in Os Idiotas
quarta-feira, 31 de julho de 2013
Os amigos de Lúcio (4): Avelino
«O Avelino sacrificou a mulher. Era o seu primeiro casamento e o segundo dela. Quando se conheceram, ela apaixonou-se logo pela sua capacidade de pacientemente a ouvir listar os defeitos do primeiro marido. No jantar inaugural, que o Avelino planeou escrupulosamente, ficaram algumas horas no restaurante a analisar as causas da bancarrota do seu antecessor, um tema central para ela. O momento em que ela se deixou acariciar na face coincidiu com uma observação particularmente sagaz dele a propósito de um investimento mal calculado do ex dela. O Avelino era bancário e lia os suplementos de economia dos jornais, mas sobretudo estava decidido a tomar o partido da sua futura mulher.»
in Os Idiotas
in Os Idiotas
Os amigos de Lúcio (3): Óscar
«O Óscar é um rústico com os trajes de um dandy. Tem o rosto e os braços morenos de um trabalhador do campo — um daqueles antigos e feios criados de quinta, com genes e dentição imperfeitos, olhos escuros, desconfiados —, mas veste belos casacos e blusões, em tons por vezes improváveis. Na Suíça, onde viveu e trabalhou, reformaram-no compulsivamente e asseguraram-se que ele entrava no comboio. Um distúrbio qualquer, uma incapacidade permanente. Preferiram ficar a pagar para o ver longe. Ainda assim, esteve lá tempo que chegasse para adquirir modos e tiques urbanos, para copiar posturas e requebros que o seu escanzelado couro de servo da gleba interpreta como pode. Fuma como um actor da idade de ouro de Hollywood, encostado de mão no bolso aos umbrais das portas, à mobília das salas, mas ri, nas raras vezes que o faz, como todos os seus boçais antepassados — e as mulas que montavam.»
In Os Idiotas
terça-feira, 30 de julho de 2013
Os amigos de Lúcio (2): Luís
«O Luís é bispo das Testemunhas de Jeová. Ou era, foi expulso. O problema dele é que amava a Deus mas também amava ao vinho. Durante anos conseguiu resistir às tentações e fez uma bela carreira. Nos últimos tempos questionou a sua fé e descobriu que ainda se mantinha viva: era ela a certeza de que há muitas formas de exultar, mas só o álcool embriaga realmente. Pode ter que ver com reacções químicas, mera biologia, mas de alguma forma a alma deixa-se tocar. De resto, a degradação do fígado é só uma forma de apressar o encontro com o Senhor, aspiração última de todos os fiéis.»
Lúcio in ‘Os Idiotas’
Lúcio in ‘Os Idiotas’
segunda-feira, 29 de julho de 2013
Carpe aestivum
— Por vezes — disse Mário — penso que o Verão, aquela altura do ano em que vamos definitivamente ser felizes, é um mito, uma projecção dos nossos desejos mais íntimos. Ou talvez uma evocação. Sim, definitivamente uma evocação. Vejamos: o Verão existiu, um dia houve Verão. Não é como Deus ou os santos, nos quais temos de acreditar sem evidências nem testemunhos, cegamente. Não é uma questão de fé — mas está imbuído da mesma intangibilidade. Temos as nossas memórias dele, sem dúvida que temos. A felicidade estava ali, por todo o lado, inundando tudo naqueles fins-de-tarde intermináveis, como uma cornucópia generosa que não parasse de jorrar luz e prazer e boas coisas a todo o momento, um regador gigante manuseado pela mão de Deus, aspergindo com uma nuvem de vapor inebriante, muito fina e suave e fresca, os nossos dias incontáveis e incontados.
— Mas o Verão — continuou Mário — não tem existência senão no passado, por isso o seu carácter mitológico. Ano após ano alimentamos a esperança de que agora é que vai ser, vamos repetir tudo a que temos direito, o ócio, as sestas depois de almoço, os planos para as diferentes partes do dia que se não se cumprirem não importa pois há tantos dias à escolha, as manhãs sem fim, os almoços longos, com sobremesa, as tardes a perder de vista, os jantares com guitarras e cantorias eufóricas, as noites também habitáveis, usufruíveis (a uma da manhã à distância da Namíbia, se não mais longe ainda, de qualquer modo sempre para lá do Bojador).
