Calibri, sans-serif; font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">checkout</i><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">. Quando por fim
conseguíamos deixar de adiar a partida estávamos tão bêbados que nos excedíamos
na gorjeta, imbuíamo-nos de uma generosidade maior do que o nosso orçamento,
com consequências severas para a vida dos meses seguintes.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Eram
essencialmente de dois tipos os visitantes da aldeia: os que iam lá pelo vinho
e todos os outros. Eu era um dos primeiros.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Não
que ali o vinho fosse diferente do que era servido no resto do vale. O que o
lugar tinha de particular era a atmosfera e a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">missão</i>. Mais do que todas as localidades do Reno e do Mosela, a
pequena Beilstein existia para nos servir de beber.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">As
terras ribeirinhas tinham no vinho o principal negócio, mas naquela ele era <i style="mso-bidi-font-style: normal;">o único</i> negócio. Beilstein existia
enquanto houvesse gente a sentar-se nas suas esplanadas ou nas suas tabernas a
pedir um copo de vinho. Se a região fosse visitada apenas por abstémios
apreciadores de paisagem e castelos, Beilstein fechava as portas. Por falência
e, sobretudo, honra ferida.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Era
o sítio mais pitoresco que por ali se encontrava, com as mais graciosas
casinhas de pedra ou de traves à vista, o rio a espraiar-se à sua frente num
dos melhores momentos de todo o seu estético e serpenteante deslizar para o
Reno. No conjunto — aldeia, vinhas, rio e o castelito no morro — Beilstein era
o melhor postal entre Coblença e Tréveris. Isso mesmo atestavam os guias e os
serviços de turismo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Mas,
insisto, a razão porque a terra sobrevivia às décadas e se renovava ano após
ano não eram os filmes históricos que lá se faziam, nem as hordas que por lá
passavam a caminho de Cochem (o melaço do turista) ou de outras localidades
mais diversificadas. O que mantinha Beilstein na melhor das formas eram aqueles
que, como eu, paravam ali como beduíno em oásis.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Como
seria de esperar, esta minha opinião não era partilhada por todos. Havia quem
parasse ali para bebericar um <i style="mso-bidi-font-style: normal;">chá</i>,
uma <i style="mso-bidi-font-style: normal;">água</i> ou um <i style="mso-bidi-font-style: normal;">sumo</i> e se espreguiçasse nas esplanadas declarando ter encontrado um
dos sítios mais acolhedores da sua passeata turística. Pessoas deste género,
que puxavam das máquinas fotográficas e faziam o seu clichezito das casas, do
rio, da margem oposta (essas mesmas fotos que abundam na Internet). Que se <i style="mso-bidi-font-style: normal;">maravilhavam</i>. Mas que, depois, quando
chegava a hora de tomar a grande decisão, se metiam no carro ou montavam na
bicicleta e subiam ou desciam para outras paragens.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Na
verdade, Beilstein não se incomodava com a pusilanimidade do turista médio.
Agradecia-a. Havia coisas que não se queria ver obrigada a fazer. Gostava que
pela hora de jantar a triagem tivesse sido realizada e que os que se inscreviam
para pernoitar fossem de boa estirpe, daqueles que começavam pela carta dos
vinhos, dedicavam depois um instante a escolher qualquer coisa sólida para
acompanhar e voltavam logo à carta como o crente ao livro sagrado. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">A
meio de uma manhã de Agosto o hóspede de Beilstein sai do seu quarto e
instala-se numa das esplanadas com vista para o rio, com o sol pelas costas.
Como é cedo, talvez beba um café a olhar as vinhas ou as casas da margem
oposta. Ou talvez observe o trânsito que sobe e desce a marginal, os
automobilistas cuidadosos e educados e as ternurentas famílias de ciclistas.
Talvez simplesmente dormite, a fazer horas. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Do
que certamente não está à espera é de ver chegar uma coluna de blindados (os
temíveis Tiger) das Waffen SS e que, em dez minutos, os estabelecimentos da
aldeia fiquem tomados pela arrogantes tropas de Hitler.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Pois
bem, aconteceu-me a mim no mês passado. Tinha começado por um branco seco frio
e umas azeitonas sem caroço (rejeitara o café). Abrira um livro de Antony
Beevor numa das secções de imagens e pousava frequentes olhares interrogativos
no relampejar do rio (não me lembro o que questionava). O branco seco, como soe
acontecer no Mosela — mais do que na Bíblia —, multiplicou-se e ao quarto ou
quinto copo fiquei de novo piegas, a choramingar por amores perdidos, ou coisa
assim.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Sucede-me
de vez em quando, emocionar-me com o vinho, e nessas alturas procurar razões
para verter umas lágrimas enquanto cerro muito os olhos e faço um esgar com a
boca. Creio que não se me pode censurar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Mas
naquele dia não foi de todo oportuno revelar-me tão sentimental. Um dos
militares, depois de ter estacionado o seu <i style="mso-bidi-font-style: normal;">panzer</i>
em contramão e ignorado a minha surpresa, quis saber porque chorava eu, o que
temia. Naturalmente, não me interrogou porque sentisse alguma empatia (era um
SS), mas porque se habituara a que as pessoas traíssem os seus segredos na
presença daquele uniforme. Na sua opinião, se eu chorava era porque tinha algo
a temer.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Claro
que eu não tinha nada a temer e naquele momento tudo o que sentia era
perplexidade. Não havia nada mais inadequado a Beilstein do que a rispidez
nazi, apesar de estarmos na Alemanha. Quis perguntar-lhe qualquer coisa,
pedir-lhe alguma espécie de esclarecimento, mas o tipo já tinha decidido o que
fazer comigo e eu acabei por me esquecer do que lhe queria perguntar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Fui
levado para as traseiras de um estabelecimento que conhecia bem. Nunca entrara
para aquela parte da casa e do que mais me lembro é de ter pensado que a adega
era bem menos exuberante do que imaginava: numa vista de olhos pelas
prateleiras detectei várias lacunas imperdoáveis. Como me deixaram sozinho por
minutos e eu não tinha saca-rolhas, resolvi partir o gargalo de uma garrafa e
beber o vinho coado pelo meu lenço de mão (ainda por usar, bem entendido). Mas essa
decisão foi um erro, porque os nazis, quando regressaram para me buscar,
imaginaram que tencionava usar a garrafa como arma, o que, na sua opinião, no
mínimo traía a minha animosidade para com o regime.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Ao
meio-dia e quarenta e cinco fui, portanto, encostado a uma parede coberta de
hera (essa mesmo que se vê nas fotografias, do lado direito). Ainda assim,
creio que não foi a garrafa partida a razão mais forte para aquilo. Talvez o
esquadrão andasse algo entediado (afinal, há mais de sessenta anos que não se
passava nada) e precisasse de se sentir útil. Por mim, teria ponderado
colaborar, se eles tivessem sido delicados o suficiente para o sugerir. Mas, já
o disse, eram nazis. Assim, mostrei-me incomodado e afirmei mesmo que
dispensava a venda nos olhos. Até me tentei lembrar do que gritou o coronel </span><a href="http://pt.wikipedia.org/wiki/Claus_Schenk_Graf_von_Stauffenberg" title="Claus Schenk Graf von Stauffenberg"><span color="windowtext" face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin; text-decoration: none; text-underline: none;">von Stauffenberg</span></a><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;"> instantes
antes de ser fuzilado pela malograda Operação Valquíria. Mas não me ocorreu
nada melhor do que o <i style="mso-bidi-font-style: normal;">waiter!</i> a que
estava habituado. Waiter!, berrei eu, e foi-me servido um raro tinto. <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Reservado para os que vão morrer</i>,
sussurrou-me o empregado, condoído, talvez por ser um daqueles vinhos cor de
sangue que ninguém gostava de verter em toalhas de linho.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Mas
as armas não foram disparadas (doutra maneira eu não teria sobrevivido para
contar a história). No último segundo, uma onda gigantesca percorreu o Mosela,
uma espécie de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">tsunami</i> fluvial com
origem numa tromba-d’água violentíssima que caíra sobre o troço francês do rio,
um desses fenómenos mutantes a que o clima estava agora sujeito. O pelotão de
fuzilamento e eu próprio fomos levados pela enorme massa de água que
transbordou do leito antes mesmo que a alguém ocorresse a famosa abertura de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Cem Anos de Solidão</i>.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Durante
uns longos segundos rebolei naquela maré cheia de detritos e quando parei
finalmente foi porque bati com as costas num dos tanques estacionados ao longo
da estrada. A corrente continuava rápida, embora a onda tivesse passado, e as
margens permaneciam afundadas numa das maiores cheias de que havia memória.
Houve vários mortos e felizmente alguns deles eram nazis, incluindo o
comandante, o que deixou a tropa desorientada e me permitiu pensar em
movimentos evasivos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Subi
pela lagarta ao canhão de <st1:metricconverter productid="88 mil■metros" w:st="on">88
milímetros</st1:metricconverter> como naquelas imagens famosas e efémeras da
Primavera de Praga. Talvez o <i style="mso-bidi-font-style: normal;">panzer</i>
pudesse avançar contra a corrente e levar-me ao hotel, mas eu não saberia como
o pôr em andamento. Escalei, por isso, o muro da vinha e procurei chegar à
aldeia pelo lado de cima da encosta.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Era
uma desolação ver a praça inundada, as esplanadas arrasadas, o rés-do-chão das
casas submerso e o seu interior saqueado pela violência da água. Nenhuma adega
daquele sector da aldeia, o mais baixo e o mais rico, teve qualquer hipótese.
