segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

De Luis Landero a Manuel Vilas e Javier Marías

Leio Chuva Miúda de Luis Landero com uma insatisfação, ia dizer «indefinida», mas julgo que é concreta. A história, as personagens, o enredo são interessantes, mas a narrativa parece demasiado ligeira ou superficial para aquilo que o autor tem em mãos. É uma sensação que evoca a que tive ao ler Reviver o Passado em Brideshead, quando imaginei estar a folhear um digest. Este Chuva Miúda, que tem uma estrutura de diálogos curiosa, parece-me um esboço; enuncia os factos sem lhes explorar verdadeiramente a densidade, mas também não encontra a sua força literária no poder da sugestão.

Curiosamente, o livro e o autor são vivamente recomendados, com citação na capa, por Manuel Vilas, o autor dos maravilhosos Em Tudo Havia Beleza e E, de Repente, a Alegria, o que poderia fazer imaginar alguma afinidade estilística ou estética entre Landero e Vilas. Mas quando fecho um capítulo de Chuva Miúda não fica em mim nada de parecido com o que me deixou a prosa concisa e poética, a voz narrativa de Manuel Vilas, nada de tão comovente, lancinante ou arrebatador.

Há em Chuva Miúda, de todo o modo, acontecimentos e personagens capazes de fascínio e inquietação, mas para minerar isso neles parece-me que seria preciso alguém predisposto a enveredar longamente pelas curvas da vida e as circunvoluções da mente, alguém como Elena Ferrante ou Javier Marías. Landero parece ficar num meio-termo entre Manuel Vilas e aqueles dois corredores de fundo: uma narrativa abreviada mas sem o poder impressivo de Vilas; a amostra de um enredo e de caracteres que Ferrante ou Marías transformariam em ouro puro.

Em todo o caso, prosseguirei com leitura do livro, a ver se o autor logra afinal um efeito seu. E se isso acontecer será abusivo o que vou dizer agora, que este Chuva Miúda me fez pensar numa hesitação representativa de um tempo, ou antes, de um statu quo literário: uma hesitação que parece em simultâneo condescendência e confissão involuntária de falta de fôlego. Características de certos escritores, editores e leitores — de si para si e de uns para com os outros.

P.S.: Juntar Manuel Vilas e Javier Marías num post na altura em que sai o novo livro deste último — descrito (e bem) numa recensão como «explicativo, maximalista, detalhado» — poderia ser apenas uma coincidência, mas não é, é uma piscadela.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Dia de pesca

«Sujidade. Não havia outra palavra. Sujidade material e mental. Mas, em simultâneo, inocência, a inocência dos estultos.

Há trinta anos, ainda as mulheres eram apalpadas à luz do dia e se dividiam entre as que davam risadinhas e as que davam estalos (as outras não tinham existência reconhecida), o Buldogue ressonava de consciência imaculada sob ou sobre uma pilha de roupa. Na escuridão do quarto, apenas dava para distinguir em cima da cama o que parecia uma grande elevação de trapos escuros que contrastava com os lençóis mais claros — ninguém arriscaria dizer brancos, mesmo que originalmente o tivessem sido. Não era possível perceber se ele se tinha enfiado debaixo das roupas, temendo que a ressaca o deixasse susceptível à fresca da aurora — o que teria implicado uma capacidade de planeamento própria de uma noite que não tinha corrido assim tão bem —, ou se simplesmente mergulhara no enxoval inextricável de roupa lavada e suja que jazia sempre na cama baixa. Podia pôr-se ainda a hipótese de tudo aquilo, aquele volume que lembrava um morro de escória nos arrabaldes de uma mina desactivada, ser apenas ele, o Buldogue. Os contornos eram bastante semelhantes aos que ele exibiria se alguém por insanidade momentânea se dispusesse a imaginá-lo deitado, e com a luz apagada não havia uma noção exacta de escala. Sobre a cama podia bem estar, portanto, apenas o Buldogue depois de ter atirado com tudo ao chão sem que lhe sobrasse energia para se despir. O que o Gafas e ele temiam era que houvesse ali alguma ilusão de óptica e o Buldogue se tivesse mesmo despido antes de aterrar, e por isso nenhum deles se atrevia a tocar-lhe para o acordar. Havia limites para o nojo que estavam dispostos a aguentar, mesmo naquela época.

Meia hora antes, Daniel tinha arrancado o Gafas da discoteca para o obrigar a cumprirem a promessa de se juntarem ao Buldogue numa pescaria. Não se interessava nada pela pesca e a «promessa» fora apenas uma piada, mas a noite na discoteca estava terminada, o DJ já pusera a tocar o remix de encerramento e Daniel agarrar-se-ia a qualquer esperança de continuar nos copos depois de saírem dali. De modo que atravessaram às escuras a propriedade dos pais do Buldogue, fazendo slalom entre alfaias e detritos, até chegarem à casa, uma antiga pensão que depois do último hóspede, décadas antes, nunca mais vira uma demão de tinta e, em certos aposentos, nunca mais vira uma vassoura. A porta da rua estava apenas encostada, como era frequente na época, e logo depois virava-se à direita para um corredor com muitas portas, por trás das quais dormia um rebanho de irmãos e irmãs e os velhotes do Buldogue. Daniel e o Gafas, caminhando às apalpadelas, tinham uma vaga ideia de qual era o quarto, mas não podiam estar cem por cento seguros. O risco de entrarem nos aposentos do casal ou, pior, no quarto de uma das irmãs, era grande, ainda que as consequências estivessem longe de ser graves da maneira como hoje seriam. O pior que lhes poderia acontecer era levarem um tiro, mas se sobrevivessem dificilmente teriam a vida social ou a reputação arruinada.

A dupla podia ter-se limitado a esperar na rua, toda a gente sabia que os pescadores madrugavam, e o Buldogue, se tivesse mesmo decidido ir pescar no dia seguinte, levantar-se-ia, estremunhado e com os cabelos em pé, como se lhe tivessem aplicado a descarga eléctrica de um desfibrilador, mas cedo, com as galinhas. (Até literalmente: as aves de capoeira ali ignoravam o significado da designação porque eram socialmente conhecidas e passeavam-se na casa com natural liberdade, pondo ovos nos recantos e merda por todo o lado, facilitando a vida à dona da casa, que não tinha de andar muito para degolar um galináceo quando decidia que o almoço era frango. Por isso, e não por razões inquietantes, havia também manchas de sangue no chão do corredor.) No entanto, Daniel não queria correr o risco de deixar o Buldogue desistir do plano e insistira para que o acordassem. O fim de noite deles coincidia com o início de dia de um pescador, mas era preciso que o Buldogue não se esquecesse durante o sono que era um pescador.