— Depois eles acabaram com o Verão. A humanidade prestes a cumprir-se (as máquinas farão as coisas chatas, dizia-se em 1900 — em 1900!) e eles a acabar com o Verão. A tecnologia de ponta, a riqueza, o voto universal, a igualdade, o amor livre, o homem na Lua, tantas evoluções — e eles a acabar com o Verão.
— Em 1967 eu ainda não sabia que eles estavam a acabar com o Verão. Quer dizer, eu estava a nascer, não é?, não podia reparar logo nisso, tinha as minhas próprias prioridades. Durante os primeiros anos e os seguintes, tudo o que fiz foi aproveitar o Verão, carpe aestivum. Não de uma forma táctica, oportunista, reflectida, filosófica, ideológica. Não. Nada disso. No sentido menos consciente da expressão. Apenas mergulhando plenamente nele, de trombas, de barriga, de costas, lançando-me para ele como pudesse e a todo o momento. O Verão estava ali à mão de semear, era gratuito, para todos, cada um que fizesse dele o que quisesse. Não havia um minuto a perder (embora houvesse imensos minutos para perder), tudo o que tínhamos a fazer era dar uma corridinha rápida, um saltinho para o ar na beira e, zás, cair nele de cabeça, formosamente, atleticamente, imensamente, para sempre.
— Sim, para sempre. Aqueles que mergulharam no Verão naqueles anos sabem do que falo. São, como eu, os despojados do Verão. O cume da raça humana, a quem subitamente tiraram o tapete de debaixo dos pés. O tapete não, a prancha, o trampolim. Íamos nós para mais um salto, joelhos ligeiramente flectidos para o impulso que nos lançaria nos céus como um Ícaro sem percalços e de repente também nós temos um percalço. O maior deles todos. Não há prancha. Não há trampolim. Não há Verão. De todo. Há apenas a queda. A longa e interminável queda. O lado simétrico do Verão. Algo que nos puxava para baixo onde antes nos sentíamos enlevados. Para baixo, sempre para baixo, Alice caindo pelo buraco mas sem nunca chegar ao País das Maravilhas. Nem a lado nenhum. Nem sequer ao Inferno, que poderia ser um sucedâneo do Verão, com o seu próprio calorzinho. Não. Nada. Apenas a queda. A Queda e o Tempo. Tempo para ponderar a perda. Para gravar mais profundamente na nossa pele o que estávamos a perder. Não como o Verão gravava na pele a sua infinita bondade, com uma cor, um tom, o bronze, nalguns casos o ébano puro — sem escaldões nem melanomas.
— Depois de alguma vez se ter entrado no Verão, como eu entrei, como nós entrámos, a vida torna-se muito difícil. Há a Queda, claro — aguardamos a todo o momento ficarmos esborrachados, como um poio a cair do cu de uma vaca lacónica —, há a queda, mas houve o Verão. Estamos para aqui a cair, sempre a cair, mas temos uma memória, algures no nosso cérebro temos registos de que houve um Verão. Um não, dez ou vinte, a eterna repetição, a terna repetição da melhor coisa que o mundo teve. Haverá castigo maior do que esse? Conhecer o Paraíso e perdê-lo? Saber como as coisas podem ser e depois sermos informados de que nunca mais as coisas serão assim? Que daqui para a frente o que nos resta é lembrar, lembrar e chorar a perda até à neurose? Freud, Freud, onde andas? Era isto que tu querias, não era, meu sacana? A humanidade a remoer as suas neuroses e a comprar os excitantes, os calmantes, os soníferos que gajos como eu prescrevem aos outros e a si mesmos. Que bela ideia de negócio, a tua, ó sócio.