Décadas de colheitas seleccionadas foram simplesmente pelo ralo, como restos de
um banquete.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Pensei
organizar com os sobreviventes da parte alta da aldeia alguma espécie de
operação de salvamento, mergulhar nas adegas sujeitados por uma corda e
recuperar aquilo que a corrente não tivesse levado. Mas fui distraído desta
ideia pelos gritos insistentes de sete homenzinhos que vieram até mim e me
puxaram pelas roupas. Parece que havia alguém em apuros, uma mulher que não
acordara a tempo de evitar a inundação.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Há
alguns anos que eu evitava mulheres em apuros. Era um mantra que recitava ao
acordar e que me deixava feliz se ao chegar ao fim do dia o tivesse cumprido.
Vivia para esse objectivo, um dia de cada vez, como os alcoólicos anónimos.
Tinha, aliás, passado por uma dessas instituições (apenas para aprender o
método). E o sucesso era tão grande que nos últimos tempos me era já difícil
lembrar porque devia evitar mulheres em apuros.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Mas
os anos de auto-condicionamento tinham agora de ser interrompidos, porque
aqueles sete homenzinhos pequenos (creio que eram anões) não paravam de apelar
ao que de mais humano havia em mim. A senhora fora subtraída ao seu quarto pela
água, mas miraculosamente ficara presa nos ramos de uma das árvores que
bordejavam o que era agora o rio. Vista dali, parecia um cadáver numa espécie
de pira, só que os anões teimavam que não estava morta, apenas adormecida.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Mergulhei
na corrente, que nesta parte em forma de baía era mais calma, e enquanto nadava
fui-me perguntando por que raio não se tinha lançado à água nenhum daqueles
sete minorcas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Eram
cinquenta metros até lá, pelo que tive tempo de reflectir. Talvez eu devesse
ser menos complacente com os acontecimentos insólitos. Não era a primeira vez
que a vida conspirava contra mim. Havia sobretudo que ter em conta as manobras
de diversão, ocorrências sem vínculo aparente que não tinham outro objectivo
senão desconcentrar-me. Estaria a ser vítima de mais uma dessas urdiduras?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">A
mulher não tinha aspecto de estar em apuros, tão plácida se apresentava naquele
seu altar de ramos e detritos entrelaçados. Mas o que aconteceria quando ela
despertasse? Resolvi, apesar de todos os sinais, ser menos supersticioso e mais
magnânimo. Icei-me para o seu lado e encetei os procedimentos da técnica de
reanimação. Encostei a minha boca à dela e… <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Três
semanas depois casámo-nos, como eu temia.<o:p></o:p></span></p><br /><p></p>Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-64036611860235067192024-02-10T06:55:00.000+00:002024-02-10T06:55:01.811+00:00[Alterações Climatéricas #4]<p><br /></p><p></p><p align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 20.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Inundação<o:p></o:p></span></b></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"><o:p> </o:p></span></b></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"><o:p> </o:p></span></b><span style="font-family: Calibri, sans-serif; font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">Quando quase todos começaram a ficar amedrontados, ele parou
com o tique nervoso que lhe fazia tremer o punho onde assentava o queixo,
cotovelo sobre o joelho como o pensador de Rodin. Por alturas do pânico
generalizado, sentiu alegria e podia tê-la manifestado com um pulo ou dois de
adolescente se não estivesse demasiado ocupado a manter-se à tona da água.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">As chuvas tinham sido anunciadas, mas ninguém pudera
imaginar uma coisa daquelas. Excepto ele, que estava disponível para imaginar
tudo o que lhe mantivesse a mente distraída. Imaginar era, aliás, o que lhe
restava, já que o mundo real ficara reduzido aos vinte metros quadrados de uma
cela colectiva, com raras saídas para o pátio da prisão.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Nunca ignorara que uma vida de prisioneiro seria dura demais
para alguém como ele. Mas nem agora que pudera confirmar pessoalmente os
horrores da penitenciária se arrependia do que fizera, caso por uma falha na
sua rotina mental se deixasse pensar um pouco no assunto. Os colegas de cela
tinham-no por pensador, alguém que cismava diariamente, que remoía os remorsos
do que fizera ou os erros de planeamento que o tinham conduzido ali. Gozavam
com ele por causa disso, como naturalmente gozariam a propósito de outra coisa
qualquer. O quotidiano da prisão confirmava os seus piores receios e ele —
tímido, frágil sob a falsa corpulência dos quilos a mais, e medroso — era a
vítima perfeita de uma comunidade que vivia em tensão permanente.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Nas primeiras semanas, sonhara muitas vezes com a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">solitária</i>, com formas de provocar a ira
da direcção do presídio, uma ira que o conduzisse ao sossego do isolamento sem
necessariamente o submeter a sovas demasiado violentas. Mas cedo descobriu que
não existia tal coisa no sistema prisional. A doutrina em vigor falava de
socialização, partilha, igualdade de tratamento e de deveres, participação na
gestão do espaço comum e uma série de tretas do mesmo género. Tinha de se
integrar ou conseguir morrer de um ataque cardíaco auto-infligido, já que todos
os meios que permitissem o suicídio tinham sido cuidadosamente removidos e a
vigilância era permanente, havia um <i>Big Brother</i> caridoso e pró-vida a
zelar pelos detidos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">De modo que o Inferno para ele, que <i style="mso-bidi-font-style: normal;">naquele</i> dia não teve os recursos para disparar sobre si próprio ou presença
de espírito suficiente para se lançar de um viaduto sobre o trânsito da cidade,
começou ainda em vida, no momento em que entrou na penitenciária da comarca.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Bem, na verdade começou antes. Micaela era o demónio em
carne e osso e era disto que ele não se arrependeria se se permitisse pensar no
assunto: de lhe ter terminado com a raça.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Não foi uma decisão fácil nem rápida. No início nem era uma
decisão, mas a centelha de uma ideia, a esperança vaga de que se alimentavam os
seus dias. Começou por lhe desejar a morte. Uma morte natural — todos estavam
sujeitos a achaques. Depois deixou de o repugnar que ela falecesse num acidente
de carro. Ou de avião, já que gostava tanto de cruzar o Atlântico. Por fim,
convenceu-se de que a saúde de Micaela era de ferro e que as tragédias se
mantinham longe dela. A única fraqueza da mulher era ele próprio, como ela não
se cansava de dizer.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Houve um tempo em que se enchia de orgulho de cada vez que
ela dizia aquilo. Ele era a fraqueza de alguém como Micaela, nada menos do que
isso. Depois tornou-se escravo dela e, numa fase seguinte, o bibelô de que ela
punha e dispunha quando se sentia no apogeu da sua superioridade moral. Nos
últimos tempos era a vítima da sua fúria, dos seus ciúmes (ele!), da sua
paranóia.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Deu cabo de Micaela com uma marreta. Mas escolheu mal a
arma, porque não tinha como a usar sobre si próprio, era demasiado pesada para
ser brandida com eficácia contra a própria pessoa e contra o instinto de auto-preservação.
<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">E agora ali estava ele. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">A vida na prisão era um prolongamento da vida que ele tivera
nos últimos tempos lá fora, com a agravante de que o número de torturadores
tinha aumentado. Cada um dos condenados que lhe faziam companhia na cela
gostava de o considerar, em diferentes momentos, confidente, cúmplice, mascote,
criado, parceiro sexual ou saco de porrada. Oficiosamente, concluía ele, o
sistema ou a vida ou os deuses lá em cima pediam-lhe que se deixasse abraçar
pela esquizofrenia, mas ele não conseguia deixar de se manter lúcido.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Ah, não o tocarem, não lhe falarem, e ele não os ouvir nem
os ver. Ah, estar na cela como no meio de uma rua movimentada de uma grande
cidade, onde ninguém se conhece nem se fala e todos são anónimos. Ou no meio de
um bosque impenetrável, no deserto, no cimo de uma colina remota. Fértil em
crueldades, o sistema prisional acabou com a velha e clássica solitária, aquilo
que lhe poderia salvar a vida.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">E então a chuva foi subitamente anunciada e caiu, com força,
perseverante, incansável. Foi no rádio dos guardas que ouviu o alerta. Claro
que, apesar do tom histérico da protecção civil, ninguém esperava um dilúvio, e
quando a água entrou às golfadas por baixo da porta, fazendo boiar a merda dos
que insistiam em cagar nos cantos, os prisioneiros seus colegas mostraram os
primeiros indícios de humanidade, de uma humanidade temente a Deus. Ele parou pela
primeira vez com o tique nervoso que lhe fazia tremer o punho onde assentava o
queixo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Em menos de uma hora a água chegou à cintura dos detidos e,
por mais que tivessem berrado, ninguém lhes abriu a porta, ninguém se preocupou
com o seu destino. Não custava perceber que os guardas tinham abandonado as
instalações ou subido aos pisos superiores para salvar a pele.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">A inundação, nos seus primeiros momentos, aumentou o caos na
cela. Todos praguejavam e se empurravam como se fosse possível encontrar
naqueles vinte metros quadrados um culpado ou um salvador. Inevitavelmente, ele
era o candidato que todos preferiam e foram-lhe exigidas explicações, soluções,
e cada um dos outros lhe aplicou uma bofetada ou um soco como paga do seu
silêncio.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Com o nível freático a atingir a altura do peito, os detidos
subiram literalmente às paredes, agarrando-se onde puderam. Por uma vez em
meses, o centro da cela tornava-se um local solitário e ele manteve-se ali, com
uma alegria primitiva, recordando-se com prazer de todos os momentos na vida em
que pôde estar só. No perímetro do compartimento, onde os outros tentavam
encontrar formas de se elevar acima das águas, os gritos eram desesperados e ensurdecedores,
mas a ele parecia-lhe que também o silêncio lhe fora finalmente concedido. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">A água subiu mais um pouco e ele sentiu-se a ser erguido do
chão; perdia o pé e ganhava um bem-estar quase esquecido. Mais ninguém ali
sabia nadar, pelo que, no meio do pânico colectivo, ele era olhado com uma inveja
inaugural e uma última raiva.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">O pé-direito da cela media quatro metros, o que tornou longa
a agonia geral e a ele lhe proporcionou minutos extra de solidão. Ninguém agora
se atrevia a vir até ali ao centro para o incomodar. Estava só, o mundo em
ebulição à sua volta e ele a ignorá-lo, a vogar e a rodar lentamente na
superfície da água, entregando-se lentamente à maré com pequenos movimentos das
mãos e das pernas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Os primeiros prisioneiros, os que não conseguiam forma de
subir até ao tecto, começavam já a afogar-se, e todos outros, ele incluído,
tinham agora menos de trinta centímetros de espaço para respirar. Achou
divertida a forma como alguns levantavam a cabeça, ofegantes, parecendo peixes
a querer beijar o cimento do tecto. Outros, como ele, inclinavam a cabeça, o
que o fez lembrar a sala de tribunal descrita por Kafka <st1:personname productid="em O Processo. Mais" w:st="on">em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O Processo</i>. Mais</st1:personname> ninguém dispunha da liberdade de
movimentos que ele tinha, agarrados como estavam àquilo que lhes permitia
segurar-se às paredes. Ele boiava em círculos cada vez maiores ao redor da
cela, nadando de costas, para manter a boca fora da água. Não o preocupava o
desfecho da catástrofe. Morria feliz e em liberdade. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Dois guardas de aspecto brutal, agarrando-o pelos cabelos,
retiraram-lhe a cabeça da sanita, de novo entupida, e arrastaram-no pelo
corredor. Iam mudá-lo de cela, para uma onde não corresse o risco de se afogar
a si próprio. Lá fora ouvia-se a intempérie. «Nunca vi chover assim na minha
vida», disse um dos guardas, com um tom preocupado.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></p><br /><p></p>Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-49134129543899031202024-02-08T00:12:00.001+00:002024-02-08T00:12:05.315+00:00 [Alterações Climatéricas #3]<p><br /></p><p></p><p align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 20.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Velas benzidas</span></b><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 20.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;"><o:p> </o:p></span><span style="font-family: Calibri, sans-serif; font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">Era
agradável estar a ler ao jantar quando a luz falhava. Reuníamo-nos dez numa
mesa que mal dava para seis, mas eu lá conseguia espaço para pousar o livro ao
lado do prato. Não sermos obrigados a utilizar os dois talheres ajudava.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Nessas
noites de invernia e <i style="mso-bidi-font-style: normal;">blackout</i>,
bastante frequentes, retirávamos às apalpadelas os castiçais amolgados de
alumínio da sua prateleira habitual e, se necessário, ainda usávamos o gargalo
de garrafas para entalar velas extra. Os castiçais (como o termo soa antigo!)
