domingo, 31 de outubro de 2021

«Por onde andará a jovem literatura portuguesa?»

Rentes de Carvalho perguntava há dias no seu blogue (sim, ainda o espreito de tempos a tempos, como certos católicos vão à igreja, já não porque acreditem em milagres ou apreciem o consolo da tradição, mas porque ainda sentem o dever da penitência), Rentes de Carvalho, dizia, perguntava há dias no seu blogue «por onde andará a jovem literatura portuguesa? Porque não há por aí explosões de talento literário?». A pergunta é retórica, claro, doutrinária, idiossincrática, e por isso se apressa a responder a si mesma. Se fosse genuína, poderia responder-se-lhe, por exemplo, com um livro de Frederico Pedreira e outro de Manuel Bivar. Com A Lição do Sonâmbulo poderia tentar referir-se o maravilhamento da toada, sugerir como o ritmo, o timbre, a estrutura, a harmonia, a forma da linguagem ao serviço da evocação da memória podem ainda, cem anos depois de Proust (milhares depois de Homero), e com materiais comuns, combinar-se e produzir novas melodias que nos fascinam como a sonata de Vinteuil fascinava Swann. Com A Charca, por outro lado, poderíamos falar verdadeiramente de explosões, não apenas de talento literário mas também de percepção, da inquietante lucidez de um olhar a partir do mundo rural (mas profundamente contemporâneo e urbano) que, aliás, até se encontra em vários pontos com a visão desassombrada e desromantizada de Trás-os-Montes do próprio Rentes de Carvalho, mas que questiona mais agudamente o mundo do que as pregações de cartilha do Tempo Contado.



sábado, 30 de outubro de 2021

«O tempo da tirania dos programadores»

A meio de uma conversa com interesse para quem tem curiosidade pelo mundo das artes performativas em Portugal o coreógrafo Paulo Ribeiro, que aprecio, disse uma frase que o JN, não escapando ao zeitgeist, usou como título da entrevista: «Vivemos o tempo da tirania dos programadores». A dramatização excessiva do tópico, o impulso para criar um sound bite, é, portanto, do jornal. Imagino que a expressão não pretendesse lançar um anátema sobre todo um conjunto de pessoas com circunstâncias, trabalho e sensibilidades diferentes, mas a frase feita título junta-se a outras afirmações igualmente negligentes que a espaços são proferidas na esfera pública, como aquela de igual teor que num célebre programa de televisão a meio do ano passado uniu figuras tão improváveis como Maria do Céu Guerra e Álvaro Covões, com a aparente aquiescência de Graça Fonseca. Merece por isso uma reflexão.

Lê-se na entrevista que os programadores, quiçá «insensíveis», são uns tiranos porque na sua maioria «não respondem», deixam que as ideias se vão «desmembrando na sucessão dos pequenos poderes» (de que vivem reféns, pode presumir-se) e «cometem o erro da voragem» da descoberta de novos talentos. É curioso que em geral os novos talentos, quando têm a sorte de ser entrevistados, se queixam da escassez de oportunidades — e é com estas e outras peças que um programador tenta quotidianamente montar um puzzle. Porque um programador, quando empenhado no seu ofício, tende a ser um laborioso montador de puzzles, de quebra-cabeças constituídos por peças abundantes e multiformes, irrequietas, nem sempre facilmente discerníveis e que não raro se atraem e repelem de moto próprio.

De acordo com um texto da Espaço Público, associação profissional de programadores, o programador cultural é um «mediador» que trabalha «no cruzamento das esferas cultural, social, estético-criativa, comunicacional, económica e política» e opera a dois níveis ou assume duas funções: «como canal entre o campo da produção artística e o da recepção cultural (os públicos) e como facilitador ou intérprete nas relações entre as comunidades artísticas e as entidades tutelares dos espaços ou projectos».

Na verdade, a minha opinião é que um programador é alguém sobretudo condenado à frustração. Não é um frustrado, como na literatura se diz sarcasticamente que um crítico é um escritor frustrado. Alguns programadores desenvolveram em algum momento eles próprios experiências criativas ou artísticas, mas a sua frustração não vem projectada de um putativo fracasso dessas experiências. A frustração vem da inerente, inexorável, inevitável incapacidade de se dar por satisfeito e de satisfazer plenamente os outros com o seu trabalho. Não é apenas a impossibilidade notória de fazer a quadratura do círculo quanto a acolher os interesses dos diferentes artistas e públicos, é sobretudo a frustração, mais dolorosa, de não ter recursos, calendário e por vezes público suficientes para produzir um ciclo de programação capaz de reunir todas as ideias e propostas que a dado momento transbordam da sua carteira de projectos a considerar.

