segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

A História

Pelo que leio aqui e ali, alguns dos cínicos que andaram jovialmente a servir-se de Trump para verter o seu ressentimento contra a “esquerda”, as “elites”, os “artistas”, os “intelectuais” et tutti quanti começam discretamente a distanciar-se do ogre, como se nunca se tivessem embevecido com ele, nunca tivessem sido íntimos. O que vou dizer talvez seja um pouco dramático, mas desconfio que a História não se vai esquecer deles.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Salvar o mundo pela tesoura

Há muitos anos, quando eu acreditava que o mundo se salvava pela ironia ou o humor e tentava dar o meu contributo com diatribes a esmo, entusiasmando-me demasiado com elas, um bom amigo lembrou-me que procurar vencer ou ridicularizar alguém apontando aos seus atributos físicos era uma confissão involuntária de falta de argumentos, uma exibição de raciocínio e lógica medíocres e, ao fim e ao cabo, uma forma de cobardia. Ser manco, anão, corcunda, míope, careca ou conjunturalmente feio não eram opções das pessoas, não tinha sido obra sua, não as podíamos responsabilizar por isso e, o que mais importa, não era isso que fazia delas escroques.
Como se compreende, não é honesto e muito menos um sinal de superioridade chamar alguém de caixa-de-óculos, por exemplo. Mas pode-se criticar o gosto da pessoa na escolha dos óculos. Tal como não é justo rir de uma calva mas legítimo desaprovar o modelo do capachinho.
Ou seja, não podemos responsabilizar Donald Trump pelo seu fácies infeliz — mas não seremos racistas por reparar na cor da sua pele: tirando a possibilidade remota de ele sofrer de doença aparentada à de Michael Jackson (mesmos sintomas, diferente paleta), aquele tom é opção do utente. Já no que se refere ao formato do cabelo é não só legítimo mas imperativo relacionar o corte abstruso e pertinaz com as ideias cretinas que lhe povoam a cabecita.

A esperança da humanidade reside, portanto, na autoridade clínica do oftalmologista de Melania. Ou na Bíblia, designadamente no Livro dos Juízes, 13-16. Serão os eslovenos capazes de despertar fervor patriótico em Melanija Knavs e, sobretudo, terão 1100 moedas para a convencer a usar a tesoura como Dalila em Sansão?
Depois é só ter o cuidado de o afastar dos pilares que sustentam o templo. Que ele aliás já começou a derrubar, mesmo com a estúpida guedelha intacta.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

A voz grossa do cinismo político

À esquerda e à direita anda vária gente atarefada a explicar-nos como somos hipócritas ou susceptíveis ao julgar tão duramente Trump. Apresenta uma de duas razões (às vezes as duas):
— Obama, o falinhas-mansas, seguia na prática os mesmos princípios de uns EUA imperialistas; porque só nos indignamos agora com Trump?
— Trump pode não ter muito tacto, mas que importa isso se ele reformar o sistema americano, tão corrompido pelas elites e pelo politicamente correcto?
Imaginemos por instantes que a sagacidade destes branqueadores trumpianos não está profundamente arruinada. Sim, aceitemos por momentos que a política externa de Trump se limitará às convencionais linhas da "tradição imperialista americana" ou que ele e a equipa de anjos que nomeou algum dia se interessarão por mudar o sistema em favor dos cidadãos.

Não será o carácter odioso de Trump suficiente para a ele nos opormos com singular veemência? Um carácter que, ao contrário do que esperavam os que acreditavam na sua normalização, ele diariamente enfatiza com palavras, atitudes e, agora, despachos presidenciais, além dos patéticos tweets?

Que haja à direita e à esquerda gente tão propensa a aceitar, implícita ou explicitamente, um presidente assim lembra não apenas como obstinações ideológicas opostas podem convergir na mesma idiotia cúmplice, mas também que a falta de empatia com mulheres, minorias ou o outro, disfarçada com a voz grossa do cinismo político, não é um exclusivo de façanhudos americanos. Neste triste domínio, o farwest é também aqui ao lado.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Dinis

Depois de ter afirmado em editorial que «o jornalismo não vive uma crise» e de ter sido criticado por isso, o actual director do Público comentou uma notícia sobre o sucesso do novo livro de José Rodrigues dos Santos (90 mil exemplares) ironizando: «será caso para dizer que a literatura está em crise»*.
Está tudo dito sobre o novo Público.


* Alguém comentou a ironia de Dinis dizendo que «a Renova também continua a vender bem». Salva-nos o humor.