tinham sempre um coto de vela, mas havia uma altura em que se tornava
necessário substituí-lo, não raro a meio do apagão. Aquele a quem calhasse a
tarefa de encontrar as velas de reserva devia certificar-se de que enfiava a
mão na caixa correcta, caso contrário teria de enfrentar a cólera da avó. A
cólera dela vinha ao de cima sempre que alguém se baralhava na escuridão e
regressava à cozinha com uma das velas benzidas a arder. As velas benzidas eram
fáceis de distinguir, mais perfeitas no seu acabamento, e eram, naturalmente,
sagradas, não se destinavam a iluminar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Na
maior parte das vezes não aconteciam desaires daqueles, todos tínhamos um
treino de cegos, éramos capazes de encontrar no escuro os castiçais, os
fósforos, as velas certas, tudo aquilo que fizesse falta no momento em que a
luz nos abandonava. Mas, se calhavam de acontecer, a noite ficava ainda mais
estragada, éramos obrigados a rezar a dobrar, já não só pela intempérie mas
também pelo sacrilégio de acender em vão uma vela benzida.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Em
certas ocasiões perguntei, assustado, se acenderíamos velas benzidas caso a
trovoada fosse ainda mais insuportável, mas quem aferia os rigores do clima era
a avó e o método dela de combater o mal meteorológico consistia apenas em
rezar, rezar com fervor, voltar a rezar. Nunca acendia frivolamente uma vela
benzida. Na verdade, estava certa: não me lembro de nenhuma tempestade com um
desfecho dramático, tínhamos sobrevivido a todas. Mesmo quando os meus nervos
gritavam o contrário. Mesmo quando os baldes e os alguidares que aparavam as infiltrações
do vendaval transbordavam uma dúzia de vezes na mesma noite e o granizo lá fora
tinha o tamanho de ovos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Acendia-as,
a avó, em certas datas evocativas, quando a mim isso me parecia supérfluo, um
desperdício o próprio fósforo. Entendíamos o mundo de forma diferente, ela e
eu. Eu olhava para as coisas no momento em que elas surgiam; a avó tinha
costumes, efemérides, memórias, a Bíblia. Eu vivia no futuro, ela no passado. O
resto da família, o presente entre nós, obedecia-lhe a toda a hora.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Não
tanto quando a luz falhava. Quando a luz falhava a casa parecia finalmente
ampla, havia privacidade, podiam esquecer-se de mim. O espaço comum reduzia-se
àquilo que as velas iluminavam. Fora do alcance da luz existia o mundo de cada
um e menos disposição para se invadir o mundo alheio. A noite recuperava uma
boa parte da sua função primordial.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Sou
capaz de me lembrar de algumas das leituras que fiz em noites daquelas, mas
sempre que penso no assunto é o mesmo livro que evoco. Um volume de folhas
grossas, amareladas, com textura e odor a fundo de baú, tomado de empréstimo na
biblioteca itinerante. Um romance sobre homens pré-históricos e a sua luta para
preservar o fogo. Parece demasiado adequado, bem sei, mas não houve qualquer
planeamento da minha parte. Escolhi-o à sorte e estava sempre a tentar lê-lo, à
espera que me mandassem interromper a leitura, porque a comer não se lia. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Depois
vinha a tempestade, a luz falhava e eu podia ficar à mesa com o livro. Nessas
alturas podia. Cheguei a pensar, posteriormente, que a súbita tolerância do meu
vício estava relacionada com o ditado que se aplicava noutras ocasiões, quando
por conveniência se queria dizer que sem testemunhas não havia pecado: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">o que os olhos não vêem o coração não sente</i>.
Claro que eles me podiam ver, se o quisessem mesmo, mas não se pode negar que
há na meia-luz das velas sombras bastantes para usar como convenha.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">A
avó, no topo da mesa, tinha forte miopia e deixava de me ver. O resto da
família, que me podia ver se quisesse, talvez ficasse contente por não ter de
pensar no assunto. Devia ser cansativo lidar com a avó e comigo todos os dias,
balançando entre um sentimento e outro. A avó só queria rezar, e eles rezavam,
como não o fazer? Eu só queria ler, e se falhava a luz ninguém se importava com
isso, não se notava a ausência da minha voz nas orações, no longo responso
quotidiano.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Quando
ela adoeceu numa daquelas noites sem luz, eu não tinha nada de particular em
mente, apenas me ocorreu que era uma boa ocasião para recorrer ao <i style="mso-bidi-font-style: normal;">stock</i> de velas benzidas. Havia, de
resto, uma surpreendente concordância entre o regime instituído pela avó cá em
casa e o que narrava o livro que eu estava a ler, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O Clã do Fogo</i>. Nele aprendi que os anciães pré-históricos tinham um
lugar de relevo nos grupos sociais e por isso eram frequentemente velados com
tochas ao redor do corpo. Quer dizer, não tão frequentemente, só quando
morriam. O fogo era o que de mais importante o clã tinha, e as sucessivas
gerações dedicavam-se a preservar a chama. Literalmente — ninguém saberia como
a reacender, se acaso a deixassem extinguir. Transportavam e alimentavam
permanentemente as brasas. Era isto o que o livro tinha de fascinante e era por
isso que a maior homenagem que se podia fazer aos mortos ilustres era rodeá-los
de múltiplas chamas, tantas mais quanto maior fosse a importância do defunto.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Eu
achava a avó importante, não se me pode negar isso. Não era aliás possível que
eu não lhe reconhecesse importância. Ela era o centro da família. Tudo na casa
girava em torno dela. Era indubitavelmente a cabeça do clã. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Acompanhei
o resto da família quando a levaram em braços para a cama e estive tão perto da
cabeceira quanto pude enquanto o médico, que atravessou o temporal, a examinou.
Estava perto da cabeceira quando ela ordenou que me levassem dali, desprezando
a minha vontade — mesmo se lhe faltavam as forças para outras coisas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Depois
de a avó ter adormecido e de todos nos termos finalmente deitado, eu não
conseguia dormir nem deter os pensamentos. Era a primeira vez que eu via o
ancião do meu próprio clã soçobrar daquele modo, a primeira vez que o ancião
dos anciães (eram quase todos anciães, do meu ponto de vista) recolhia febril ao
leito perante a aflição generalizada. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">A
luz não tinha voltado, mas eu sabia onde e como encontrar os castiçais e os
fósforos, e desta vez parecia-me evidente por muitas razões que não seria
repreendido por usar as velas benzidas. Mesmo que o meu domínio do fogo se
revelasse incipiente e os resultados da iniciativa incertos, tendencialmente
catastróficos, fatais.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">A
avó morreu carbonizada — mas sem testemunhas não havia pecado.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;"><o:p> </o:p></span></p><br /><p></p>Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-29851649835920552922024-02-04T23:58:00.000+00:002024-02-04T23:58:22.022+00:00[Alterações Climatéricas #2]<p align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 20.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;"><br /></span></b></p><p align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 20.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Despedida de solteira<o:p></o:p></span></b></p>
<p align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><br /></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Estavam
ali há dois dias e a mulher não sabia quando ia aquilo terminar. Eram já talvez
menos de meia centena, não se conseguia ver toda a gente. Cada um tinha-se
agarrado de imediato a uma das árvores jovens da avenida ou a um poste, mas
muitos foram os que não o lograram e se perderam. À hora em que tudo começou,
não havia muitas pessoas na rua, o que amenizara a tragédia, mas mesmo assim
ela imaginava que uns duzentos transeuntes, só naquele quarteirão, tivessem
simplesmente sido levados.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">O
vento surgiu com violência extrema no minuto que precedeu a queda da noite e a
iluminação pública já não se acendeu. Quando alguns tentaram vencer o choque e
tomar consciência do problema não havia luminosidade para avaliar com clareza
as circunstâncias. A maior parte começou de imediato a gritar, em pânico, o que
impediu durante um par de horas a comunicação e qualquer tentativa de reagirem
colectivamente.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">A
mulher, como decerto vários dos outros, experimentou por vezes soltar-se, mas
no momento em que o fazia via-se obrigada a recuar para a relativa segurança do
seu apoio. Tudo acontecia como se alguém ou alguma coisa estivessem atentos aos
seus movimentos e a eles se opusessem. O vento parecia acalmar quando estavam bem
agarrados, mas levantava-se de novo se alguém fazia menções de arriscar uma
corrida para o umbral de uma porta. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Quatro
deles tinham experimentado um cordão humano através do passeio, segurando-se
mutuamente pelos braços para tentarem atingir a entrada de um prédio, mas a
resposta da intempérie foi terrível e dois foram arrastados pelo cimento. Nos
minutos seguintes, como que em retaliação, sopraram rajadas tão fortes que
todos os que estavam na rua sentiram os pés levantar-se e o corpo projectar-se
na perpendicular do respectivo apoio. Era absurdo, mas dir-se-iam bandeirinhas
em mastros, a drapejar a meia haste. Salvaram-se os que, apesar do desespero,
tiveram o instinto e a força para se cingirem mais e não saírem a voar. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Depois
foram devolvidos ao chão e no resto da noite não tiveram mais atrevimentos.