É que, independentemente do que pensa o país mediático e o público absentista, e do que pensam os criadores uns dos outros, Portugal (que também tem muitas estruturas de criação supérfluas ou medíocres e quem exija veementemente um lugar para elas), Portugal tem nas mais diversas áreas artísticas uma boa quantidade de criadores de talento e com projectos merecedores de palco — mas não há um único espaço de programação que seja capaz de apresentar todas as propostas merecedoras dele. Quando alguém se queixa de que os programadores «não respondem», esquece-se certamente desta realidade e do esforço desmesurado que é exigido a um programador para corresponder a todas as solicitações.

Programar é, é claro, seleccionar, mas é também, portanto, ter de lidar com a mágoa de deixar de fora. Programar é mais sobre incluir do que excluir — a exclusão não é algo a que um programador se dedique, muito menos por sadismo, travessura ou tédio. Um programador, quando entusiasmado com a função, não ocupa o seu insuficiente tempo a decidir quem fica de fora, mas (com uma alegria que não afasta a insatisfação e a tristeza pelo que se perde) a escolher (nas circunstâncias e com os meios que são os seus) quem entra. E o contentamento pelo que consegue incluir no programa é breve, porque logo regressa a melancolia de saber que o seu é um trabalho de Sísifo e que nem sequer consegue rolar o raio da pedra até meio da encosta.

Dada a aparente impossibilidade de os programadores deixarem de parecer «tiranos» aos olhos de quem não é programado — aos olhos de quem, no seu próprio momento de frustração, é por vezes incapaz de uma visão holística do panorama artístico —, o que fazer? Derrubar o «tirano»? É uma hipótese que perversamente me atrai, devo dizer. Mas parece pouco sensata. De uma forma ou outra, a polis há-de seleccionar, escolher. Não o fazer, é entregar ao acaso as decisões, ou, coisa ainda mais arriscada, é entregar as decisões a outras formas de tirania, porventura mais viciosas ou ainda mais exclusivas, menos preocupadas em garantir possibilidades de escolha ao público. A busca do graal da imparcialidade (que no fim da jornada resulta, na verdade, no acriticismo e na aleatoriedade) seria talvez obtida substituindo-se nos espaços culturais a figura do programador pela do recepcionista, um digno amanuense como os que, nos consultórios, atendem os telefones e respondem aos e-mails, preenchendo os buracos da agenda por ordem de chegada dos pedidos de marcação. Claro que desta forma, como sabe quem passa pela experiência de marcar consultas no SNS, cada artista, como cada cidadão, arriscar-se-ia igualmente a ter de esperar meses ou anos pela sua vez de ser atendido — e em geral sem a alternativa de um sector privado. E a quem atribuir nessa altura culpas pelo infortúnio? Ao amanuense? Ao sistema? À vida, talvez.

Abdicar tão-só da mediação, como descobrimos dolorosamente com a desvalorização do papel da imprensa no mundo actual, não é a fórmula mágica que cria mais espaço para a qualidade.


P.S.: Sei que outros experimentam sentimento idêntico, mas este não é um texto corporativo, apenas a expressão, de resto desnecessária e vã, de um homem e as suas circunstâncias.

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A entrevista do JN:
https://www.jn.pt/artes/paulo-ribeiro-vivemos-o-tempo-da-tirania-dos-programadores-14220416.html?fbclid=IwAR2FCzVCPfwPqTpLcPeXJ0nIPstWXb56rG4vn3HMRKCYcJQnUR6Aoc_elkM

domingo, 24 de outubro de 2021

The (night) swimmer

Para evitar as penosas subidas no regresso, não fui correr à beira-rio. A opção de andar às voltas no jardim público como cão atrás da cauda também tinha de ser descartada, o sítio agora fecha cedo. Lembrei-me do nadador de John Cheever e pus-me a planear uma travessia da cidade, não pelas piscinas da vizinhança, mas por jardins, pracetas e ruas arborizadas. Quando nadei rente ao cemitério ouvi barulho e pensei em coisas do imaginário popular, almas penadas uivando, xácara das bruxas dançando. Mais adiante percebi que era mesmo música, da janela do coveiro saía o fraseado baloiçante e brejeiro de concertinas em neo-desgarrada, contributos televisivos para um imaginário popular de lantejoulas. 
Cambaleei de regresso para a minha decrépita, vazia e abandonada casa.