O Gafas, de resto, aderira logo à ideia, mal continha o riso, tudo o que desejava era ver a cara de espanto do outro quando desse por eles no quarto. E quando isso aconteceu, houve um sobressalto no monte de escombros na cama, como a réplica forte de um sismo. Ou como se tivessem detonado uma carga de explosivos numa das galerias da mina, afinal ainda em actividade. Houve uns instantes de barafustação de um lado e risota abafada do outro. Houve uns sopapos moles quem nem o ar feriam. No fim, saíram dali em fila, nenhum perto de estar sóbrio, o Buldogue a praguejar, alguém a peidar-se num dos quartos. Enfiaram-se na carrinha de três lugares, Daniel resignando-se a ir no meio — no lugar da puta, dizia-se então —, uma cedência que não o incomodava, fazia-a sempre sem ganhar nada com isso e desta vez esperava-o um dia de farra. O céu clareava a oriente.

Habitualmente, Daniel pouco mais recordava do episódio do que isto. Havia ainda uma imagem vaga e ao mesmo tempo inverosímil do Buldogue, com as roupas de cangalheiro que usava em todas as circunstâncias, a olhar com paciência a bóia à espera que o peixe mordesse. Ele que nem na missa conseguia estar quieto e por isso nunca chegava realmente a entrar na igreja. Outra imagem, do Gafas dobrado a meio em gargalhadas — típica dele, aliás —, com os óculos na ponta do nariz, fazendo lembrar o Mortadela da dupla Mortadela & Salamão. E havia a memória de Daniel já entediado a teimar para irem mas era nadar um bocado e os outros, com vergonha de se despirem, a desviarem a conversa com uma fanfarronice qualquer. Ao final da tarde desse dia estavam de volta, e, quando Daniel recuperou a consciência, deu por si sentado na banheira a levar com a água quente do chuveiro na cabeça. Era a imagem simbólica de um born again, um cristão renascido a ser baptizado depois de se arrepender do pecado do alcoolismo. Só que ele não se arrependia de nada, muito menos daquilo de que não se lembrava. Também não se arrependia do pouco de que se lembrava. Estava apenas zonzo e um pouco indisposto, a tentar recompor-se para a noite.

O ponto forte da história, quando sentia vontade de a contar a amigos, era a lembrança de terem parado num snack-bar ao chegar às imediações da albufeira, um daqueles que abriam cedo para os pescadores, e de o Buldogue ter pedido, com jovialidade e alarido, chispe. Chispe de pequeno-almoço acompanhado de vinho tinto: era esta para Daniel a piada de toda a história, o insólito, a loucura resoluta do Buldogue, que divertia Daniel — e com que ele tinha contado para poder continuar a beber.

Mas agora Daniel tinha acordado com um peixe no tapete do quarto e uma memória fresca do que acontecera naquele snack-bar há trinta anos. Como se tivesse acontecido na madrugada do dia de hoje. Lembrava-se como não teria conseguido lembrar-se meros dez minutos depois da madrugada daquele dia.»

[Início de nada. Amarfanhar e encestar teatralmente no caixote dos papéis.] 

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Breve história do engajamento político na imprensa do meu tempo

Quando comecei a ler jornais, rapidamente me interessaram os colunistas que, tanto quanto podia na altura julgar, possuíam uma de duas virtudes (preferencialmente as duas): boa prosa (inteligente, imaginativa, irreverente, culta, elegante, capaz de ironia e humor) e pensamento acutilante (perspicaz, mas também independente, livre, imparcial).

À época governava Cavaco Silva e tinham surgido o Independente e a Kapa e foi maioritariamente nessa dupla impressa que julguei ter encontrado o que me interessava. Depois Paulo Portas escancarou as suas ambições políticas, Miguel Esteves Cardoso deixou de beber como antes (e continuou a escrever ainda bem mas sobre ninharias) e os caminhos que apontaram à imprensa foram entretanto mais ou menos tropeçados por outros artífices.

Veio o tempo em que comprava dois diários e dois semanários e lia regularmente certos escribas. Os governos tendiam agora a ser socialistas e alguns colunistas (cujos nomes me abstenho de dizer por embaraço) permaneciam contra, o que, em vez de um padrão caprichoso, parecia confirmar independência de espírito.

Surgem os blogues, com uma nova direita carregada de bibliografia selecta como antes a esquerda estivera carregada de Marx e seus exegetas, Bush filho invade o Iraque contra o mundo razoável e na imprensa alguns começam a cumprir o que uns quantos vinham candidamente defendendo: o esclarecimento das opções ideológicas. José Manuel Fernandes sai do armário, o arquitecto Saraiva regressa às cavernas.

Eis que Passos Coelho herda a alegre bancarrota de Sócrates (e a não menos impudica mas mais indultada crise internacional) e, como se diz hoje dos portugueses vacinados, quis mostrar-se o melhor aluno da Europa — no caso, o melhor aluno do neo-liberalismo ou capitalismo selvagem ou o que lhe quiserem chamar (que social-democracia não é de certeza) — e o que antes (não imediatamente antes, a bem dizer) parecia colunismo imparcial revelou-se então no seu esplendoroso envolvimento e activismo ideológico: aqueles colunistas pela primeira vez não eram contra.

Os armários (e as cavernas) abrem-se de par em par, e colunistas, bloggers e alguns escritores, legitimando-se e estimulando-se mutuamente, soltam o lastro, soltam a franga, recolhem âncoras e zarpam de melena ao vento, cavalgando a onda que lhes parece a onda certa da História, como se nos oceanos só houvesse tsunamis e a Lua não tivesse um papel nas marés. Dispensam já, embora digam o contrário, o teatro da objectividade, da imparcialidade, da justiça, porque a hora é de combate, de militância, de alistamento — de engajamento, essa prática outrora lastimável nos velhos intelectuais de esquerda. Põem-se activa ou passivamente do lado de Trumps e Bolsonaros e criticam Putin apenas para disfarçar o quanto são por ele fascinados. Para facilidade de leitura, se não estão no CM, juntam-se maioritariamente no Blasfémias e no Observador — e isso temos de lhe agradecer.

Mais erro, menos erro na cronologia, é esta a breve história do engajamento político na imprensa do meu tempo.

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Villa Juliana

 


«Quão frágeis e falíveis podem ser as percepções em que assenta a construção de uma identidade, a formação de um carácter? Ou: quão capaz é a memória dessas percepções de resistir ao confronto com outras percepções sobre os mesmos mitos ontológicos de origem?