Limitaram-se a envolver firmemente a árvore ou o poste que lhes coubera —
colocando-se do lado do vento para não terem de confiar apenas na força dos
braços — e a esperar que o fenómeno se mantivesse numa intensidade suportável. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">De
madrugada, com o cansaço, tinham caído de joelhos, sentando-se alguns sobre as
pernas, sem deixarem de abraçar o esteio. Ninguém dormiu.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">O
dia amanheceu cinzento e, desoladamente, ainda ventoso. Para além dos inúmeros
detritos que o vento fazia rolar pela rua ou pairar em remoinhos à altura dos
rostos, não havia qualquer outro movimento. Não havia trânsito nem acções da
protecção civil. A vida urbana e as operações de socorro estavam suspensas à
espera que a situação mudasse.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">A
cidade mostrava-se esventrada, as rajadas mais fortes tinham arrancado
elementos das coberturas e das fachadas dos edifícios. Viam-se árvores
derrubadas e abundância de galhos no chão. Os contentores de lixo tinham sido
tombados e a espaços deslizavam pelo pavimento. Havia automóveis voltados. Fora
uma sorte não terem sido atingidos por nenhum objecto nos piores momentos,
quando o vento soprara com ira infernal. Era, de toda a maneira, um milagre
terem sobrevivido tantos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Embora
a luz do dia desse à situação um aspecto menos desesperado, todos concordavam
interiormente que não estavam salvos. O ar uivava ainda de forma assustadora,
revolvendo os cabelos e as roupas. A via pública parecia um rio cuja corrente
transportava os despojos da tempestade.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Ao
final da manhã, houve alguém mais ousado — ou alguém que desesperara. Um homem,
dos que ficaram retidos no outro lado da rua, soltou-se do seu poste com um
brado vitorioso e saiu a correr para o túnel do metro. Infelizmente, quando
parecia prestes a agarrar-se ao gradeamento das escadas — permitindo a todos os
outros, que o observavam com atenção, alimentar a esperança —, o vento
levantou-se como nas vezes anteriores e de novo a rua ficou por instantes
decorada com bandeirinhas humanas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">À
tarde, a fome veio juntar-se aos demais incómodos: deram-se conta de que tinham
saltado algumas refeições. Felizmente, por entre os habitantes do bairro, que
espreitavam pelas janelas com inquietação e impotência, houve o mesmo
pensamento. Alguns dos vizinhos apiedaram-se e mostraram coragem. Em diferentes
momentos, quatro ou cinco portas abriram-se por breves segundos e, com um grito
de alerta, garrafas de água, iogurtes líquidos, fruta e diversas embalagens de
comida foram arremessadas como bolas de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">bowling</i>
ao encontro daqueles que tinham sido apanhados pelo temporal. A maior parte da
comida perdeu-se, porque a precipitação dos lançadores e a força variável do
vento a fazia passar demasiado longe do alcance. Mesmo assim, conseguiam
apanhar uma ou outra peça. Por vezes, nenhuma daquelas que tinham sido lançadas
pelos moradores dali, mas alguma das que vinham a rolar pela rua, resultado da
generosidade de um ou outro quarteirão mais adiante.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">As
árvores e postes que serviam de esteio eram também aquilo que servia de escudo,
sempre que o vento trazia objectos maiores capazes de ameaçar a integridade dos
que ali permaneciam. Um contentor do lixo ou uma chapa de cobertura eram
instrumentos mortíferos que os obrigavam a passar para o lado oposto do apoio e
a perfilar-se o mais possível.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">A
seguir aos momentos de maior força do vento, que ocorriam sempre que alguém
ponderava uma fuga, houve quem amarrasse uma das pernas (ou braço) ao poste com
o cinto, para o caso de as suas forças cederem. O que acontecia frequentemente:
ao longo das horas, o número dos sobreviventes tinha vindo a diminuir, num
conta-gotas macabro.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">De
vez em quando, um corpo que se desprendia chocava violentamente com outra
pessoa, agarrada à protecção seguinte, e o número de vítimas duplicava. Numa ou
outra ocorrência, o infeliz que saía a rebolar da sua protecção era resgatado
por um dos que se encontravam no seu percurso. Mas não por muito tempo: era
mais difícil manterem-se duas pessoas no mesmo apoio e o mais fraco (ou os
dois) acabava por se soltar definitivamente.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Nas
proximidades da mulher havia dois homens, ninguém que ela conhecesse. Quando
falavam uns com os outros, tinham de levantar a voz, para se sobreporem ao
vento, que soava como música demasiado alta. Dado que a conversa implicava
esforço, tentavam não falar muito e reservar a energia para a tarefa principal
(permanecerem agarrados e vivos). No entanto, conversar era também uma forma de
manterem alguma serenidade. A partilha amenizava o desespero.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Um
dos homens era casado e lamentava nada saber da sua família, de quem contou
diversos episódios amorosos e comoventes. Rezava para que tivessem chegado cedo
a casa. O outro começara por se preocupar com o carro, um BMW novo em folha que
não tivera tempo de meter na garagem, mas depois fora-se cingindo ao essencial,
acabando verdadeiramente assustado com a ideia de morrer sem ter tempo de
emendar uma ou duas coisas que fizera de muito errado na vida. A mulher
queixou-se por nenhum dos vizinhos se ter lembrado de enviar bebidas
alcoólicas, o que mais jeito agora lhes daria. Tentava a via do humor, ou de
facto necessitava de beber. Por mais de uma vez, também se lamentou por ter
ficado sem a bolsa, onde tinha o tabaco, e um dos homens, num momento mais
calmo, acabou por lhe lançar um maço, com o isqueiro dentro, declarando ser
aquele um bom dia para deixar de fumar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Por
volta da uma da manhã da segunda noite, enquanto tentava sem sucesso acender
mais um cigarro protegendo-se do vento, a mulher declarou indiferentemente que
iam morrer, provocando no grupo um silêncio grave. Depois, com algum acinte,
exortou os seus companheiros de infortúnio a proferirem as suas <i style="mso-bidi-font-style: normal;">famous last words</i>, talvez não tivessem
já muito mais tempo. Como nenhum abrisse a boca, decidiu sentar-se no chão,
aborrecida e cansada, e confiar que a ninguém ocorresse provocar a ira do vento
durante o resto da noite.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Quando
abriu os olhos na manhã seguinte, despertada do torpor pela primeira claridade,
descobriu que nenhum dos homens estava no seu lugar. Não havia, aliás, vivalma
em toda a rua. Dir-se-ia que ninguém excepto ela sobrevivera ao fenómeno
climatérico.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Era
um amanhecer sereno, de um silêncio completo, sem a mínima aragem. Um amanhecer
absurdo, que a fazia imaginar-se a infeliz sobrevivente de um holocausto
nuclear, a última mulher na Terra. A rua deserta e juncada de lixo corroborava aquela
sensação. Soltou-se do poste e tentou os primeiros passos cambaleantes.
Sentia-se como na ressaca de uma noite de bebedeira. Ao longe viu um movimento
e, depois de esfregar os olhos, percebeu que se tratava de um táxi, que
avançava pela rua suja abrindo caminho como um blindado num campo de batalha.
Instintivamente ergueu o braço. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27.0pt;"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Nesse
momento, notando que usava uma pulseira que dizia «Bride», lembrou-se que era o
dia do seu casamento e pareceu-lhe que de novo o vento se levantava impedindo-a
de caminhar. Correu para a árvore mais próxima e vomitou, agarrada ao tronco.<o:p></o:p></span></p><br /><p></p>Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-43748269254466555862024-02-04T06:42:00.001+00:002024-02-04T19:57:37.296+00:00[Há década e meia imaginei uma série de contos chamada “Alterações Climatéricas”. Foram precisas 19 historietas para me convencer do fracasso da empresa. Esta era a 16.ª. Não era das piores, acreditem.]<br /><br /><br /><p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm;"></p><p align="center" class="MsoNormal"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 20pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">À espera do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">dealer</i></span></b><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 20pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 20pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;"><o:p> </o:p></span><span face="Calibri, sans-serif" style="font-size: 11pt; text-indent: 27pt;">Ali
estão eles, mais uma vez. Chegam numa pressa patética, como se fossem as
pessoas mais ocupadas do mundo, e depois sentam-se nos bancos da rua,
impacientes mas apáticos. De vez em quando, um deles levanta-se e sai novamente
disparado, a oscilar muito os braços, como se se tivesse lembrado de uma coisa
importantíssima que tivesse deixado por fazer. Mas regressa, e volta a
imobilizar-se num dos bancos, ou numa esquina qualquer da rua.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Não
olham para nada em particular. Estão apenas ali, à espera, com as suas carinhas
grotescas, uma trupe de circo de horrores. Parecem predestinados para o vício.