— Quer dizer, se ao menos as férias não fossem apenas um mês, se pudéssemos ir três meses para França, para o Loire, alugar um castelo com piscina até nos aborrecermos… Deliro, bem sei. Fico sempre assim quando chega o Verão — concluiu Mário.
*in Aranda
sábado, 27 de julho de 2013
Lyre Bird
Os vizinhos da esquerda e da direita têm as televisões sintonizadas no
mesmo canal merdoso que entretém e lava o cérebro dos reformados deste país, um
dos três canais merdosos que Rangel, Moniz & C. Lda. nos legaram. Como são bastante
surdos (os vizinhos), têm geralmente o volume dos aparelhos no vermelho, e a
essa circunstância irritante junta-se o delay, o atraso na recepção do sinal
entre a TV à esquerda e a TV à direita. Resulta que se não me distraio o
suficiente ouço a Júlia Pinheiro, a Fátima Lopes e as novelas em cânone, estão
a imaginar o pesadelo.
Hoje apenas uma das televisões estava ligada e, talvez resultado da boa
combinação entre Foster Wallace e um tinto carregado alentejano, de repente
pareceu-me que o vizinho sul (o outro dormia a sesta) ouvia ‘Elephant’, das
Warpaint. Apurei o ouvido e foi difícil
convencerem-me que era apenas mais uma pimbalhice que o vento distorcia ao
ponto de fazer parecer música o que era apenas gargarejos de um cérebro
aditivado com botox.
Liguei o portátil para vos dar conta deste fenómeno alentejano e acabei
a pôr as meninas de Los Angeles a cantar. Para meu espanto, o vizinho acordado
(o outro ressonava), que eu julgava surdo como um portão de quinta, no final da
música continuou com o assobio do outro lado do muro a melodia principal de ‘Elephant’,
como se fosse um conhecedor profundo da obra das Warpaint. Repeti a experiência
com o mesmo resultado e concluí que, ao contrário do propagado por Moniz, Rangel
& Sons, o povo não têm necessariamente mau gosto — ou que o vizinho tem alma
de Lyre Bird.
quarta-feira, 17 de julho de 2013
Insuficiências da juventude
Eles estão nos quarentas. Duas delas
andam pelos trinta e a outra ainda não sabe o que é isso. As despesas da
conversa correm sobretudo por conta deles e abordam dois tópicos: desporto e
saúde. Eles fazem jogging, vão ao ginásio. Estão elegantes,
planeiam maratonas. Já pesaram mais do que deviam e tiveram a respectiva ameaça
de remédios para o colesterol. Agora fazem desporto e tomam atenção ao que
comem. Falam durante um bocado de hambúrgueres, mas só pejorativamente, com
detalhe de antigo agarrado. Comparam dietas de diferentes países, concluindo
que por aqui se come mal (não exactamente do ponto de vista do paladar). Um
deles exibe, como bilhete de lotaria premiado, o ticket de uma
daquelas máquinas que medem tudo: massa corporal, peso, altura, pulsação, tensão
arterial. Trocam informações sobre os últimos valores do colesterol. Falam de
dores nos joelhos e nos tornozelos. E de exames, feitos e agendados. Banais
TACs, mas também endoscopias e colonoscopias. Aqui começa a ser difícil
distingui-los de reformados na sala de espera do centro de saúde. Discutem se
dói, se não dói. Se a anestesia, que se paga à parte, mesmo estando isento, é
uma necessidade ou uma mariquice. Falam da impressão ou emoção (nisto divergem)
de ver no ecrã o interior das próprias entranhas, da dificuldade e do suor da
médica nas manobras de aproximação ao intestino delgado, da limpeza que o exame
revelou (resultado de uma preparação bem feita).
Os elementos femininos vão intervindo a
espaços, tentando fazer humor, aduzindo testemunhos de pais ou tios,
experiências de que ouviram falar. A mulher mais nova há muito que mudou de
cadeira e se recostou à sombra de uma sebe, com ar melancólico, observando o
voo dos insectos à luz dos candeeiros. Quando finalmente dão por isso, as
outras metem-se com ela, perguntam-lhe o que se passa. Ela sai do silêncio e do
torpor com ânsia de palrar: está farta desta conversa, só falam de coisas de
que ela não sabe, de que não percebe nada. Di-lo com uma expressão sinceramente
desolada, de quem queria participar no convívio e se sente frustrado por não
ter as ferramentas, os argumentos — e não, como podia, a vangloriar-se da sua
juventude.