Uma mulher regressa como hóspede num fim-de-semana de Inverno à casa onde viveu na adolescência, agora transformada em alojamento para turismo de montanha. Não é uma excursão nostálgica típica, mas, nas suas palavras, "um confronto em simultâneo inquietante e voluntário com o passado: ia ficar na Villa Juliana, a casa onde vivi até aos vinte anos, quando o meu pai era ali o médico da Companhia, antes de se tornar o assassino da minha mãe".

Um desconhecido chega a uma cidade ao acaso e conhece histórias e pessoas que o distraem das razões porque conduziu fortuitamente centenas de quilómetros para se transformar num anónimo. É o interlocutor perfeito para o recém-regressado herdeiro de um solar com maneiras e discurso excêntricos.

Num restaurante da serra sem outros clientes, dois homens convidam uma mulher para a sua mesa. Fecha-se o círculo.»

Villa Juliana
Rui Ângelo Araújo | 2021

Encomendas: edlinguamorta@gmail.com

domingo, 28 de novembro de 2021

Identidade

Estive uma hora e picos numa conversa onde a voz (o timbre, a pronúncia, a expressão) de um dos interlocutores me era profundamente familiar, mas não conseguia perceber porquê. Estudei o rosto da pessoa diversas vezes, todos os pormenores que a máscara e a boina deixavam ver dele, mas não encontrei ali nada de reconhecível. Estudei-lhe a compleição, e parecia apenas comum, anónima. De resto, ele tinha dito a certa altura que era (genericamente, percebo agora) de uma terra onde eu não conheço ninguém e pus ali de parte as inquirições mentais. Fiquei-me apenas pela ideia de que a voz (e a linguagem corporal, na verdade) me fazia lembrar alguém, de eras passadas da minha vida ou possivelmente da TV ou do cinema.

Depois das despedidas, já eu encerrara o assunto, um amigo que tinha estado em cogitações semelhantes mas a propósito do nome da pessoa, fez-me perguntas que levaram a associações e, em dois ou três passos como num silogismo, cheguei à conclusão: era o T. de S.!

Camuflados por máscaras, cãs e décadas, estivéramos longo tempo numa farsa mal ensaiada, a fingir que dizíamos coisas novas para o outro, com uma cortesia de estranhos, quando podíamos ter estado a perguntarmo-nos mutuamente pela vida e a família, a rirmo-nos outra vez do que já lá vai e a reconfirmar esta ou aquela recordação que se nos turvou ou se vai perdendo.

Teria isto acontecido sem máscaras, ou envelhecer é esta coisa, sermos portadores de uma voz que pertenceu a outra pessoa, podermos ser vistos pelos outros como alguém sem ligações ao indivíduo que fomos?

Pergunto-me se ele passou pela mesma dúvida ou se nunca a teve e sustentou a farsa por uma questão de urbanidade, de resposta proporcional à minha frieza misantropa ou snob. Ter-me-á reconhecido e achado afectado ou está agora a registar no seu diário frases ponderosas ou absurdas como as minhas sobre o passar do tempo e esta coisa estranha que é a vida e nós nela?

Caldeirada de cogumelos

Conversas sobre o assunto ou uma pesquisa na Internet revelam que os nomes dos cogumelos, além de múltiplos, são intermutáveis. O que num sítio é conhecido por frade, noutro é conhecido por tortulho, e o que eu conheço por tortulho conhecem outros como míscaro, que por sua vez era o meu tortulho. Percebo agora porque é que na minha família só se comiam frades e, mais raramente, tortulhos (dos nossos). Comia-se o que se conhecia directamente, por já alguém ter comido e sobrevivido para o testemunhar, não o que outros dissessem que era comestível. Porque sendo os nomes tão intermutáveis, a possibilidade de alguém estar a chamar um nome comestível a um cogumelo venenoso não era de excluir. Lá na aldeia havia quem comesse também sanchas e míscaros (que outros chamam de tortulhos) e tudo indica que sobreviviam, porque no dia seguinte víamo-los na rua. Por vezes eu e os meus irmãos apanhávamos o que conhecíamos por míscaros e sanchas (que nunca levávamos para casa) e dávamo-los a rapaziada em cujas casas sabíamos que se comiam míscaros e sanchas. Não me recordo que alguém no bairro tivesse morrido intoxicado pela nossa dádiva, mas é verdade que a medicina e os registos de óbitos não eram o que são hoje.
Pelo sim, pelo não, em minha casa a certa altura já só se comia frades. E cozinhados sempre de forma rigorosamente alquímica, com uma colher de prata dentro do tacho.

sábado, 27 de novembro de 2021

Romances imperfeitos

 


Está a começar a ver a luz do dia o meu Villa Juliana, numa edição da sempre generosa Língua Morta.

Terminado em Abril de 2019, é mais um dos meus romances imperfeitos, pistas para o que podiam ser e nunca serão, mas que (acredito nisso, senão não o editava) podem ainda assim proporcionar algum deleite estético a quem se dispuser a lê-los.

O romance divide-se em quatro livros, ou andamentos, ou capítulos, ou partes, nem sei bem, com certa autonomia entre si, mas que formam um todo com diferentes perspectivas e contributos para as histórias e a caracterização das personagens que as viveram. Foi feito a partir do prazer de narrar, do prazer da linguagem, do prazer de contar pequenos episódios e sondar as grandes histórias, do prazer ou do inelutável ímpeto de explorar a introspecção própria e a alheia.

Villa Juliana é o quarto na cronologia das edições e o quinto que escrevi. Permanecem inéditos o desditoso Aranda, sucessor do primogénito Hotel do Norte, e Salvar o Mundo, recém-nascido, com título ávido mas menor ambição do que a do apolíneo protagonista da Bíblia, cujo nascimento se celebra trocando prendas daqui a um mês. Por falar em prendas… façam o favor de oferecer este Villa Juliana apenas a quem mostre propensão para o ler.

Preâmbulo para uma conversa a propósito da exposição “48 HORAS”


«Quando gentilmente me convidaram para participar numa conversa à volta do tema desta exposição, o meu primeiro impulso foi declinar, gentilmente, o convite. Isto porque não sou especialista em nenhum dos tópicos da exposição: a raça maronesa, o transporte de mercadorias no século dezanove, a águas das Pedras ou mesmo as Termas das Pedras.

Contudo, deram-me três argumentos para aceitar o convite: nasci e cresci nas Pedras Salgadas, sou filho de um homem que dedicou a maior parte da sua vida àquela terra — e que hoje está de certa maneira ele próprio musealizado no Pedras Experience — e um dos romances que publiquei foi em parte construído a partir de memórias e experiências das Pedras Salgadas em três épocas distintas.

