Conheci-o nos anos oitenta. Tinha o queixo afiado e insolente de Morrissey
e dançava como ele. A teatralidade do cantor britânico era para a terra uma estranheza
— vagamente sedutora para alguns, repulsiva ou embaraçosa para os outros. Para
Pierre era uma segunda pele, mexia-se nela com o à-vontade do original que
emulava e a quem servia de arauto nas berças. O facto de ter estado emigrado
numa grande metrópole europeia e de ser, ao contrário dos demais, ainda que
circunstancialmente, de origens urbanas, facilitava-lhe, claro, a apropriação
do imaginário e do guarda-roupa pop. Parecia um excêntrico, mas era apenas
alguém que adoptara um estilo. De uma sofisticação vulgar noutras paragens, assaz
extravagante na província.
Na pista de dança dir-se-ia exibicionista, mas só porque o resto dos noctâmbulos
dançávamos como tímidos e artríticos. Ele entregava-se à música com o mesmo ar
compungido ou desesperado de Morrisey, agarrando os próprios ombros, colocando dramaticamente
as costas da mão na testa, virando os olhos aos céus, vivendo emocionalmente o
que ouvia nas colunas da discoteca, sobretudo se o que ouvia era The Smiths.
A amizade com os autóctones teria de ocorrer, porque Pierre, agora
domiciliado na terra, era ali inusitado mas não tinha perfil de solitário.
Contrastava nos grupos, mas acabaria por frequentar os mesmos sítios e seguir as
rotinas clássicas do burgo. Trazia hábitos de consumo de marijuana cosmopolitas,
e os posteriores problemas com as drogas que partilhou com parte da juventude
indígena pareciam nele mais charmosos e românticos. Quando teve de trabalhar,
já numa fase descendente, parecia uma estrela de TV a cumprir uma pena de serviço
cívico. Era o único servente de trolha que chegava já de manhã com os jeans arregaçados, e usava o boné com a
maior pala de todo o sector local da construção civil. Era dos poucos, na
altura, que tomava banho e acertava o penteado entre o final do expediente e as
primeiras cervejas da noite.
Algures na viragem do século perdi-lhe o rasto. Já só o via
ocasionalmente, à boleia, diziam-me que a caminho do dealer. Chegaram-me rumores, que cobardemente
não refutei, que o davam como internado em centros de desintoxicação — como
tantos outros, nisto não seria original.
Quando o voltei a ver, de novo magro como o Morrisey de 82, mas agora talvez
mais parecido com o Michael Stipe dos anos 2000, careca e consumido como ele, a
primeira coisa que notei foi a franqueza do aperto de mão. Delicado mas
envolvente. Falámos de música, claro, que ele amava com a mesma intensidade mas
com um gosto mais ecléctico. Tinha um programa de rádio e uma mágoa por não ter
dinheiro para ir ver todos os concertos de que gostava. Disse isto sem
ressentimento, com uma certa humildade, sem o ar desafiante ou provocador que
ser pós-punk nos oitenta lhe dava. (Não, não era humildade, era melancolia,
realismo dorido.)
Não sei se a minha amizade com Pierre poderia ser agora mais intensa e
franca do que há vinte e cinco anos, mas sei que a lembrança do nosso encontro
acabou de me comover. Não confundam isto com condescendência ou piedade, nem
ele precisa disso nem eu estou em posição de tais sentimentos, seria pretensioso
e patético. É talvez um reconhecimento, o ver nele os meus próprios sonhos
irrealizados. Ou uma premonição.
* The Smiths, single de 1987
devemos ser mais ou menos da mesma geração.
ResponderEliminaro tempo é uma coisa...
68.
ResponderEliminaré nisso q dá andar a ouvir uma banda perigosa como os smiths, q só faz mal às depressões.
ResponderEliminaridade?! sonhos irrealizados?!
há escritores d alta craveira q começaram na tua idade.
imagino o q o Rentes de Carvalho, c os seus 83 anos (acabou d lançar um novo livro excelente), pensará destas lamechices d gajos c 40 anos.
um gajo c 40 anos está na flor da idade.
qd tiveres 80 és capaz d vir a dizer qq coisa do estilo: se eu tivesse 40 anos e soubesse o q sei hoje, ui!
luis boticas
62.
ResponderEliminarquase.