Quim Barreiros dirige JN por um dia
Ao que parece, o
'Jornal de Notícias' apresentará uma excelente prova de bom gosto como manchete
de amanhã (hoje, para a maior parte de vocês). A tentação é culpar o jornal,
mas um jornal não existe sem leitores. O Norte, e não só o Norte boçal, tem
defendido teimosamente o JN como o “seu” jornal, apenas porque o pasquim inclui
mais páginas de noticiário regional, mesmo que irrelevante. Os empresários e as luminárias do Norte sempre
preferiram a noticiazinha paroquial, ainda que medíocre, a uma informação
decente. As mesas de café, os consultórios de dentista e todos os velhos
solares acima do Mondego revestem-se de JN. Não sei porque se queixam de o
Norte ter perdido influência. Parece-me que disputamos bem o primeiro lugar ao
'Correio da Manhã' no que toca a irrelevância ruidosa e grotesca.
(Isto faz-me lembrar como, à escala provincial, os transmontanos preferiram deixar morrer o 'Semanário Transmontano', o único jornal digno de prelo que aqui conheci.)
(Isto faz-me lembrar como, à escala provincial, os transmontanos preferiram deixar morrer o 'Semanário Transmontano', o único jornal digno de prelo que aqui conheci.)
terça-feira, 16 de julho de 2013
Notícias d'O Lado Esquerdo
A campanha alegre de Os Idiotas continua: progressos na ilustração da capa, ISBN, amigos facebookianos do Lúcio (que por sinal está agora a começar a apresentar os seus amigos reais...).
Tudo aqui: www.osidiotas.pt, aqui: www.facebook.com/osidiotaslivro e aqui: www.facebook.com/luciopeixao.
Tudo aqui: www.osidiotas.pt, aqui: www.facebook.com/osidiotaslivro e aqui: www.facebook.com/luciopeixao.
«Somos seis no grupo e não é fácil dizer qual de nós é o mais alienado. Se fôssemos adolescentes, suponho que nos chamariam freaks, nerds, ou coisa assim, mas com esta idade a palavra é outra, embora resulte de prospecção no mesmo campo semântico. O que quer que sejamos, somo-lo por oposição aos cretinos, que são o resto das pessoas.
Os outros são o Luís, o Óscar, o Avelino, o Sérgio e o Vasco. Eu sou o Lúcio (o prazer é todo vosso).»
sábado, 13 de julho de 2013
Remexer no lixo
[Outros parágrafos de um falhanço dos idos de Março. Os primeiros estão aqui.]
«Decerto
alguns de vocês pensaram que é preciso um tipo descer muito na vida para se
passear pelas ruas nu e com a barba por fazer, os ossos mal seguros por umas
pelicas de frango depenado. Outros, pelo contrário, ficaram encantados com a
publicidade que eu tive, aquilo era uma coisa que vocês podiam fazer. Afinal, toda a gente anda a tentar dar nas
vistas, a desenvolver uma nova metafísica da existência: apareço, logo existo.
Mas não escondo que tinha descido na vida. Tinha descido às profundezas do
Inferno e não foi porque me enganasse no caminho quando tentava vernianamente descobrir
o centro da Terra — não tenho a sorte nem o espírito aventureiro, ou a astúcia,
de um Pedro Álvares Cabral. Se fui parar ao Inferno foi porque meti no GPS
essas exactas coordenadas e obedeci com satisfação a cada directiva dada pela
menina concupiscente do TomTom.