Há algo de feio neles que é anterior às porcarias que metem no organismo.
Talvez a droga prefira gente assim.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Outros,
certamente, ficam ainda mais desfigurados por andarem naquilo. Enruga-se-lhes a
pele, ganham bexigas ou crostas, caem-lhes os dentes, tornam-se corcundas ou
defeituosos dos membros. Uma espécie de leprosos, mas destes nem Cristo se
apiedaria.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">É
a hora do almoço e ele está a observá-los da janela do primeiro andar. A rua é
pedonal e tem umas arvorezinhas que dá gosto ver. Mas também atrai a escória da
sociedade e não é fácil ignorar o que se passa lá <st1:personname productid="em baixo. Como" w:st="on">em baixo. Como</st1:personname> aquela
prostituta velha, que atravessa por ali para chegar ao seu posto de ataque. E
para regressar a casa. Ah, como ele gostaria de almoçar um dia desfrutando
apenas dos jacarandás em flor.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">O
tempo ameaça trovoada (quase se sente a electricidade) e ele pergunta-se quais
serão os requisitos para um dilúvio. Deus já lavou a terra uma vez à força de
muito chover, porque não repetir o feito? Para o caso que o incomoda, não seria
preciso um caudal bíblico — uma simples monção estaria bem. Chuva a cântaros em
cima daquela gentalha durante uns dez minutos e a rua ficaria desimpedida o
tempo suficiente para ele acabar de almoçar à janela sem ter de assistir às
misérias do mundo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Mas
no fundo sabe que isso não acontecerá. Tem sido assim a semana inteira, a
ameaça anunciada na televisão mas nunca concretizada de um dilúvio purificador.
Os drogados à espera do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">dealer</i>, que
mais tarde ou mais cedo aparece. A prostituta no seu vaivém. Ele esperançado
num gesto divino. E a tarde entrando afinal soalheira, zombeteira. Dá vontade
de praguejar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Lá
vem ela, a puta velha. E os anormais a olhar. Já não têm forças para uns
piropos — o que seria o mínimo de esperar de gente da sua laia. A verdade é que
também não têm dinheiro para a mulher (vai todo para o vício) — nem para aquele
destroço têm dinheiro. E, se tivessem, faltar-lhes-ia o vigor, não seriam
homens suficientes, com o organismo todo corroído e as partes mirradas. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Olá,
agora vêm as adolescentes, as putinhas do bairro. Estas, meus amigos, não são
para os vossos dentes, nem <st1:personname productid="em sonhos. T ̄o" w:st="on">em
sonhos. Tão</st1:personname> puras que elas parecem, tão virginais. Bem, na
verdade não parecem nada disso, e no que lhe concerne deixava-as ir no dilúvio
junto com os outros todos. O bairro inteiro está precisado de uma purga e ele
não vê razão nenhuma para deixar estas meninas de fora. Talvez haja, pelo
contrário, razões maiores para eliminar aquela fonte de pecado. Sim, para ser
totalmente honesto, aquele grupinho tem feito mais pela perdição da sua alma do
que os <i style="mso-bidi-font-style: normal;">junkies</i> e as putas adultas
todos juntos. Oh, Deus, como tem ele lutado por vencer a tentação. E como tem
sido derrotado nessa luta.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">(Ainda
assim, agradece todos os dias fervorosamente estar livre do vício de outros,
daqueles que não resistem aos rapazinhos.)<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Resolve
atacar a sobremesa antes que venha de novo o impulso onanista, que tanto o tem
consumido física e espiritualmente. Enquanto come a tarte de morangos,
segurando talheres em ambas as mãos para as ter ocupadas, reza, reza
furiosamente. Quer invocar Deus, fazê-lO presente, mais presente do que o peões
do Demo que desfilam debaixo da sua janela, mais presente do que O tem sentido
nos últimos tempos, ou do que alguma vez O sentiu. Mastiga com voracidade e
pronuncia as palavras sagradas de boca cheia, abana o torso para a frente e
para trás como o raio de um judeu. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Talvez
não lhe tenham ensinado as fórmulas correctas. Ainda ontem viu um filme que o
surpreendeu ao mostrar-lhe um ritual muçulmano diferente, uma forma de rodopiar
sobre si próprio até ao êxtase, como certas danças tradicionais mas mais intenso. Talvez a
culpa não seja dele, mas dos insípidos rituais católicos, que carecem de
misticismo e eficácia. De intensidade!<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">De
qualquer modo, são horas de ir embora. O tempo para o almoço já passou e os
deveres não podem ser adiados. Era bom que a chuva viesse de uma vez e lavasse
a rua e com isso a sua alma. Mas tudo indica que não vai ser hoje, a
meteorologia terá de engolir outro sapo, o quinto da semana. Prova de que
também a ciência falha.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Deixa
os pratos na mesa, vai à casa de banho, recolhe no escritório aquilo que
precisa para as ocupações da tarde e desce as escadas. Ao abrir a porta da rua,
a chuva cai, quando já não a esperava, com intensidade tropical, e ele
pragueja. Que raio de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">timing</i>. Já não
poderá desfrutar da debandada da escumalha.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Estica
o pescoço para a rua para tentar ver as corridinhas irritadas da triste fauna
do bairro, mas nenhum dos drogados se mexe. Estão firmes nos bancos, como se a
hora de espera fosse para cumprir com a mesma apatia de sempre. A vontade dos Céus é-lhes indiferente. O <i style="mso-bidi-font-style: normal;">dealer</i>
há-de vir, parecem dizer os seus rostos dantescos, cabe-nos esperar com
resignação, nem que chovam picaretas. Ele ia pensar numa analogia com algo que
lhe era próximo, mas decidiu que chegava de perder tempo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Merda,
praguejou mais uma vez. Tinha o carro na outra ponta da rua e não havia nenhum
guarda-chuva <st1:personname productid="em casa. Ia" w:st="on">em casa. Ia</st1:personname>
ter de correr e suportar os olhares de escárnio. Aquela gente não arredava pé e
ele não podia esperar que o tempo aliviasse, estava mesmo em cima da hora. Em
vez de espectador, seria protagonista de uma corrida à chuva.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 27pt;"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Cobriu-se
com a estola, que tirou de entre os livros, e meteu-se à enxurrada, com os
olhos fixos no chão. A batina arrastava um pouco e estava a ficar ensopada. Ia
ter de repreender a menina Gertrudes: fartara-se de dizer que gostava dos
paramentos com a bainha curta.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></p><br /><p></p>Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-4072035497460217452024-01-25T04:03:00.003+00:002024-01-25T04:03:51.677+00:00Como travar o fascismoDurante muitos dos últimos anos, demasiada gente achou um exagero ou “inexacto” (como se se tratasse de um debate académico) tratar os movimentos de extrema direita como fascistas ou sequer protofascistas. A versão lusa desta praga, então, era poupada e minimizada como uma simples anedota de mau gosto.<div>Tal resistência semântica poderia ser ilustrada com o gesto enfadado de um <i>flanêur</i> que brande a sua luva flácida para afastar moscas ou caracterizada como um receio instintivo ou patológico de <i>self-fulfilling prophecies</i>. Traduzindo, havia quem não estivesse para se incomodar com ninharias e quem sufocasse por reflexo certas palavras temendo que a sua verbalização as pudesse tornar realidade. <br />Seja como for, na ânsia de negar que a história se estava a repetir, demasiada gente andou (e anda) de facto a replicar os erros dos anos 20 e 30 do século XX que Paul Mason cataloga no seu “Como Travar o Fascismo” (Objectiva, 2022). <br /><br />Certos capítulos do livro ecoam na minha cabeça quando leio que Paulo Portas excitou a audiência definindo como adversária da AD «a nova ameaça vermelha da “geringonça 2.0”» e quando vejo o PCP sobretudo ocupado, aparentemente, a saltar fora de uma geringonça 2.0. <br /><br />Hitler e Mussolini poderiam sentir-se insultados se alguém propusesse que o nosso Dr. Sapo de Loiça os está a emular, mas teriam de se lembrar de que, apesar de melhor talhados para as artes dramáticas, também eles foram objecto de anedota antes de serem caudilhos bem-sucedidos. <br /><br />Todavia, os comunistas e outras esquerdas alemãs e italianas cometeram a certa altura o erro de insistir em velhos adversários, deixando campo aberto para o novo inimigo — e as anedotas sobre Hitler e Mussolini deixaram de ter piada. <br /><br />Confio, como exercício de retórica, que em Portugal já todos saibam quem é o inimigo e comecem a abandonar o medo do ridículo e das palavras (e a velha indolência burguesa) para encher as ruas e as urnas de democracia antes que elas se encham de ressentidos e arrivistas. <br /><br />Mas quero em particular confiar que o PCP está atento ao enredo da História. Posso lastimar, entre outras coisas, a forma como aquele partido tem lidado com a invasão russa da Ucrânia, mas sei que, se tudo falhar, os comunistas vão ser os primeiros na rua a enfrentar a punho as falanges de arruaceiros fascistas que não tardarão a saltar da toca. Até porque, serão dos primeiros alvos. Quando nada mais resta, é bom que a democracia tenha uma guarda pretoriana, imperfeita que seja.