Um destes dias o inimigo chega às portas do burgo — já se ouve o
ribombar da artilharia, ao longe, quando o vento está favorável; de noite
vêem-se os clarões —, e nesse dia tenciono estar calmamente a jantar no Solar
Bragançano. Não conheço muitos sítios onde seja tão agradável esperar o momento
da rendição, com uma playlist que
inclui Brahms e Mozart, bebendo vinho por um copo onde cabe uma garrafa de
0,75l e nos sugere que afogarmo-nos ali pode ser uma alternativa.
Quer dizer, um tipo deve morrer como viveu, não é?, acima das suas
posses.
Há outros sítios elegantes e luxuosos, mas nenhum nos faz sentir em
casa como aquele, e a ideia é pensarmos em nós como o senhor no seu castelo. O
Solar Bragançano podia ser a casa que herdámos de uma bisavó nascida no dia em
que o Eça publicou Os Maias. A casa para
onde depois nos mudámos e vivemos uma vida improdutiva e devassa, estourando a
parte pecuniária da herança e contraindo dívidas impagáveis. Alguns de nós não têm outra
maneira de se sentirem estroinas e decadentes senão fingindo habitar ancestrais
solares em vez de apartamentos alugados e escassamente mobilados na Moviflor, com o
mapa-mundo pendurado no lugar do Rembrandt.
Quando o inimigo estiver às portas mudo-me para lá, portanto,
encomendando uma das várias iguarias não assim tão caras, mas demasiado caras
para mim, aceitando ser servido pelos proprietários — um casal suave,
encanecido e discreto — como se fossem os meus mordomos com salários em atraso, espraiando os olhos pela
decoração genuinamente antiga e fingindo pensar como vai ser duro perder tudo
aquilo, mastigando por uma vez sem pressas mas não porque o gastroenterologista
o aconselhou, variando de vinho com cada prato, experimentando uma
segunda sobremesa, bebericando a aguardente mais velha da casa, aspirando o
odor secular das madeiras abauladas com o último oxigénio...
***
Há tempos fiz parte disto como treino. Jantei no Solar Bragançano
gastando o que tinha sobrado do salário do mês. No dia seguinte jantei conservas com cebola — mas não me arrependi, que diabo!
O Solar Bragançano é um sítio de onde se vem sempre agradado. É caloroso, bem cheiroso, aconchegante. A comida é caseira, cuidadosamente caseira, o molho da carne é daqueles em que apetece molhar o pão. A mobília é antiga mas não pesada. As pessoas são discretas, afáveis e não insistentes.
ResponderEliminarQuando penso em restaurantes a que me apetece voltar, penso sempre no Solar Bragançano.
(Um outro seria, por exemplo, o Monte do Faro em Valença)
Gostei de ler este seu texto.
Bom dia!
É pá! Lindo! Já li alguns excelentes encómios sobre o lugar (que ainda não visitei), mas este é... poético!
ResponderEliminar:)