Aparentemente, isto qualifica-me para estar aqui hoje. Isto e talvez o facto de, durante as minhas primeiras duas décadas de vida, ter bebido tantos litros de água das Pedras que a partir de certa altura o meu organismo deixou de tolerar qualquer bebida com gás. Sou um pouco como o Obélix: caí em pequeno dentro do caldeirão mágico da água das Pedras e deixei por isso de ter direito a bebê-la. Infelizmente, tal incidente não me deu forças sobre-humanas como ao Obélix.

Depois de aceitar o convite, pensei um pouco no tema da exposição, nesta viagem de 48 horas entre Pedras Salgadas e a Régua, e a primeira imagem que me veio à memória foi precisamente de quadrúpedes, mas de uma outra espécie animal. Nem foi bem uma imagem, mas toda uma experiência sinestésica, que incluiu visão, cheiro e, antes de tudo, som. Essa memória evocou, não o gado maronês, mas cavalos. Cavalos que faziam a mesma viagem entre a Régua e as Pedras, só que em vez de puxarem carroças tinham o privilégio de viajar de comboio. (Comboio esse, já agora, movido a cavalos-vapor, num comboio ainda a vapor.)

A lembrança que mencionei retrata um momento especial de cada ano na história de Pedras Salgadas: a temporada do Concurso Hípico, um dos muitos elementos que singularizavam aquele lugar no Verão. Os cavalos que participariam nas provas, tantos deles das forças armadas, chegavam às Pedras na sua maioria de comboio e faziam o último troço do percurso, a partir da estação, pela estrada de paralelos que passava em frente à casa onde cresci. Quando as crianças do bairro começavam a ouvir ao longe o som dos cascos ou das ferraduras no granito da calçada, ninguém as podia deter, saíam todas para a rua a ver passar o desfile. Durante largos minutos, passavam, levados pela arreata, algumas dezenas de cavalos, mais altos, esbeltos e briosos do que os animais que estávamos acostumados a ver. Largavam poios como o gado que diariamente usava aquela estrada (daí o cheiro na memória), mas até a fragrância desses poios era ou parecia-nos diferente de tudo o que estávamos habituados a cheirar. Quando aquele festival dos sentidos (visão, som e cheiro) regressava para um desfile na direcção oposta, depois de terminados os dias do Concurso Hípico, uma pequena melancolia toldava o fascínio com que saíamos à rua outra vez.

E isto, esta melancolia, remete-me para a mística nostálgica de Pedras Salgadas. Talvez todas as terras tenham os seus mitos, as suas velhas glórias, mas nem todas serão territórios de fronteira, ou melhor, pontes entre diferentes mundos sociais e diferentes tempos históricos, como as minhas Pedras Salgadas foram e continuam a ser. Naquela aldeia, hoje vila, vivíamos nos anos setenta e oitenta do século XX numa espécie de portal onde o espaço-tempo se baralhava. Era um mundo rural em volta de um território murado (o Parque das Termas) onde no Verão se respirava urbanidade, trazida pelos hóspedes dos hotéis, oriundos sobretudo de famílias da burguesia do Porto. Em simultâneo, pairava em permanência sobre aquela terra a memória do período áureo da «mais bela estância termal portuguesa», como era chamada nas primeiras décadas do século XX, quando era visitada também pela aristocracia.

A existência nas Pedras, sobretudo económica, era definida em função das suas termas, e por isso as sagas familiares eram (e são) também marcadas pela memória das Termas. As famílias que ali moravam, as sucessivas gerações, na sua maioria serviam a Empresa das Águas e as Termas, nas mais diferentes profissões. Daí que, àquilo que testemunhávamos com os nossos olhos, estivéssemos sempre a adicionar as histórias e as memórias dos mais velhos. Não tinham sido vidas fáceis, as deles, mas o glamour do Parque e dos seus hotéis de certa maneira amenizava o esforço de quem muito trabalhara para pouco ter. E o convívio de perto com figuras que pareciam saídas de romances ou filmes trazia, sobretudo a posteriori, uma pequena recompensa que se somava ao salário ou à reforma. A dureza dos tempos era de certa forma relegada pelas histórias das Termas e das Águas de que cada um se fazia contador.

A singularidade das Pedras Salgadas teve um outro momento especial no pós 25 de Abril, quando uma vaga de cosmopolitismo cobriu a povoação. Como em vários outros locais do país, os hotéis das Termas foram requisitados para acolher pessoas vindas das ex-colónias, aqueles a quem na altura se chamou «retornados». Durante esse período, mais uma vez o território rural das aldeias em volta dos muros do Parque foi posto em contacto com um universo social novo, mais exótico, que lentamente se entronizou, acrescentando mundo à sociedade local.

Foram estas distintas épocas e dinâmicas sociais que procurei retratar no romance Hotel do Norte, que foi buscar o título ao nome de uns dos hotéis que existiam nas Termas de Pedras Salgadas, entretanto demolido. No romance, como na vida real, as Termas são uma fonte permanente de mistério e investigação histórica, uma fonte de arqueologia. Quem habita ou habitou naquela terra está ou esteve imerso em história e arqueologia. Até no sentido técnico do termo, porque, a partir de certa altura, com a decadência do turismo termal e o desinteresse das sucessivas empresas concessionárias, vários edifícios e espaços das Termas ficaram acessíveis à visita e ao saque de quem por ali vivia. Inúmeras das minhas memórias e fantasias de criança têm como origem espaços e objectos concretos das Termas, retirados das suas sobrepostas camadas geológicas. Cada um dos habitantes das Pedras tem dentro de si (e alguns dentro das suas casas) o seu próprio museu, o seu próprio Pedras Experience, repleto de objectos e memorabilia.

Ainda hoje, quando visito as Pedras, visito não apenas a família (quase toda ela ligada à empresa das Águas), mas aquele mundo híbrido, composto, que continua a concentrar em si, nos vestígios que ainda restam, uma multiplicidade de tempos históricos e vivências sociais. Há, de resto, um turismo de nostalgia à volta das Pedras Salgadas, não totalmente aproveitado. Quando as empresas que vão explorando o filão da água procedem à demolição de edifícios, estão a destruir e a desbaratar um património. Todos gostavam que o turismo fosse ali plenamente reabilitado, para felicidade e benefício económico geral, mas é para mim um erro que isso se faça terraplanando o que existe, mesmo que se construam no seu lugar maravilhas. Na ausência de recuperação, os edifícios deviam pelo menos ser consolidados e mantidos como testemunhos observáveis de uma era. Roma não seria Roma sem as suas ruínas.