<p></p></div>Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-31724582638799669522023-11-15T00:42:00.002+00:002023-11-15T00:42:39.027+00:00Facas, bulas e Testemunhas de Jeová<b>Facas. </b><br /><br />Não sei se o <i>designer </i>tinha em mente beleza e funcionalidade quando concebeu os talheres com cabo redondo em aço polido, mas as constantes escorregadelas e reviravoltas da faca na tentativa de cortar o conduto e as dores nos dedos resultantes da tentativa de a domar induzem-me a suspeita de que falhou ambas. O utensílio é disfuncional e a meio da refeição, com as artroses a dar sinais prematuros, já não somos capazes de ver beleza nenhuma na forquilha mal engendrada. <br /><br /><br /><b>Bulas. </b><br /><br />A partir de certa idade começa a incomodar-nos que os fabricantes dobrem a bula sobre as tabletes dos comprimidos de modo a que, se abrirmos a caixa pelo lado indicado, tenhamos sempre que vencer mais esse obstáculo antes de chegar à droga. A intenção é nobre («leia sempre a bula antes de se medicar») mas o resultado não é bom para cardíacos. <br /><br /><br /><b>Jeovás. </b><br /><br />Ao chegar à loja de conveniência das bombas de gasolina clientes aconselham-me a não entrar. Há um tipo perturbado e com ar de sicário da máfia a falar alto lá dentro. Fico ao largo a medir os acontecimentos. Minutos depois ele afasta-se para o fundo da loja e uma moça atreve-se a ir pagar o combustível. Sem desculpa e com a missão de arranjar vinho para o magusto, entrei também, para logo ser sujeito aos decibéis do personagem. Mantive-me em sentido, como os filmes aconselham que se faça perante um <i>grizzly bear</i> mal-disposto, e estendi-lhe a mão quando ele a estendeu, daquela maneira a que os malucos sempre recorrem quando querem parecer inofensivos. Preparava-me para correr pela vida da garrafa quando comecei realmente a ouvir o que ele dizia. Afinal, era só um mensageiro do Sistema Nacional de Saúde travestido de Testemunha de Jeová a anunciar que o vinho e os chocolates e todos aqueles produtos expostos eram — violentamente, no caso — condenados por Jeová e Manuel Pizarro.Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-3561566934646000632023-10-07T19:50:00.002+01:002023-10-07T19:50:26.717+01:00PausaDuas moças falam de desentendimentos amorosos havidos com terceiros. Uma delas é, ao que parece, vítima de ciúmes retroactivos. Tinha havido uma ruptura e uma reactivação e pelo meio a vida. <br />«Nós naquela altura não namorávamos», queixa-se à amiga. «Não namorávamos!», insiste algumas vezes, com ênfase, em crescendo.<br />Abrando discretamente o passo à espera de ouvir um sonoro e rossiano «<i>We were on a break!</i>», mas a moça é demasiado nova ou não está com humor para a <i>punchline </i>que este texto implora.Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-38482566946706059682023-10-06T00:17:00.001+01:002023-10-06T00:25:51.631+01:00MutanteÀ distância, enquadrado na vitrina do café deserto como num quadro nocturno de Hopper, algo indefinido e perturbador lhe desenha no rosto a expressão macabra do <i>Joker</i>. Um pouco mais de perto, a figura transforma-se num inesperado e aprumado comandante de navio norueguês com uma barba branca rigorosamente talhada, em frente ao seu chocolate quente. Entramos então no café e constatamos que é apenas o Zé Manel e as suas rugas num raro dia de crânio e fácies aparados, bebendo Super Bock à caneca com sorriso enfastiado de marinheiro em doca seca. <p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm;"><o:p></o:p></p>Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-40780450650544500562023-10-03T23:48:00.002+01:002023-10-03T23:51:21.225+01:00Transmissão de relatosA CMTV pode não ter os direitos de transmissão de certos jogos de futebol, mas exerce o direito de transmitir durante noventa inóspitos minutos imagens dos seus relatadores e comentadores a relatarem e a comentarem esses jogos.<br />No relato a que assisto (eis uma expressão que há quarenta anos ninguém suspeitaria vir a empregar, não por ser descrente da evolução tecnológica mas por lhe faltar imaginação para achar interesse no exercício), o relatador cumpre sem esforço o papel de afastar qualquer fantasia que alguém tivesse sobre a mímica, a gestualidade e a sanidade dos relatadores de futebol. Tirando a prosódia empolgada, nada na sua esfinge nos remete para domingos à tarde de rádio no ouvido. <br />Pelo seu lado, o comentador não comenta quase nunca, mas sofre permanente e visivelmente (não por estar ali, como se julgaria, mas pelo jogo a que assiste no seu monitor), o que me leva a conjecturar que ele foi posto no estúdio apenas para ilustrar a imagem de um adepto em frente à televisão em dia de jogo. A televisão como espelho e sem metáforas, portanto. Nos momentos em que o comentador está sem som, poderíamos ser levados a considerar que ele fez uma pausa no sofrimento para soltar com recato palavrões ou insultos ao árbitro — se ignorássemos a existência dos programas de «análise» desportiva. <br />O terceiro elemento com que a CMTV talvez justifique a ideia peregrina de relatos (não jogos) televisionados é uma janela em miniatura inserida entre relatador e comentador através da qual vemos, não sei se alternadamente, um dos treinadores das equipas a tentar dirigir, a partir do seu território desenhado a cal no melhor estilo <i>Dogville</i> à margem do campo, um jogo de que só temos conhecimento pelo relato, pelo sofrimento alheio e pelo gesticular montypythoniano do «mister». <br />Mas eis que a certa altura a televisão se ilumina com fotografias de um remate, de uma falta ou de um golo — e concluímos que a CMTV se poderia chamar nesses momentos <i>Correio da Manhã Slide Show</i>.Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-24373291515942972032023-10-02T00:36:00.005+01:002023-10-02T00:38:40.740+01:00ReacçãoEstou tranquilamente a viver acima das minhas posses no Vintage do Pinhão quando em baixo, junto ao rio, passa um grupo de rapazes levando música no telemóvel em volume que há trinta anos apenas se conseguia carregando ao ombro um armário estereofónico. A música também é herdeira do mesmo género <i>rap</i> sem causa ou <i>gangsta rap</i> ou quejando. Passam lentos e exasperantes como uma procissão, ou como o soprador de folhas de árvores nas madrugadas urbanas e insones de Outono, antes que consiga retomar a leitura e a vida silenciosa de rico. <br /><br />Mais tarde, regressava já a casa e à classe média baixa, vi-os a caminhar enfileirados na berma da estrada e esfreguei vingativamente o volante. Quando os alcancei, abri a janela do carro e atirei-lhes para cima, ufana e estentórea, uma ária da ópera que ia a ouvir. <br />Confio que lhes tenha doído.Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-43838346504027899092023-08-29T02:00:00.001+01:002023-08-29T02:02:29.251+01:00Havia talvez maneiras piores de passar o mês de Agosto<p>Ao longo do mês, entretive-me a rever levemente <i>Aranda</i>, o
meu livrito encalhado. Quando se convida alguém para casa, arejam-se antes os
compartimentos e espanam-se os móveis. A casa não ficou pronta para receber a <i>¡Hola!</i> — odeio a faina do lar e aquele domicílio precário não era limpo há uma década —, mas lá consegui esconder algum do lixo debaixo do tapete. Não foi a
experiência traumatizante que temia. Havia talvez maneiras piores de passar o mês de
Agosto.</p><p class="MsoNoSpacing"><o:p></o:p></p>
(Os onze capítulos ficam no blogue por algum tempo, não
sei quanto. O melhor é precaverem-se e copiarem-nos para os vossos
dispositivos, quem sabe.)<p class="MsoNoSpacing"><o:p></o:p></p>Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-91867616629900601212023-08-03T00:45:00.001+01:002023-08-03T00:45:09.237+01:00De boas famílias e brasonadosEis António Pinto Pereira, figurão entre o sinistro e o patético, que se diz militante do PSD mas é apaixonadíssimo pelo Chega, a caracterizar a elite chegana: «Ontem estive no jantar do Chega de final de ano legislativo em Cascais. Vi ali 300 pessoas educadas, de boas famílias, gente de direita, brasonados, antigos alunos do Colégio Militar, católicos, muitas crianças, antigos alunos meus, gente de princípios, convicções e valores!!»<br /><br />Pergunto-me que espécie de tontos servis são todos os pés-rapados sem brasão que vêem na quadrilha do Dr. Sapo de Loiça a salvação do povo...<p class="MsoNoSpacing"><o:p></o:p></p>Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-83001754394459008912023-07-24T03:27:00.002+01:002023-07-24T03:27:26.645+01:00PassarõesIntérpretes de linguagem corporal e especialistas de leitura labial e mímica teriam podido traduzir a conversa observada à distância mais ou menos deste modo:<br /><br />Ele: Vestir-se e arranjar-se arrebicadamente é coisa das mulheres, não dos homens. Nos machos não é natural. <br /><br />Ela: Não é natural nos machos? Pois olha que que nos pavões é o macho que se abana todo com leques coloridos cheios de berloques e dá gritinhos de cio. E nos melros é o macho que usa uma penugem lustrosa de ébano e biquinho amarelo, enquanto a fêmea se apresenta com o ar empoeirado e hirsuto de quem cheira a cavalo cansado. Como tu.Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-9859142940595238232023-07-04T02:15:00.003+01:002023-07-04T02:15:23.166+01:00<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiQ4RTSmESMZUKXFIdAtxsy5H4XIQmoJIv_-i-uGk-YEqvhWj0JAAfEixWQ8IW30Dysn3Hfpd9qRRjap2UbtG8sOeqbV3M8tDuNrax8xRLka5MiHS526Nb1Usn8pvik65T0c59bkil7qAz-cfbk6IwoNF7Y4bDBu0MvQw49ib1jEcHoeXgIWtFj/s2048/Velharias%20morais.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1152" data-original-width="2048" height="225" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiQ4RTSmESMZUKXFIdAtxsy5H4XIQmoJIv_-i-uGk-YEqvhWj0JAAfEixWQ8IW30Dysn3Hfpd9qRRjap2UbtG8sOeqbV3M8tDuNrax8xRLka5MiHS526Nb1Usn8pvik65T0c59bkil7qAz-cfbk6IwoNF7Y4bDBu0MvQw49ib1jEcHoeXgIWtFj/w400-h225/Velharias%20morais.jpg" width="400" /></a></div><div style="text-align: center;">...e bugigangas éticas.