Tudo
começou vinte anos antes, quando num dia solarengo de Fevereiro, desses em que
nos atrevemos a mergulhar no oceano apesar do risco de síncope cardíaca, fui arrebanhado
para a vida militar. Se havia alguém que não fora concebido para a tropa, era
eu: o único desporto que tinha feito até à data era o sprint, quando tentava fugir do bullying
na escola. Sobre a porta onde fazíamos fila para entrar, como estúpidos
cordeiros voluntários para o sacrifício, havia uma sigla, «EPI», e só mais
tarde soube que não significava «Escola Prática de Infantaria» mas sim «Entrada
Para o Inferno». Claro que o Inferno ali, no átrio barroco do antigo convento,
era ainda cálido, apenas chamuscava, era mais fanfarronice militar do que
realidade. Tinha muito de Comboio Fantasma, onde umas figuras com insígnias e
galões procuravam desempenhar o papel de almas penadas e monstros avulsos. Um
tipo assustava-se e ria-se, tudo ao mesmo tempo. Os furriéis e os alferes
logravam ser tão ridículos, nas suas fardas engomadas e nas suas botas luzidias,
quanto certas representações naïves da morte com gadanhas ergonomicamente
erradas.
A
mim a tropa trazia-me entre o divertido e o entediado, mas frequentemente
estava apenas irritadiço. O regulamento e os horários eram absurdos. Quando às
seis da manhã acordava com o matraquear das giletes no mármore oxidado dos
lavatórios dava graças aos céus por ter sido brindado com um rosto que naquela
altura ainda era quase imberbe e onde a escassa penugem loura resultava
invisível aos olhos de orangotango macho e míope dos graduados. Para eles, eu
não tinha barba. Tinha bochechas como nádegas de gaja, onde apetecia assentar a
mão, e julgavam que me incomodavam com isso. Eu ria-me como se eles tivessem
contado uma anedota e eles diziam que não era para rir e davam-me um calduço.
Parecia-me paga aceitável para o privilégio de me levantar seis dias por semana
mais tarde do que os outros. Por vezes acordava antes do ritual da barba,
porque havia uns imbecis cujo zelo pela pontualidade na parada os fazia
levantar ainda mais cedo e, no seu nervosismo, não conseguiam abrir os cacifos
metálicos sem parecer que os estavam a assaltar. Eles tinham a chave do seu
próprio cacifo, mas abanavam-no e batiam-lhe como quem está a ser perseguido
pelo Freddy Krueger e não consegue acertar com a chave na fechadura. Depois de
finalmente o abrirem, não o sabiam fechar sem bater com as portas, metidos
naquela sua cabeça e naquele seu mundinho onde só havia lugar para a obsessão
com as horas e a obediência cega à hierarquia.
Depois de sermos
admitidos naquele patético clube masculino, tinham-nos cortado ainda mais rente
o cabelo e, num patamar de uma larga escadaria, fizemos nova fila para receber
o fardamento, tudo nos previsíveis tons de verde azeitona, incluindo a roupa
interior, as meias e os lenços de assoar (excepto o equipamento desportivo, que
era de um branco pronto a aceitar as manchas de suor, e as botas, pretas como
pneus novos de chaimite parafinados). Ao contrário da maioria das lojas, ali não se aceitavam trocas, pelo que éramos obrigados a lembrar na hora
os nossos tamanhos ou a viver com o remorso de os ter esquecido — e com as
peças demasiado apertadas ou demasiado largas. Mas ter boa memória não chegava:
as botas que recebi eram do número certo, só que, numa prova de que o rigor
militar é um mito, isso não significou que elas se ajustassem aos meus pés. Nas
semanas seguintes, até ser autorizado a ir a casa, tive de usar em simultâneo todos
os pares de meias que me calharam para conseguir caminhar sem deixar as botas
para trás, e isso não favoreceu em nada a atmosfera empestada da
caserna.
(...)
De
resto, cedo comecei a desinteressar-me das rotinas militares. Havia um mínimo
que eu cumpria, que era permanecer no quartel, fora disso não me preocupava
demasiado o que indicava o menu do dia, não estava para me aborrecer com detalhes.