Termino esta evocação, mas não sem fazer uma referência à raça maronesa, que também marcou a minha época de formação nas Pedras Salgadas. A minha casa ficava entre o Parque das Termas e a casa de um lavrador. De um lado, eu tinha a sofisticação e o ócio do universo balnear; do outro, a dureza e a força telúrica do mundo rural. De um lado, citando um dos textos disponíveis na exposição, estava a obra de «homens de espírito empreendedor, de largas vistas e grandes aspirações» e, do outro, espécimes da «raça maronesa, exemplo de rusticidade, resiliência e mansidão». Essas duas influências construíram também a minha identidade cultural. Em certos dias, as minhas aventuras levavam-me a descobrir os segredos do Parque; noutros, montava em carros puxados por juntas de bois iguais aos que se vêm nas fotos da exposição — e que chiavam estridentemente na subida para o combarro onde se descarregava o milho. Houve dias ainda, há que lembrá-lo também, que apanhei bosta fresca daquelas vacas maronesas para isolar a porta do forno onde a vizinha cozia pão. E posso dizer, em abono da raça, que as broas saíam saborosas.»

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Preâmbulo para uma conversa a propósito da exposição “48 HORAS”, que documenta o transporte da água das Pedras, em carros de bois, até à estação de comboios do Peso da Régua, no final do século XIX e principio do século XX. Organização: Museu Pedras Experience | Projecto Terra Maronesa.

Galeria de Artes do Auditório Municipal do Peso da Régua, 26/11/2021



segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Alucinação outonal

Regressando de uma caminhada outonal, resolvo, imprudentemente, atravessar a cidade para ir comprar uns víveres antes de subir ao castelo. Cruzo-me aqui e ali com pares ou pequenos bandos de seres meio cambaleantes, maltrapilhos, cabelos escorridos, roupas molhadas, cheiro intenso. Mudo de passeio. E logo a seguir mudo de rua, quando vejo ao fundo um bando maior. Intuindo de onde vêm, recalculo o trajecto, como um GPS antigo quando lhe trocamos as voltas. Mas não adianta mudar o percurso, não param de vir, por todos os lados, e penso num ataque de zombies.
Ao chegar ao centro, a que faço uma tangente arriscada para não ter de dar uma volta ainda maior, vejo no meio da praça o grosso da seita, dezenas de espécimes muito juntinhos, aos pulinhos, como a “ninhada” num qualquer filme de série Z, entoando mantras. Quando lhes passo à ilharga, como que obedecendo a uma ordem mental do titereiro que os comanda e que me deve ter cheirado, uma ala inteira deles, cor uniforme, começa a descer na minha direcção, qual claque saltitante e urrante pastoreada pela polícia em dia de derby. Num primeiro momento fico apenas fascinado com aquela mole que vive e age em uníssono, como se partilhasse o mesmo cérebro. Depois, ainda dentro do meu filme de zombies, penso que, ao avançarem tão juntinhos, só me facilitam a vida e dispensam a mira — assim me tivesse lembrado de trazer a HK21 e duas ou três fitas de munições.
Continuo para o supermercado pensando que é melhor que na caixa não impliquem comigo por levar a fruta sem sacos de plástico.
Quando finalmente saio do transe, reconheço naquelas figuras que vagueiam e agora ultrapasso estudantes a regressar da latada. Alguns levam, não o ar ufano de quem venceu uma prova de iniciação, mas o ar indiferente ou entediado de quem cumpriu uma tarefa burocrática.

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Against All Odds

Formam um par e andam comigo há uns bons vinte e cinco anos. Juntos, somos uma fidelíssima trindade, um threesome bem aconchegado nas noites de Inverno. Hoje uma perdeu-se no caminho de ida. Só dei pela sua falta quando me preparava para regressar, horas mais tarde.
Pressenti a mágoa da perda, mas não perdi logo a esperança. Era agora de noite e era remota a hipótese de não ter sido entretanto tomada por ninguém, remota a hipótese de ter conseguido esconder-se de forma suficientemente eficaz para que a não agarrassem e fizessem sabe-se lá o quê com ela ou não a deitassem numa valeta por a acharem sem préstimo. Ainda assim, retrocedi sobre cada um dos meus passos o melhor que pude e me lembrava, de candeia na mão nua a iluminar o caminho. Quase no fim do trajecto, ou seja, quase no início do trajecto, lá estava ela, caída e espezinhada numa rua de muito movimento, com marcas de lhe terem passado com o carro por cima — mas viva. Julgo que levantou um dedito quando eu hesitava quanto ao lugar onde tinha atravessado a rua e por isso a vi.
Vinte e cinco anos depois, o par não se desfez senão por umas horas e continuamos por isso a ser um triângulo amoroso, as minhas luvas e eu. As minhas duas luvas e eu. Sem sentimentos de traição, ciúme ou amor não correspondido — e, contra todas as probabilidades, sem a mágoa da perda. Não vale a pena invocar Phil Collins, afinal.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Memorabilia

Da revista Bravo, escrita numa língua que não entendíamos mas que ilustrava algo que intuíamos, com o cheiro singular das páginas da revista Bravo, tipograficamente diferente do cheiro de tudo o que se imprimia em Portugal, respeitável ou furtivo, um poster dos U2 antes da queda, outro dos Bon Jovi (para haver nisto alguma coisa de que ter vergonha), um fio de utilidade esquecida pendurado de um prego, adereço esquecido ou falhado, por baixo uma cama de ferro e outra de madeira, duas camas desirmanadas que ainda há pouco eram duas camas para quatro irmãos, uma cabeceira de cama onde bem se vê que faltam barras verticais de ferro por onde se escapa a imaginação, uma parede que é um palimpsesto familiar, tribal, estratos geológicos de tinta e eras descascando, um quadro sobrante de outra geração com uma nesga de mar vista através das dunas (rimando com GNR, 1985, e férias em Setembro sem dinheiro), uma paisagem nevada da Suíça que não se vê na imagem como tantas outras coisas que não se vêem na imagem e no entanto estão lá, um verde-escuro na parede a escurecer inapelável e redundantemente com manchas da humidade e do tempo, uma coberta de cama florida que ainda aguentará uns Invernos a inteiriçar-se com a geada que entra pelas frinchas sem perder pétalas, uma fronha de almofada que irá na bagagem das primeiras mudanças (e duas fronhas das outras, que, miseráveis, nos largarão na primeira oportunidade), entre as camas uma mesinha de cabeceira e sobre ela um leitor de cassetes, uma cassete com os nossos primeiros sucessos e um livro, quem diria, sobre a barra do fundo da cama de madeira todo o guarda-roupa de um dos dois (travel light), as camas e os pés que marcam o ritmo assentes num soalho ventilado, nós da madeira já sem nós, buracos por onde espreitam da cave, boquiabertos (de pasmo, de fome, de raiva), os futuros brilhantes por consumar, duas guitarras, emprestadas, pois claro, por mecenas generosos, em que, com a ânsia de começar e de chegar, perdemos a pele dos dedos e deixámos marcas de sangue, duas guitarras onde rigorosos trabalhos arqueológicos ou de medicina-legal também encontrarão suor e lágrimas, suor e lágrimas e tudo isto e nós os dois, espelhados, a olhar o destino de frente ou a enfrentá-lo de olhos fechados, tu e eu, penteados e tudo no ponto — a ensaiar para o Live Aid.