Sobre escutas

Quando vejo televisão de madrugada, uso frequentemente auscultadores — não quero que os vizinhos dêem pela minha existência e não confio nas paredes nem no chão. Por vezes uso-os mesmo que assista a uma eliminatória de snooker, esse desporto de hordas vociferantes.
Com o som canalizado directamente para as orelhas, é possível ouvir a plateia suspender a respiração em certas jogadas decisivas, instantes de apneia colectiva que duram o tempo da trajectória das bolas. Se estas falham o buraco, a respiração é retomada sob a forma de ohs expirados; se são embolsadas, a plateia usa as mãos como guelras e por alguns segundos respira no compasso minimal repetitivo e vibrante de um aplauso.
Esta forma de assistir aos jogos faz-nos também ouvir coisas inesperadas, sussurros de que não nos aperceberíamos vendo televisão como mortais comuns. Anteontem, decorria um jogo de quartos de final e os contendentes arrastavam-se em jogadas à defesa. Nos phones, entre intervenções do comentador, ouviam-se murmúrios e um deles soou distintamente: «Metam as bolas no cu, caralho. Vão-se embora». Assim mesmo, em português de lei. Reparei então que era um campeonato em Portugal, em Albufeira, e que, dependendo de qual o microfone que estava a captar os sussurros, ou os cameramen não recebiam pelas horas extra ou alguém na sala não era fã de snooker.

domingo, 10 de outubro de 2021

O tempo perdido com Brideshead

Parti para a leitura de Reviver o Passado em Brideshead munido de sólidos e auto-indulgentes preconceitos, como o mais banal dos estúpidos. Tinha de Evelyn Waugh e da sua literatura uma ideia vaga mas satisfeita, desengonçadamente construída de alusões respigadas em ocasionais artigos de jornal, recensões, resumos biográficos ou entrevistas a terceiros, e o único livro que tinha lido do autor (Corpos Vis) confirmara essa ideia, ou pelo menos contentara a sua fraca ambição, como quem julga saciar a fome por ter comido uma vez.

Mas na minha imagem de Brideshead reunia eu outros preconceitos: os referentes ao próprio livro, que imaginava — cumulativamente com ser um texto waughiano — uma Recherche com sotaque inglês.

Assim enchumaçado de ideias feitas, quando terminei de ler a obra, senti-me defraudado, defraudado em todos os meus preconceitos.

Se Reviver o Passado em Brideshead pretendia ser um Em Busca do Tempo Perdido com humor e fleuma, ou lhe faltavam volumes ou eu acabara de ler um resumo para totós, um sumário para leitores sem tempo (esses oximoros viventes), uma versão condensada numa edição da Selecções do Reader’s Digest

Por outro lado, era um resumo que interpretava de forma singular a sua missão selectiva, porque o que eu acabara de ler, além de ser uma coisa abreviada no geral, tinha pouca fleuma e carecia de humor em particular. Ou alguém «cancelara» no digest o estilo do autor ou Brideshead não era, afinal, um livro de Waugh.

Num primeiro retiro espiritual, reconhecendo a cada vergastada auto-infligida que vivia de ideias feitas, achei que a culpa era minha, que estava a reclamar como aquelas pessoas furibundas que não lêem os Termos & Condições e não sabem portanto que o produto de que se queixam é aquilo mesmo e não a ideia que tinham daquilo.
Depois saí do retiro, como quem sai de uma lagarada, a coçar os gémeos arroxeados, e praguejei, damn!, tem de haver mais alguma coisa. Lembrei-me então de um artigo sobre Evelyn Waugh que trazia aberto num separador do Chrome no telemóvel há meses, aguardando uma sala de espera onde o ler. Não esperei por uma sala e li-o ali mesmo de pé no subpalco onde fortuitamente estava (não escolhemos o local onde o destino nos apanha, venha ele sob a forma de farsa ou tragédia, mas no caso até parece).
O artigo era de Rogério Casanova e, sabendo-se que Casanova leu quase tudo o que a humanidade escreveu, a probabilidade de ele ter lido a obra toda de Evelyn e o que sobre ela se disse era grande. Haveria decerto no artigo uma pista sobre aquilo que me angustiava.

Encontrei várias:
«Muita da arte de Waugh é uma arte de lacunas (…)»
«Foi só quando estas lacunas começaram a ser preenchidas [leia-se, com Brideshead Revisited] que surgiram problemas.»
«Onde antes a calamidade era desfeita com frívolos eufemismos, é a frivolidade que agora desperta cadências épicas.»
«Alguém escreveu um dia que Pierre, de Herman Melville, era o pior romance jamais escrito por um autor de génio. Reviver o Passado em Brideshead será, pelo menos, um fortíssimo candidato a disputar a posição.»

O problema de Brideshead não é, claro, ficar aquém da torrente e minúcia proustianas; é, pelo contrário, ir além da forma lacunar de Waugh, perdendo no processo o que tornava a sua prosa especial, aquela «arte da crueldade» que está no título do artigo de Rogério Casanova.

Não tiro conforto de ver as minhas impressões legitimadas pela erudição de Casanova: preferia ter lido o artigo em tempo útil: ou seja, antes de ter pegado na obra mais injustamente famosa de Evelyn Waugh. E só não fico para aqui a lamentar o tempo perdido com o livro errado porque afinal ele fez-me ir ler finalmente o artigo de Casanova, e esse vale sem remorsos a pena.

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