Os militares eram, por exemplo, muito ligados à etiqueta, falsamente
convencidos daquela treta de oficial & cavalheiro. Diziam que não se
misturavam peças do uniforme número dois (o de saída) com o número três (o de
trabalho ou operacional) e muito menos com o de ginástica. A continência só se
fazia com a cabeça coberta. Não se ficava de cabeça coberta no refeitório. Nunca
se pegava numa arma enquanto se envergava a alvura do equipamento de ginástica (como se assim vestidos nos tornássemos anjos, seres incompatíveis com a
violência da G3). Enfim, um rol de limitações e exigências que poderia baralhar
um tipo desatento como eu era. Como resultado disto, não foram raras as vezes
em que apareci na parada, com o atraso do costume, embrulhado em branco-noiva quando todos estavam de verde-oliva ou vestido para ir às putas
quando havia ordem de permanência de fim-de-semana.»
quarta-feira, 10 de julho de 2013
Shoplifters Of The World Unite*
Conheci-o nos anos oitenta. Tinha o queixo afiado e insolente de Morrissey
e dançava como ele. A teatralidade do cantor britânico era para a terra uma estranheza
— vagamente sedutora para alguns, repulsiva ou embaraçosa para os outros. Para
Pierre era uma segunda pele, mexia-se nela com o à-vontade do original que
emulava e a quem servia de arauto nas berças. O facto de ter estado emigrado
numa grande metrópole europeia e de ser, ao contrário dos demais, ainda que
circunstancialmente, de origens urbanas, facilitava-lhe, claro, a apropriação
do imaginário e do guarda-roupa pop. Parecia um excêntrico, mas era apenas
alguém que adoptara um estilo. De uma sofisticação vulgar noutras paragens, assaz
extravagante na província.
Na pista de dança dir-se-ia exibicionista, mas só porque o resto dos noctâmbulos
dançávamos como tímidos e artríticos. Ele entregava-se à música com o mesmo ar
compungido ou desesperado de Morrisey, agarrando os próprios ombros, colocando dramaticamente
as costas da mão na testa, virando os olhos aos céus, vivendo emocionalmente o
que ouvia nas colunas da discoteca, sobretudo se o que ouvia era The Smiths.
A amizade com os autóctones teria de ocorrer, porque Pierre, agora
domiciliado na terra, era ali inusitado mas não tinha perfil de solitário.
Contrastava nos grupos, mas acabaria por frequentar os mesmos sítios e seguir as
rotinas clássicas do burgo. Trazia hábitos de consumo de marijuana cosmopolitas,
e os posteriores problemas com as drogas que partilhou com parte da juventude
indígena pareciam nele mais charmosos e românticos. Quando teve de trabalhar,
já numa fase descendente, parecia uma estrela de TV a cumprir uma pena de serviço
cívico. Era o único servente de trolha que chegava já de manhã com os jeans arregaçados, e usava o boné com a
maior pala de todo o sector local da construção civil. Era dos poucos, na
altura, que tomava banho e acertava o penteado entre o final do expediente e as
primeiras cervejas da noite.
Algures na viragem do século perdi-lhe o rasto. Já só o via
ocasionalmente, à boleia, diziam-me que a caminho do dealer. Chegaram-me rumores, que cobardemente
não refutei, que o davam como internado em centros de desintoxicação — como
tantos outros, nisto não seria original.
Quando o voltei a ver, de novo magro como o Morrisey de 82, mas agora talvez
mais parecido com o Michael Stipe dos anos 2000, careca e consumido como ele, a
primeira coisa que notei foi a franqueza do aperto de mão. Delicado mas
envolvente. Falámos de música, claro, que ele amava com a mesma intensidade mas
com um gosto mais ecléctico. Tinha um programa de rádio e uma mágoa por não ter
dinheiro para ir ver todos os concertos de que gostava. Disse isto sem
ressentimento, com uma certa humildade, sem o ar desafiante ou provocador que
ser pós-punk nos oitenta lhe dava. (Não, não era humildade, era melancolia,
realismo dorido.)
