[Outros parágrafos de um falhanço dos idos de Março. Os primeiros estão aqui.]
«Decerto
alguns de vocês pensaram que é preciso um tipo descer muito na vida para se
passear pelas ruas nu e com a barba por fazer, os ossos mal seguros por umas
pelicas de frango depenado. Outros, pelo contrário, ficaram encantados com a
publicidade que eu tive, aquilo era uma coisa que vocês podiam fazer. Afinal, toda a gente anda a tentar dar nas
vistas, a desenvolver uma nova metafísica da existência: apareço, logo existo.
Mas não escondo que tinha descido na vida. Tinha descido às profundezas do
Inferno e não foi porque me enganasse no caminho quando tentava vernianamente descobrir
o centro da Terra — não tenho a sorte nem o espírito aventureiro, ou a astúcia,
de um Pedro Álvares Cabral. Se fui parar ao Inferno foi porque meti no GPS
essas exactas coordenadas e obedeci com satisfação a cada directiva dada pela
menina concupiscente do TomTom.
Tudo
começou vinte anos antes, quando num dia solarengo de Fevereiro, desses em que
nos atrevemos a mergulhar no oceano apesar do risco de síncope cardíaca, fui arrebanhado
para a vida militar. Se havia alguém que não fora concebido para a tropa, era
eu: o único desporto que tinha feito até à data era o sprint, quando tentava fugir do bullying
na escola. Sobre a porta onde fazíamos fila para entrar, como estúpidos
cordeiros voluntários para o sacrifício, havia uma sigla, «EPI», e só mais
tarde soube que não significava «Escola Prática de Infantaria» mas sim «Entrada
Para o Inferno». Claro que o Inferno ali, no átrio barroco do antigo convento,
era ainda cálido, apenas chamuscava, era mais fanfarronice militar do que
realidade. Tinha muito de Comboio Fantasma, onde umas figuras com insígnias e
galões procuravam desempenhar o papel de almas penadas e monstros avulsos. Um
tipo assustava-se e ria-se, tudo ao mesmo tempo. Os furriéis e os alferes
logravam ser tão ridículos, nas suas fardas engomadas e nas suas botas luzidias,
quanto certas representações naïves da morte com gadanhas ergonomicamente
erradas.
A
mim a tropa trazia-me entre o divertido e o entediado, mas frequentemente
estava apenas irritadiço. O regulamento e os horários eram absurdos. Quando às
seis da manhã acordava com o matraquear das giletes no mármore oxidado dos
lavatórios dava graças aos céus por ter sido brindado com um rosto que naquela
altura ainda era quase imberbe e onde a escassa penugem loura resultava
invisível aos olhos de orangotango macho e míope dos graduados. Para eles, eu
não tinha barba. Tinha bochechas como nádegas de gaja, onde apetecia assentar a
mão, e julgavam que me incomodavam com isso. Eu ria-me como se eles tivessem
contado uma anedota e eles diziam que não era para rir e davam-me um calduço.
Parecia-me paga aceitável para o privilégio de me levantar seis dias por semana
mais tarde do que os outros. Por vezes acordava antes do ritual da barba,
porque havia uns imbecis cujo zelo pela pontualidade na parada os fazia
levantar ainda mais cedo e, no seu nervosismo, não conseguiam abrir os cacifos
metálicos sem parecer que os estavam a assaltar. Eles tinham a chave do seu
próprio cacifo, mas abanavam-no e batiam-lhe como quem está a ser perseguido
pelo Freddy Krueger e não consegue acertar com a chave na fechadura. Depois de
finalmente o abrirem, não o sabiam fechar sem bater com as portas, metidos
naquela sua cabeça e naquele seu mundinho onde só havia lugar para a obsessão
com as horas e a obediência cega à hierarquia.
Depois de sermos
admitidos naquele patético clube masculino, tinham-nos cortado ainda mais rente
o cabelo e, num patamar de uma larga escadaria, fizemos nova fila para receber
o fardamento, tudo nos previsíveis tons de verde azeitona, incluindo a roupa
interior, as meias e os lenços de assoar (excepto o equipamento desportivo, que
era de um branco pronto a aceitar as manchas de suor, e as botas, pretas como
pneus novos de chaimite parafinados). Ao contrário da maioria das lojas, ali não se aceitavam trocas, pelo que éramos obrigados a lembrar na hora
os nossos tamanhos ou a viver com o remorso de os ter esquecido — e com as
peças demasiado apertadas ou demasiado largas. Mas ter boa memória não chegava:
as botas que recebi eram do número certo, só que, numa prova de que o rigor
militar é um mito, isso não significou que elas se ajustassem aos meus pés. Nas
semanas seguintes, até ser autorizado a ir a casa, tive de usar em simultâneo todos
os pares de meias que me calharam para conseguir caminhar sem deixar as botas
para trás, e isso não favoreceu em nada a atmosfera empestada da
caserna.
(...)
De
resto, cedo comecei a desinteressar-me das rotinas militares. Havia um mínimo
que eu cumpria, que era permanecer no quartel, fora disso não me preocupava
demasiado o que indicava o menu do dia, não estava para me aborrecer com detalhes.
Os militares eram, por exemplo, muito ligados à etiqueta, falsamente
convencidos daquela treta de oficial & cavalheiro. Diziam que não se
misturavam peças do uniforme número dois (o de saída) com o número três (o de
trabalho ou operacional) e muito menos com o de ginástica. A continência só se
fazia com a cabeça coberta. Não se ficava de cabeça coberta no refeitório. Nunca
se pegava numa arma enquanto se envergava a alvura do equipamento de ginástica (como se assim vestidos nos tornássemos anjos, seres incompatíveis com a
violência da G3). Enfim, um rol de limitações e exigências que poderia baralhar
um tipo desatento como eu era. Como resultado disto, não foram raras as vezes
em que apareci na parada, com o atraso do costume, embrulhado em branco-noiva quando todos estavam de verde-oliva ou vestido para ir às putas
quando havia ordem de permanência de fim-de-semana.»
Só uma observação: a palavra «solarengo» não significa cheio de sol. A palavra correta seria «Soalheiro»! É uma confusão cada vez mais comum, mas acho que vale a pena alertar.
ResponderEliminarObrigado pela correcção. Tem razão.
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