Numa tarde de um Junho qualquer, houve uma raposa que passou a três
metros de mim com vagares de estômago cheio e confiança no futuro. Não se
desviou, não se deteve, não eriçou o pêlo ou as orelhas. Limitou-se a seguir em
frente, pachorrenta, talvez a caminho de uma merecida sesta. Eu estava um pouco
acima do trilho dela, sentado numa rocha, a ler um livro qualquer. O vento era-me
favorável, talvez. A brisa não lhe levou ao focinho o meu cheiro e eu não me
mexi, excepto pela lenta e cuidadosa, robótica, rotação do pescoço. Mas era
difícil não me ver. Saiu do mato e atravessou mais de uma dezena de metros em campo
aberto na minha direcção até me ultrapassar pela ilharga. Só teria de levantar
um pouco os olhos.
Noutra ocasião (creio que já escrevi isto) foi um lagarto — daqueles
grandes, em tons de verde-claro, um pouco mais asquerosos e belos (sabem como
é) do que as vulgares lagartixas — que veio postar-se em cima da minha bota.
Desta vez estava à beira-rio, numa praia fluvial, sentado nuns degraus de
granito que desciam para uma rocha dentro de água, e o livro era certamente
outro. O bicho fez-se anunciar com um restolho nas ervas e isso colocou-me,
como sói, em modo de stand by. A
seguir pôs a cabecita de fora e, alternando os passos com momentos de espera
estática e vigilante, a testar-me com incontida curiosidade, pôs as patas da
frente em cima da bota. Agradeci não estar de sandálias ou de chinelos. Ou
descalço… brrrr. Quando achei que era curiosidade excessiva ele espreitar-me o
interior da perna das calças, estremeci um pouco, a manifestar discordância.
Fugiu, mas dali a uns minutos voltou, e repetimos a brincadeira, os pés dele (ou
as mãos) em cima dos meus.
Tenho destes vícios, gosto de ler nos habitats dos outros e espreitar-lhes a vida. Não tenho um talento particular
e fabuloso para “congelar”, fingir que sou uma rocha ou um arbusto. Sou só paciente e curioso e consigo estar quieto pelo tempo necessário. Talvez também
tenha um ar afável, não é impossível. Ou inofensivo, pensando melhor.
No domingo passado era um casal. Eu lia, o casal estava na sua vidinha,
sem notar o intruso. (Quer dizer, eu tinha chegado antes.) A certa altura ela
veio na minha direcção, mas sem a curiosidade do lagarto. Apenas não me tinha
visto, como a raposa. Vestia, aliás, um igualmente admirável casaco de peles e
tinha o mesmo ar matreiro por debaixo dele. Nas minhas imediações havia moitas e
eles tinham estado a lanchar fast food,
precisavam de se livrar de embalagens, guardanapos, restos. Ela viu-me quando
lhe era impossível deter o gesto. Olhamo-nos nos olhos enquanto o lixo deles
descrevia um arco e ia aterrar na ribanceira abaixo de nós. Não havia censura
no meu olhar, só reconhecimento da espécie, aquele ar afectivo e talvez um pouco paternalista de biólogo observando in
situ os seus espécimes, a vida selvagem. Ela deve tê-lo percebido, porque se
endireitou, empinou o nariz, alisou as roupas, como que assegurando-se que trazia
posto o disfarce de civilização que lhe escondia a natureza, e foi-se embora a comentar
com os seus botões dourados: «Intelectuais do caralho.» Creio que não se referia ao livro
que eu tinha nas mãos.