segunda-feira, 8 de novembro de 2021

"Olhò Toino Escadeirado"

Liguei a televisão para ver a final do English Open entre John Higgins e Neil Robertson e durante a sessão passei pelos canais da RTP. No primeiro, num programa chamado “O Pimba É Nosso”, Quim Barreiros e uma senhora cujo nome não fixei discordavam sobre a possibilidade de trocarem mutuamente de gaitas. No segundo, num festival chamado FNAC Live Lisboa 2021, tocava um grupo cuja estética visual e musical me fez recordar gloriosos bailes no pós-25 de Abril com grupos como o 25.ª Hora. Ainda fiquei à espera de ouvir a então omnipresente “Nho Antone Escaderode” que a todos soava como “Olhò Toino Escadeirado”, mas o programa, ainda que a noite da RTP parecesse uma viagem no tempo e uma visita à barraca das cassetes de feira, não aceitava discos pedidos telepaticamente, e por isso, depois de ver como a classe média urbana do século XXI se encontrou com os foliões de um Carnaval de sociedade recreativa dos anos setenta, numa espécie de vitória de Pirro do proletariado, lá me resignei a ir ver como Higgins perdia.

domingo, 7 de novembro de 2021

O casaco de angorá

Todos os parques que se prezem têm figuras mitológicas. Aquele que atravesso para ir trabalhar ou quando resolvo correr junto ao rio também as tem e uma delas está viva, cruzamo-nos com certa frequência, até já a mencionei em dois ou três destes textinhos. Faz-se geralmente acompanhar de um aparelho de música dentro de um saco de plástico que debita êxitos melancólicos dos setenta e oitenta ou, talvez quando o humor está mais espevitado, música de baile brejeira. O volume também varia com os dias ou os humores, por vezes elevado a uma agressividade punk que não tem correspondência no rosto do portador. Hoje estava baixinho, surpreendentemente baixinho, e não foi a primeira coisa em que reparei.
Olhava um casaco à minha frente que, sendo mais rosa do que púrpura, ainda assim me fez pensar no casaco de angorá de Agnes, a mãe alcoólica de Shuggie Bain, protagonista do livro homónimo de Douglas Stuart sobre uma infância dura em Glasgow. Uma cabeça miúda encostava-se ao ombro daquele casaco e o par ia de mãos dadas, carinhosamente. Foi quando os ultrapassei que ouvi a música e vi o saco.
Era uma imagem inesperada, o habitante solitário e melancólico do parque — talvez, como Shuggie, vítima de bullying na infância, se já tinha então aqueles modos tímidos e invulgares — de mão dada com uma mulher vestida de angorá. A literatura a irromper pela vida real.
A mulher não tinha idade para ser mãe do homem da música e não tinha ar de alcoólica, mas a ternura recíproca surgiu-me ali surpreendente e redentora (e efémera) como em certas passagens de Shuggie Bain.

sábado, 6 de novembro de 2021

Anjos nada tronchos

Vejo alguns vídeos do novo disco de Caetano Veloso e ocorre-me que há neles uma certa afinidade com vídeos dos dois últimos álbuns de David Bowie, The Next Day e Blackstar. Não me tomem por agoirento ou mórbido, não falo de pressentimentos ou presságios. O que eu vejo, pelo contrário, é dois génios a quem a idade ou a fragilidade não impedem o ímpeto criativo e inovador, não impedem, enfim, a criação de obras geniais. Dois génios que também não temem expor as marcas do tempo ou da fragilidade, no rosto ou na voz ou nos gestos dos videoclips, antes os adicionam ao material com que moldam a obra, como o elemento que ali se ajusta para conseguir uma nova e bela harmonia na soma das partes. Génios que não se limitam a viver o seu tempo e os tempos, mas antes marcam o tempo, com a forma como absorvem e fundem influências e digerem o zeitgeist, sintetizando algo novo e contundente.
Os discos de David Bowie soam noir e a espaços o de Caetano também, mas, sendo brasileiro, ele encontra sempre lugar para o samba, mesmo numa música como “Anjos Tronchos” (nem que seja por dois ou três preciosos e significativos segundos — aos 2´57´´).

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

A careta de Evelyn Waugh

Kingsley Amis não desiludiu: A Sorte de Jim é a sátira hilariante que esperava. As últimas 20 ou 30 páginas são magistrais. Senti-me particularmente redimido quando o protagonista — que adopta ao longo do livro, de acordo com as situações, uma vasta colecção de esgares e expressões burlescas — ensaia «a sua careta de Evelyn Waugh». Kingsley Amis a usar Evelyn Waugh como careta é simplesmente perfeito. A mera evocação até me faz suportar a musiqueta que, vinda em ondas de algum bailarico de finados, me tenta agredir os ouvidos através da janela, como os pássaros de Hitchcock.

Problemas do teatro em Portugal

Raramente falo aqui de assuntos da minha área profissional, mas desta vez reincido, por mera irritação. O encenador Jorge Silva Melo (que também aprecio, já agora) tem-se queixado com frequência das curtas digressões dos espectáculos em Portugal, e isso é triste, de facto. Mas o lamento vem de quem em simultâneo assinala que, de Agosto até à data, andou por onze teatros (onze!). Não é assim tão pouco, acreditem. Talvez por isso o foco desse post do encenador, que podia apenas ter celebrado o feito, se virasse para outra questão: a magna desfaçatez de «apenas» quatro directores (que identifica) desses onze teatros terem ido falar com a companhia (ou com ele, não sei bem). «Vergonha», «falta de respeito» foram os expectáveis (e talvez esperados) comentários ao post.