</div>Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-55157478775202130412023-07-04T02:11:00.001+01:002023-07-04T02:11:02.745+01:00Duas perspectivas do mundoParaíso: um grupo de crianças amorosas acaba de se divertir inocentemente com uma brincadeira e, unindo-se magnanimamente em coro angelical, pede bis para que todos em redor possam partilhar o encantamento mais uma vez.<div><br />Inferno: hordas de crianças histéricas e sádicas guincham repetida e insistentemente a exigir “só mais uma, só mais uma” repetição de qualquer coisa que tinha acabado de danificar severamente a audição e o juízo dos adultos.</div>Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-19416417584002527512023-06-27T02:00:00.005+01:002023-06-28T01:11:16.566+01:00Os imortaisNa casa dos vinte, poderiam ser um casal em lua-de-mel a emergir para um <i>cocktail </i>ao final de uma tarde de romance. A arquitectura é <i>belle époque</i> e do terraço observa-se um bosque centenário e voluptuoso. Mas eles não vieram para contemplar. Ainda antes de lhes servirem as bebidas, já um dos dois dá as cartas e ambos seguram o jogo em leque junto ao peito. Ponderam as jogadas, espreitam clandestinamente o adversário tentando adivinhar-lhe as cartas, enfrentam-se por vezes com olhares de póquer que só desviam para consultar de novo a mão que têm.<br />Fazem tudo, inesperadamente, sem ironia, sem fingimento, sem brincadeiras, sem as provocações, as sabotagens ou as zombarias próprias de quem joga cartas em família. Não são, está visto, um desses casais amantíssimos a quem o jogo cedo aborrece por nenhum sentir prazer em vencer o outro. Mas também ainda não têm idade para pactuarem projectar num feroz jogo de cartas a vontade de derrotar ou humilhar o cônjuge. <br />Seja como for, ali estão, alheados, sem pressa, como adolescentes do século XX nas férias grandes — ou seja, imortais —, dando tudo como garantido e eternamente cíclico, incluindo a exuberância das folhagens de Junho que não espreitam nem pelo canto do olho.Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-64157001067576327322023-05-25T01:31:00.000+01:002023-05-25T01:31:28.113+01:00«Traição»<div>[A propósito do <i>derby</i> Feira do Livro x Bola.]</div><div><br /></div><div><br /></div>Tinha ficado bloqueado naquela canção como um disco riscado. Ela gostava de o levar a passear pela rua enquanto ele a cantava baixinho e lhe apertava a mão. <i>«Will you still need me, will you still feed me…»</i>. Tinham muito mais de sessenta e quatro (a esperança de vida em Portugal aumentara desde os Beatles), mas, sim, ela continuava a precisar dele e a alimentá-lo, agora de uma forma literal, a colherinhas de sopa. <br /><br />Havia um recolher obrigatório — os tempos hoje eram assim — mas ela estava cansada de estar em casa, queria sentir a brisa do fim da tarde, passear de mão dada pela marginal. De modo que ignorou os avisos e fez o que lhe apetecia fazer. <br /><br />As claques não tardariam a encher as ruas, evidentemente. Era dia de <i>derby</i>, e as autoridades em dias destes faziam questão de reservar o espaço público para os hunos. Faziam-no em nome da segurança e do bem-estar social. E ela tinha de concordar que de um certo ponto de vista era mais razoável para o cidadão comum ficar em casa, sequestrado pelo seu próprio Governo. <br /><br />Mas não naquele dia. Celebravam cinquenta anos de casados, uma união precipitada no final dos anos sessenta, quando ele confundiu o desejo dela com paixão e ela, que pensara iniciar então uma vida de amor livre e flores no cabelo, se embeveceu com a ingenuidade do futuro marido e acedeu a dizer sim, mesmo que na altura não achasse que aquilo a comprometia de forma alguma. Cinquenta anos em que nem por um dia a banda sonora oficial daquela união improvável (<i>«will you still need me, will you still feed me…»</i>) deixou de se ouvir. Cinquenta anos era mais do que tinham o presidente e o primeiro-ministro, o par que o país escolhera, talvez num desfile de manequins. <br /><br />O que era feito dos anciãos, por Deus? <br /><br />Talvez já não houvesse muitos velhos para além de eles os dois. Aqueles que se lembrava de ter visto contavam-se pelos dedos das mãos. Na verdade não reparava muito no que havia à sua volta. Quando saía só lhe interessava ir sentar-se num banco a ver a foz e a acariciar a mão do marido, que o <i>alzheimer </i>felizmente cingira à faixa certa do álbum, mesmo que ela não apreciasse particularmente o arranjo meio pateta que o McCartney providenciara para a musiquinha. <br /><br />Ao chegar ao fim da avenida, o tempo começou a mudar e ela arrependeu-se de não ter trazido os abrigos que tinha sempre pendurados no vestíbulo. Mas não se arrependeu de ter saído. Talvez chovesse (havia relâmpagos a cruzar o céu), mas o que era mais romântico do que um passeio à chuva? Com as vacinas haveriam de sobreviver à gripe e a maré viva era um espectáculo que ambos apreciavam. <br /><br />Sim, estava verdadeiramente excitada com a decisão de ter saído apesar de tudo e todos pretenderem o contrário. Ainda havia alguém no país que fazia o que lhe apetecia e não o que era determinado. E Deus, no caso de existir tal singularidade lá em cima, bem poderia convocar as tempestades que quisesse. Se ela achava que lhe calhava bem um passeio até à foz, vinha até à foz. Feliz por ter o marido de sempre a cantarolar-lhe na sua vozinha querida a melhor declaração de amor. <br /><br />Depois de se terem sentado a ver a espuma das ondas, a primeira claque passou nas costas deles, bastante desmotivada, quebrando apenas uma ou outra vitrina e incendiando escassos contentores de lixo. Meia hora mais tarde, escoltada pela polícia, veio a insolente claque adversária, com disciplina militar e sarcasmo rufião, entoando o seu conhecido cântico de guerra. <br /><br />O marido voltou-se para trás, com um sorriso e um dedo hesitante de maestro no ar. Demorou algum tempo a apanhar a melodia, mas depois atacou-a a plenos pulmões — e ela, olhando-o desolada, soube pela primeira vez em cinquenta anos o que era a traição.<div><i><br /></i></div><div><div style="text-align: right;"><i>RAA 2012</i></div><div style="text-align: right;">[Publicado no número 10 da revista <i><a href="https://sistemadelirante.wixsite.com/fluir" target="_blank">Fluir</a>, </i>em Janeiro de 2023]</div></div>Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10467173.post-71755300143503721012023-05-22T00:46:00.000+01:002023-05-22T00:46:57.031+01:00«Envelhecer»<blockquote><div style="text-align: right;"><i><span style="font-size: x-small;">The Times They Are a-Changin'</span></i></div><div style="text-align: right;"><span style="font-size: x-small;">Bob Dylan</span></div></blockquote><br />— As pessoas? As pessoas não recusam meter uma cunha quando vêem nela a oportunidade de compensarem as suas fracas aptidões e ultrapassarem os outros. As pessoas exigem prioridade e serviços públicos de excelência, mas só não fogem aos impostos se não puderem. As pessoas pagam e recebem luvas com a naturalidade de quem regateia roupas de contrafacção numa feira. As pessoas inscrevem-se em concursos de talentos e não se importam de os vencer apenas com os votos de familiares e amigos, pedindo-lhes até que telefonem para o número indicado ou cliquem na opção certa as vezes que forem necessárias, viciando os resultados… Que ética ou honestidade têm as pessoas? Que amor-próprio? Que carácter? Como poderiam as pessoas escolher dirigentes (em quem de resto votam tribalmente) que se distinguissem pela exigência, o rigor, a honra, os escrúpulos ou a dignidade? <br /><br />De três em três semanas, fingindo não se sentir obrigada a nenhuma cadência, Lurdes ia buscar o pai ao lar e os dois almoçavam juntos num dos restaurantes da pequena cidade onde antes moravam em família. Aqueles almoços eram apenas mais um absurdo a somar a todos os outros que partilhavam. O pai mal falava, perdido no labirinto das memórias e estudando formas eficazes de abordar a comida no prato com talheres trémulos. Em geral ela também não falava, não mais do que o essencial para que a farsa funcionasse. Ajudava-o a escolher os pratos, repetindo em voz alta a lista que o empregado, dos que ainda tinham sido treinados para tratar cada mesa como um universo fechado, debitava num tom imperceptível para a dureza de ouvido do pai. Não se importava que os outros comensais a ouvissem falar demasiado alto, conhecia as prerrogativas de quem lidava com velhos e gostava de agir com este tipo de pragmatismo, que a fazia parecer decidida. Cortava-lhe a carne se notava que ele ia fracassar e fingir que não tinha fome e acrescentava-lhe legumes no prato e água no copo, não por afecto ou gentileza mas para que a refeição cumprisse pelo menos o propósito de o alimentar. Agia como cuidadora, não como filha. Só quando se deixava irritar por um comentário dele é que agia como filha, como a filha contestatária que fora na adolescência. Mas agora as suas réplicas eram frequentemente um eco das antigas declarações rudes do pai, e dar-se conta disso era um segundo motivo de irritação. <br /><br />Naquele almoço, o pai, espreitando de viés as notícias no ecrã que ocupava grande parte da parede do outro lado da sala, balbuciara um qualquer lugar-comum sobre as pessoas não merecerem os dirigentes corruptos e oportunistas que tinham e ela pusera-se a falar de virtudes antiquadas, como o teria feito patriarcalmente o velho trinta anos antes, quando para ela eram