sábado, 30 de outubro de 2021

«O tempo da tirania dos programadores»

A meio de uma conversa com interesse para quem tem curiosidade pelo mundo das artes performativas em Portugal o coreógrafo Paulo Ribeiro, que aprecio, disse uma frase que o JN, não escapando ao zeitgeist, usou como título da entrevista: «Vivemos o tempo da tirania dos programadores». A dramatização excessiva do tópico, o impulso para criar um sound bite, é, portanto, do jornal. Imagino que a expressão não pretendesse lançar um anátema sobre todo um conjunto de pessoas com circunstâncias, trabalho e sensibilidades diferentes, mas a frase feita título junta-se a outras afirmações igualmente negligentes que a espaços são proferidas na esfera pública, como aquela de igual teor que num célebre programa de televisão a meio do ano passado uniu figuras tão improváveis como Maria do Céu Guerra e Álvaro Covões, com a aparente aquiescência de Graça Fonseca. Merece por isso uma reflexão.

Lê-se na entrevista que os programadores, quiçá «insensíveis», são uns tiranos porque na sua maioria «não respondem», deixam que as ideias se vão «desmembrando na sucessão dos pequenos poderes» (de que vivem reféns, pode presumir-se) e «cometem o erro da voragem» da descoberta de novos talentos. É curioso que em geral os novos talentos, quando têm a sorte de ser entrevistados, se queixam da escassez de oportunidades — e é com estas e outras peças que um programador tenta quotidianamente montar um puzzle. Porque um programador, quando empenhado no seu ofício, tende a ser um laborioso montador de puzzles, de quebra-cabeças constituídos por peças abundantes e multiformes, irrequietas, nem sempre facilmente discerníveis e que não raro se atraem e repelem de moto próprio.

De acordo com um texto da Espaço Público, associação profissional de programadores, o programador cultural é um «mediador» que trabalha «no cruzamento das esferas cultural, social, estético-criativa, comunicacional, económica e política» e opera a dois níveis ou assume duas funções: «como canal entre o campo da produção artística e o da recepção cultural (os públicos) e como facilitador ou intérprete nas relações entre as comunidades artísticas e as entidades tutelares dos espaços ou projectos».

Na verdade, a minha opinião é que um programador é alguém sobretudo condenado à frustração. Não é um frustrado, como na literatura se diz sarcasticamente que um crítico é um escritor frustrado. Alguns programadores desenvolveram em algum momento eles próprios experiências criativas ou artísticas, mas a sua frustração não vem projectada de um putativo fracasso dessas experiências. A frustração vem da inerente, inexorável, inevitável incapacidade de se dar por satisfeito e de satisfazer plenamente os outros com o seu trabalho. Não é apenas a impossibilidade notória de fazer a quadratura do círculo quanto a acolher os interesses dos diferentes artistas e públicos, é sobretudo a frustração, mais dolorosa, de não ter recursos, calendário e por vezes público suficientes para produzir um ciclo de programação capaz de reunir todas as ideias e propostas que a dado momento transbordam da sua carteira de projectos a considerar.

É que, independentemente do que pensa o país mediático e o público absentista, e do que pensam os criadores uns dos outros, Portugal (que também tem muitas estruturas de criação supérfluas ou medíocres e quem exija veementemente um lugar para elas), Portugal tem nas mais diversas áreas artísticas uma boa quantidade de criadores de talento e com projectos merecedores de palco — mas não há um único espaço de programação que seja capaz de apresentar todas as propostas merecedoras dele. Quando alguém se queixa de que os programadores «não respondem», esquece-se certamente desta realidade e do esforço desmesurado que é exigido a um programador para corresponder a todas as solicitações.

Programar é, é claro, seleccionar, mas é também, portanto, ter de lidar com a mágoa de deixar de fora. Programar é mais sobre incluir do que excluir — a exclusão não é algo a que um programador se dedique, muito menos por sadismo, travessura ou tédio. Um programador, quando entusiasmado com a função, não ocupa o seu insuficiente tempo a decidir quem fica de fora, mas (com uma alegria que não afasta a insatisfação e a tristeza pelo que se perde) a escolher (nas circunstâncias e com os meios que são os seus) quem entra. E o contentamento pelo que consegue incluir no programa é breve, porque logo regressa a melancolia de saber que o seu é um trabalho de Sísifo e que nem sequer consegue rolar o raio da pedra até meio da encosta.

Dada a aparente impossibilidade de os programadores deixarem de parecer «tiranos» aos olhos de quem não é programado — aos olhos de quem, no seu próprio momento de frustração, é por vezes incapaz de uma visão holística do panorama artístico —, o que fazer? Derrubar o «tirano»? É uma hipótese que perversamente me atrai, devo dizer. Mas parece pouco sensata. De uma forma ou outra, a polis há-de seleccionar, escolher. Não o fazer, é entregar ao acaso as decisões, ou, coisa ainda mais arriscada, é entregar as decisões a outras formas de tirania, porventura mais viciosas ou ainda mais exclusivas, menos preocupadas em garantir possibilidades de escolha ao público. A busca do graal da imparcialidade (que no fim da jornada resulta, na verdade, no acriticismo e na aleatoriedade) seria talvez obtida substituindo-se nos espaços culturais a figura do programador pela do recepcionista, um digno amanuense como os que, nos consultórios, atendem os telefones e respondem aos e-mails, preenchendo os buracos da agenda por ordem de chegada dos pedidos de marcação. Claro que desta forma, como sabe quem passa pela experiência de marcar consultas no SNS, cada artista, como cada cidadão, arriscar-se-ia igualmente a ter de esperar meses ou anos pela sua vez de ser atendido — e em geral sem a alternativa de um sector privado. E a quem atribuir nessa altura culpas pelo infortúnio? Ao amanuense? Ao sistema? À vida, talvez.

Abdicar tão-só da mediação, como descobrimos dolorosamente com a desvalorização do papel da imprensa no mundo actual, não é a fórmula mágica que cria mais espaço para a qualidade.


P.S.: Sei que outros experimentam sentimento idêntico, mas este não é um texto corporativo, apenas a expressão, de resto desnecessária e vã, de um homem e as suas circunstâncias.

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A entrevista do JN:
https://www.jn.pt/artes/paulo-ribeiro-vivemos-o-tempo-da-tirania-dos-programadores-14220416.html?fbclid=IwAR2FCzVCPfwPqTpLcPeXJ0nIPstWXb56rG4vn3HMRKCYcJQnUR6Aoc_elkM

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