Ora, eu pensava que o respeito se manifestava de muitas maneiras possíveis e que as hierarquias e embaixadas diplomáticas se reservavam para rituais protocolares. Há alguma falta de dignidade em ser uma companhia acolhida por empenhados técnicos e produtores — e pelo público de uma cidade? Está o director de um teatro, para além das suas específicas funções profissionais, imbuído de alguma dignidade que os seus colegas na equipa não tenham?

Já lá vai o tempo em que a chegada à província de uma companhia ou de uma diva de Lisboa era acolhida pelas autoridades civis, eclesiásticas e a fanfarra dos bombeiros, se não houvesse regimento militar nas proximidades. Os verdadeiros problemas do teatro em Portugal são mais prosaicos e contemporâneos.

domingo, 31 de outubro de 2021

«Por onde andará a jovem literatura portuguesa?»

Rentes de Carvalho perguntava há dias no seu blogue (sim, ainda o espreito de tempos a tempos, como certos católicos vão à igreja, já não porque acreditem em milagres ou apreciem o consolo da tradição, mas porque ainda sentem o dever da penitência), Rentes de Carvalho, dizia, perguntava há dias no seu blogue «por onde andará a jovem literatura portuguesa? Porque não há por aí explosões de talento literário?». A pergunta é retórica, claro, doutrinária, idiossincrática, e por isso se apressa a responder a si mesma. Se fosse genuína, poderia responder-se-lhe, por exemplo, com um livro de Frederico Pedreira e outro de Manuel Bivar. Com A Lição do Sonâmbulo poderia tentar referir-se o maravilhamento da toada, sugerir como o ritmo, o timbre, a estrutura, a harmonia, a forma da linguagem ao serviço da evocação da memória podem ainda, cem anos depois de Proust (milhares depois de Homero), e com materiais comuns, combinar-se e produzir novas melodias que nos fascinam como a sonata de Vinteuil fascinava Swann. Com A Charca, por outro lado, poderíamos falar verdadeiramente de explosões, não apenas de talento literário mas também de percepção, da inquietante lucidez de um olhar a partir do mundo rural (mas profundamente contemporâneo e urbano) que, aliás, até se encontra em vários pontos com a visão desassombrada e desromantizada de Trás-os-Montes do próprio Rentes de Carvalho, mas que questiona mais agudamente o mundo do que as pregações de cartilha do Tempo Contado.



sábado, 30 de outubro de 2021

«O tempo da tirania dos programadores»

A meio de uma conversa com interesse para quem tem curiosidade pelo mundo das artes performativas em Portugal o coreógrafo Paulo Ribeiro, que aprecio, disse uma frase que o JN, não escapando ao zeitgeist, usou como título da entrevista: «Vivemos o tempo da tirania dos programadores». A dramatização excessiva do tópico, o impulso para criar um sound bite, é, portanto, do jornal. Imagino que a expressão não pretendesse lançar um anátema sobre todo um conjunto de pessoas com circunstâncias, trabalho e sensibilidades diferentes, mas a frase feita título junta-se a outras afirmações igualmente negligentes que a espaços são proferidas na esfera pública, como aquela de igual teor que num célebre programa de televisão a meio do ano passado uniu figuras tão improváveis como Maria do Céu Guerra e Álvaro Covões, com a aparente aquiescência de Graça Fonseca. Merece por isso uma reflexão.

Lê-se na entrevista que os programadores, quiçá «insensíveis», são uns tiranos porque na sua maioria «não respondem», deixam que as ideias se vão «desmembrando na sucessão dos pequenos poderes» (de que vivem reféns, pode presumir-se) e «cometem o erro da voragem» da descoberta de novos talentos. É curioso que em geral os novos talentos, quando têm a sorte de ser entrevistados, se queixam da escassez de oportunidades — e é com estas e outras peças que um programador tenta quotidianamente montar um puzzle. Porque um programador, quando empenhado no seu ofício, tende a ser um laborioso montador de puzzles, de quebra-cabeças constituídos por peças abundantes e multiformes, irrequietas, nem sempre facilmente discerníveis e que não raro se atraem e repelem de moto próprio.

De acordo com um texto da Espaço Público, associação profissional de programadores, o programador cultural é um «mediador» que trabalha «no cruzamento das esferas cultural, social, estético-criativa, comunicacional, económica e política» e opera a dois níveis ou assume duas funções: «como canal entre o campo da produção artística e o da recepção cultural (os públicos) e como facilitador ou intérprete nas relações entre as comunidades artísticas e as entidades tutelares dos espaços ou projectos».

Na verdade, a minha opinião é que um programador é alguém sobretudo condenado à frustração. Não é um frustrado, como na literatura se diz sarcasticamente que um crítico é um escritor frustrado. Alguns programadores desenvolveram em algum momento eles próprios experiências criativas ou artísticas, mas a sua frustração não vem projectada de um putativo fracasso dessas experiências. A frustração vem da inerente, inexorável, inevitável incapacidade de se dar por satisfeito e de satisfazer plenamente os outros com o seu trabalho. Não é apenas a impossibilidade notória de fazer a quadratura do círculo quanto a acolher os interesses dos diferentes artistas e públicos, é sobretudo a frustração, mais dolorosa, de não ter recursos, calendário e por vezes público suficientes para produzir um ciclo de programação capaz de reunir todas as ideias e propostas que a dado momento transbordam da sua carteira de projectos a considerar.

É que, independentemente do que pensa o país mediático e o público absentista, e do que pensam os criadores uns dos outros, Portugal (que também tem muitas estruturas de criação supérfluas ou medíocres e quem exija veementemente um lugar para elas), Portugal tem nas mais diversas áreas artísticas uma boa quantidade de criadores de talento e com projectos merecedores de palco — mas não há um único espaço de programação que seja capaz de apresentar todas as propostas merecedoras dele. Quando alguém se queixa de que os programadores «não respondem», esquece-se certamente desta realidade e do esforço desmesurado que é exigido a um programador para corresponder a todas as solicitações.

Programar é, é claro, seleccionar, mas é também, portanto, ter de lidar com a mágoa de deixar de fora. Programar é mais sobre incluir do que excluir — a exclusão não é algo a que um programador se dedique, muito menos por sadismo, travessura ou tédio. Um programador, quando entusiasmado com a função, não ocupa o seu insuficiente tempo a decidir quem fica de fora, mas (com uma alegria que não afasta a insatisfação e a tristeza pelo que se perde) a escolher (nas circunstâncias e com os meios que são os seus) quem entra. E o contentamento pelo que consegue incluir no programa é breve, porque logo regressa a melancolia de saber que o seu é um trabalho de Sísifo e que nem sequer consegue rolar o raio da pedra até meio da encosta.