os vícios e não as virtudes o que interessava. No rodapé passava o apelo ao televoto em mais um dos muitos concursos da actualidade. <br /><br />— As pessoas não suportam quem se destaque delas por qualidades próprias. Temem tanto que o brilho de outros revele o desbotado delas como que o seu mundo se modifique devido a ideias sofisticadas. Votam apenas em quem demonstre ser banal e oportunista como elas mesmas… <br /><br />Pareceu-lhe que a seguir ia culpar a democracia e por isso deteve-se. Já chegava de emulação do velho reaccionário que fora o seu pai quando tinha cinquenta anos e ela vinte. A sua própria voz, que por fisiologia era de tom grave, soava-lhe à do pai. Isso tinha-lhe sido útil na criação de uma identidade, quando precisou de o fazer, no final da adolescência. Não era uma mulher fraca fisicamente, mas era mulher, em todo o caso, e essa condição ter-lhe-ia pesado ainda mais se falasse com voz feminina e se se ouvisse esganiçada ou histérica quando tivesse de pôr os rapazes e os homens no seu lugar. Contra as expectativas, achou uma bênção aquela voz grossa, um pouco inesperada, que lhe viria a moldar — achava ela, quando se dava a esse tipo de introspecção autobiográfica — o tipo de sarcasmo em que se especializara. <br /><br />Havia outras raparigas capazes de deter os avanços inoportunos e indesejados do sexo oposto, mas essas eram geralmente marias-rapaz, com músculos e instintos masculinos, briguentas e grosseiras, de cigarro no canto da boca e mangas arregaçadas à operário. O tipo de raparigas que os rapazes procuravam menos pelas formas do que pela suspeita, não raro acertada, de que toda aquela assertividade era espelho de uma emancipação precoce e se traduzia por isso num maior relaxamento moral e em permissividade. <br /><br />Ela tomou cedo um rumo inverso no que se referia ao aspecto e às maneiras, exacerbando a sua feminilidade com poses e figurinos inspirados em filmes e revistas de alta-roda; ainda estereótipos, reconhecia, mas de um tipo que as mulheres comuns não se atreviam a experimentar. O quotidiano de uma mulher jovem com fracas posses numa cidade pequena não era, contudo, equivalente a uma <i>passerelle</i> em Cannes — com ombros nus, decotes atrevidos e caudas de cores fortes a varrer o tapete vermelho —, pelo que teve de personalizar um pouco a sua sofisticação, inspirando-se, de Inverno, nos russos que por aquela altura andava a ler e, de Verão, numa ideia de Lolita recatada — uma contradição nos termos, como ela sabia. <br /><br />Armada de originalidade e literatura, Lurdes encarnou assim perante os olhares dos seus conterrâneos personagens estranhas ao meio e à época, numa atitude de sobranceria <i>punk </i>que era também um contraponto à sua natural timidez. Aqueles que, estupefactos, a viram regressar para o Natal do seu primeiro ano na universidade viram em simultâneo, na mesma pessoa, a primeira condessa russa a desembarcar pelo seu pé no cais da rodoviária, a primeira condessa russa <i>tout court</i>: de carne, osso e pêlo — pêlo no gorro, na gola ampla e nos debruados das luvas e do longo sobretudo vermelho que comprara numa feira de roupa <i>vintage</i>. Os mesmos tê-la-ão visto depois chegar para umas férias de Verão em que usava vestidos estampados, leves e coloridos, mas não curtos, em vez dos jeans que então constituíam o uniforme da juventude, e punha na cabeça lenços à anos 50, em diálogo com óculos da mesma época, ou chapéus em <i>crochet</i> de algodão ou em palha entrelaçada com abas de grande diâmetro. Nos lábios usava sempre um batom vermelho vivo, como um manifesto. <br /><br />Um visual assim atraía as atenções, exactamente aquilo que um tímido dispensa, mas nela debatiam-se duas forças de igual valor: a noção da sua singularidade, que a fazia desejar uma vida à parte, e a necessidade de afirmar essa mesma singularidade. As roupas eram a um tempo bandeira e escudo, davam nas vistas e desencorajavam aproximações. Mas os excêntricos não evitam ser importunados se não tiverem outras armas de defesa e Lurdes tinha a sua voz, que aprendeu a usar de forma persuasiva, com vocabulário sofisticado e uma expressividade frontal acompanhada de um olhar directo — um conjunto de atributos e mecanismos capaz de surpreender e confundir os interlocutores. Quando falava, parecia uma pessoa mais velha e distante nas suas origens e vivências, fora do alcance da gente comum, dos homens dados ao piropo impertinente ou boçal. Tinha — ou construíra, talvez — algo de uma antiga majestade, que exigia tributo ou estimulava instintos também antigos de um temor serviçal. Não era que as roupas lhe escondessem as formas ou tirassem sensualidade, mas não havia muitos homens à vontade com aquele tipo de mulher: uma mulher estranha e, suspeitavam, duma exigência para a maioria inatingível. Pelo seu lado, os tarados e os violadores comuns preferiam geralmente vítimas com idiossincrasias mais convencionais. <br /><br />Nos primeiros anos da juventude, as suas escolhas tornaram-na uma pessoa solitária, sem namorados. Na universidade fizera amigos (como sabem todos os seres originais, a fauna é mais diversificada nas cidades grandes e aumentam ali as possibilidades de almas aparentadas se encontrarem), mas na sua própria cidade não se interessava por ninguém e as pessoas em geral pagavam-lhe com o mesmo desinteresse. Na verdade, era um sentimento diferente do desinteresse: as pessoas tinham-lhe ressentimento, o desejo de vingança ou castigo que guardavam para os que desdenhavam a tribo, os auto-suficientes, os que lhes eram superiores. <br /><br />Quando foi trabalhar e entrou nos quadros de uma empresa internacional de traduções, os colegas irritavam-se com a sua iniciativa e a sua competência e tentavam, com maior ou menor dissimulação, com maior ou menor sucesso, dificultar-lhe o trabalho, denegri-la. Invejavam-na, ainda que não lhe invejassem a dedicação e o esforço e não tencionassem aplicar a mesma energia e gastar o mesmo tempo a melhorar as traduções e a compreender melhor as necessidades dos clientes. Alguns odiavam-na, porque o desempenho dela, que não transparecia dificuldade ou aborrecimento, realçava a incompetência ou o desleixo deles. No dia em que, vencida, deixou voluntariamente o mundo da tradução, deixou também uma multidão de ex-colegas aliviada e um bom punhado de clientes reconhecidos e amigos para a vida. Não desejou melhor tributo. <br /><br /> *<br /><br />Lurdes levava livros ao pai e costumava dizer, com mordacidade, que ele era actualmente a única pessoa que lia, no conjunto dos seus amigos e conhecidos. De repente, toda a gente começara a agir como se os livros fossem dispensáveis, excepto uns raros velhos que tinham tempo de sobra no dia-a-dia e precisavam de o preencher. Triste epitáfio para a grande criação da humanidade: os livros, outrora considerados instrumentos essenciais para a formação de um carácter e ilustração da sociedade, acabarem como passatempo de pessoas que já nem sequer podiam fazer projectos a partir deles. Os livros como coisa de anciãos, objectos nostálgicos e inúteis, ferramentas já sem uso prático fora das mãos de reformados saudosistas de profissões extintas, adereços de casas musealizadas em vida dos donos. A opção das pessoas neste tempo patético resumia-se, para ela, a ter um cérebro e tentar por todas as formas não o usar, não para mais do que publicar e ver “histórias” fúteis e patéticas no <i>Instagram</i>. <br /><br />Ela e o pai nunca tinham sido próximos e levar-lhe livros podia ser, de certa maneira, uma forma de aumentar a distância. O velho voltara a ler quando deu por si naquele lar, mas não o tipo de livros que ela lhe passou a fornecer depois de ganhar coragem para a primeira visita, seis meses após o internamento. Ele gostava de livros de História da Segunda Guerra Mundial, biografias, romances rurais com morgados e fidalgos, um ou outro policial, e, ao pretender fazê-lo seguir um plano de leituras diferente, ela não evitara a condescendência. Não o fizera com uma intenção consciente, mas como uma vaga mostra de respeito pela dignidade do pai e com inevitável vício didáctico. Deixava de fora obras de entretenimento e levava-lhe livros respeitáveis do ponto de vista intelectual e alguns ensaios e romances que argumentavam contra as ideias dele. Os livros, deu-se conta mais tarde, eram o território onde ela se imaginara a travar uma guerra por procuração com o velho. Ele tinha-se manifestado feliz com a reeleição de Trump nos Estados Unidos e o «Sim» no segundo referendo sobre o Brexit, e Lurdes, já que tinha agora de conviver regularmente com o pai por ter um sentido do dever castrense (irónica herança genética), achou que podia experimentar mudar-lhe algumas ideias. Que maior demonstração de respeito e interesse poderia ele esperar dela? <br /><br />No dia em que pela primeira vez entrou no quarto que o pai partilhava com um cavalheiro mais senil viu os seus livros primorosamente empilhados sobre a mesa-de-cabeceira e, no lado mais próximo da cama, uma revista de desafios de sudoku com o lápis pousado sobre um quadro incompleto. Queria aquilo dizer que os livros dela não lhe interessavam e o velho preferia jogos com números? Ou, pelo contrário, ele mantinha aquela pilha tão ordenada e livre de outras obras como se se tratasse de um monumento de consideração à filha? <br /><br />Aberto sobre a cama, um tablóide congratulava-se em caixa alta com a reeleição de Boris Johnson no Reino Unido.<div><br /></div><div style="text-align: right;"><i>[Publicado na <b>Grotta</b> n.º 4 (2020)]</i></div>Rui Ângelo Araújohttp://www.blogger.com/profile/16988616902261557554noreply@blogger.com0