Não sei se a minha amizade com Pierre poderia ser agora mais intensa e
franca do que há vinte e cinco anos, mas sei que a lembrança do nosso encontro
acabou de me comover. Não confundam isto com condescendência ou piedade, nem
ele precisa disso nem eu estou em posição de tais sentimentos, seria pretensioso
e patético. É talvez um reconhecimento, o ver nele os meus próprios sonhos
irrealizados. Ou uma premonição.
* The Smiths, single de 1987
terça-feira, 9 de julho de 2013
Estou lixado
Depois de trabalharem e de cumprirem os seus ritos comunitários
pós-prandiais, que nas noites quentes de Verão se alargam, as pessoas vão para
casa. Eu vou para a varanda. As ondas de calor fazem de mim um sem-abrigo, porque
tornam os compartimentos do T3 território inóspito para a humanidade. Leio e
dormito na cadeira de plástico da varanda até ser demasiado doloroso segurar a
cabeça e então, alta madrugada, arrasto-me para a cama, sabendo que vou suar as
estopinhas cada hora de sono mal dormido.
Hoje, depois de há muito escancarar todos os vãos nas duas fachadas do
prédio, a aproveitar como náufrago a brisa que se levantou, consegui finalmente,
às quatro da manhã, baixar em dois graus a temperatura cá em casa (de 32 para
30). Significa que sentar-me ao computador é um exercício de masoquismo um
pouco menos clamoroso.
Se tivesse um jardim com plantas arbustivas, poderia preencher estas
madrugadas de canícula esculpindo ou fazendo a poda, como uma das vizinhas da
rua de trás. Não é a primeira vez que ouço a velha senhora atarefar-se alta
noite, mas geralmente apenas trata de despejar o lixo no contentor ao fundo da
rua ou de arrumar o pátio a horas inesperadas. Ontem muniu-se de escadote e, em
bata sobre camisa de dormir, tesourou durante hora e meia, varrendo de seguida minuciosamente
o passeio. Não a podemos censurar: fazer
aquele trabalho de dia teria sido suicídio e as insónias não têm de ser meros
períodos de desespero, podem ser rentabilizadas.
É o que tenho tentado fazer, com menos sucesso do que a minha vizinha. Havia,
teoricamente, uma certa correspondência entre o labor dela e o meu. Ambos
decidíramos podar, ela os seus ciprestes, loureiros, carpa europeia ou o que
quer que lhe nasceu no jardim, eu as provas do meu Os idiotas. Acontece que, ao contrário dela, eu não me consigo
livrar dos ramos secos, desordenados, murchos, apodrecidos, porque nesse caso
teria de me livrar de toda a obra.
O que escrevi atrás não é falsa modéstia, autodepreciação pedante. Explico-me
melhor: eu estava apenas a tentar imaginar uma versão do romance que pudesse
apresentar ao meu pai. E concluí que ela não existe. Se pusesse de lado a linguagem obscena, a
sátira, a incompassiva crónica de costumes, ficaria talvez com uma
novela amorosa ou psicológica nas mãos — negra, desesperançada, dispensável ou igualmente inapresentável. Estou lixado. Escrevi uma comédia, mas levá-la lá para casa será como contar
uma anedota porca à mesa de jantar. Impensável.
sexta-feira, 5 de julho de 2013
'Os Idiotas'
Para os devidos efeitos,
faço constar:
«Uma campanha alegre: edição do romance ‘Os Idiotas’
Com o Governo em frangalhos e o país pouco mais ou menos, poderia parecer de mau tom vir agora anunciar a edição de um livro com o título ‘Os Idiotas’. Outra forma de ver a coisa é que não há momento tão adequado como este. Seja como for. O Lado Esquerdo Editora tem o prazer de informar que prepara a publicação em Setembro do romance ‘Os Idiotas’, de Rui Ângelo Araújo. Em período de eleições autárquicas (e quem sabe legislativas), estamos em campanha. Uma campanha alegre.
Acompanhe-nos no site www.osidiotas.pt ou em www.facebook.com/osidiotaslivro.
(Numa definição arriscadamente redutora, Os Idiotas é uma sátira divertida que junta o declínio de um país ao declínio de um homem.)»
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