Dada a aparente impossibilidade de os programadores deixarem de parecer «tiranos» aos olhos de quem não é programado — aos olhos de quem, no seu próprio momento de frustração, é por vezes incapaz de uma visão holística do panorama artístico —, o que fazer? Derrubar o «tirano»? É uma hipótese que perversamente me atrai, devo dizer. Mas parece pouco sensata. De uma forma ou outra, a polis há-de seleccionar, escolher. Não o fazer, é entregar ao acaso as decisões, ou, coisa ainda mais arriscada, é entregar as decisões a outras formas de tirania, porventura mais viciosas ou ainda mais exclusivas, menos preocupadas em garantir possibilidades de escolha ao público. A busca do graal da imparcialidade (que no fim da jornada resulta, na verdade, no acriticismo e na aleatoriedade) seria talvez obtida substituindo-se nos espaços culturais a figura do programador pela do recepcionista, um digno amanuense como os que, nos consultórios, atendem os telefones e respondem aos e-mails, preenchendo os buracos da agenda por ordem de chegada dos pedidos de marcação. Claro que desta forma, como sabe quem passa pela experiência de marcar consultas no SNS, cada artista, como cada cidadão, arriscar-se-ia igualmente a ter de esperar meses ou anos pela sua vez de ser atendido — e em geral sem a alternativa de um sector privado. E a quem atribuir nessa altura culpas pelo infortúnio? Ao amanuense? Ao sistema? À vida, talvez.

Abdicar tão-só da mediação, como descobrimos dolorosamente com a desvalorização do papel da imprensa no mundo actual, não é a fórmula mágica que cria mais espaço para a qualidade.


P.S.: Sei que outros experimentam sentimento idêntico, mas este não é um texto corporativo, apenas a expressão, de resto desnecessária e vã, de um homem e as suas circunstâncias.

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A entrevista do JN:
https://www.jn.pt/artes/paulo-ribeiro-vivemos-o-tempo-da-tirania-dos-programadores-14220416.html?fbclid=IwAR2FCzVCPfwPqTpLcPeXJ0nIPstWXb56rG4vn3HMRKCYcJQnUR6Aoc_elkM

domingo, 24 de outubro de 2021

The (night) swimmer

Para evitar as penosas subidas no regresso, não fui correr à beira-rio. A opção de andar às voltas no jardim público como cão atrás da cauda também tinha de ser descartada, o sítio agora fecha cedo. Lembrei-me do nadador de John Cheever e pus-me a planear uma travessia da cidade, não pelas piscinas da vizinhança, mas por jardins, pracetas e ruas arborizadas. Quando nadei rente ao cemitério ouvi barulho e pensei em coisas do imaginário popular, almas penadas uivando, xácara das bruxas dançando. Mais adiante percebi que era mesmo música, da janela do coveiro saía o fraseado baloiçante e brejeiro de concertinas em neo-desgarrada, contributos televisivos para um imaginário popular de lantejoulas. 
Cambaleei de regresso para a minha decrépita, vazia e abandonada casa.

Sobre escutas

Quando vejo televisão de madrugada, uso frequentemente auscultadores — não quero que os vizinhos dêem pela minha existência e não confio nas paredes nem no chão. Por vezes uso-os mesmo que assista a uma eliminatória de snooker, esse desporto de hordas vociferantes.
Com o som canalizado directamente para as orelhas, é possível ouvir a plateia suspender a respiração em certas jogadas decisivas, instantes de apneia colectiva que duram o tempo da trajectória das bolas. Se estas falham o buraco, a respiração é retomada sob a forma de ohs expirados; se são embolsadas, a plateia usa as mãos como guelras e por alguns segundos respira no compasso minimal repetitivo e vibrante de um aplauso.
Esta forma de assistir aos jogos faz-nos também ouvir coisas inesperadas, sussurros de que não nos aperceberíamos vendo televisão como mortais comuns. Anteontem, decorria um jogo de quartos de final e os contendentes arrastavam-se em jogadas à defesa. Nos phones, entre intervenções do comentador, ouviam-se murmúrios e um deles soou distintamente: «Metam as bolas no cu, caralho. Vão-se embora». Assim mesmo, em português de lei. Reparei então que era um campeonato em Portugal, em Albufeira, e que, dependendo de qual o microfone que estava a captar os sussurros, ou os cameramen não recebiam pelas horas extra ou alguém na sala não era fã de snooker.

domingo, 10 de outubro de 2021

O tempo perdido com Brideshead

Parti para a leitura de Reviver o Passado em Brideshead munido de sólidos e auto-indulgentes preconceitos, como o mais banal dos estúpidos. Tinha de Evelyn Waugh e da sua literatura uma ideia vaga mas satisfeita, desengonçadamente construída de alusões respigadas em ocasionais artigos de jornal, recensões, resumos biográficos ou entrevistas a terceiros, e o único livro que tinha lido do autor (Corpos Vis) confirmara essa ideia, ou pelo menos contentara a sua fraca ambição, como quem julga saciar a fome por ter comido uma vez.

Mas na minha imagem de Brideshead reunia eu outros preconceitos: os referentes ao próprio livro, que imaginava — cumulativamente com ser um texto waughiano — uma Recherche com sotaque inglês.

Assim enchumaçado de ideias feitas, quando terminei de ler a obra, senti-me defraudado, defraudado em todos os meus preconceitos.

Se Reviver o Passado em Brideshead pretendia ser um Em Busca do Tempo Perdido com humor e fleuma, ou lhe faltavam volumes ou eu acabara de ler um resumo para totós, um sumário para leitores sem tempo (esses oximoros viventes), uma versão condensada numa edição da Selecções do Reader’s Digest

Por outro lado, era um resumo que interpretava de forma singular a sua missão selectiva, porque o que eu acabara de ler, além de ser uma coisa abreviada no geral, tinha pouca fleuma e carecia de humor em particular. Ou alguém «cancelara» no digest o estilo do autor ou Brideshead não era, afinal, um livro de Waugh.

Num primeiro retiro espiritual, reconhecendo a cada vergastada auto-infligida que vivia de ideias feitas, achei que a culpa era minha, que estava a reclamar como aquelas pessoas furibundas que não lêem os Termos & Condições e não sabem portanto que o produto de que se queixam é aquilo mesmo e não a ideia que tinham daquilo.
Depois saí do retiro, como quem sai de uma lagarada, a coçar os gémeos arroxeados, e praguejei, damn!, tem de haver mais alguma coisa. Lembrei-me então de um artigo sobre Evelyn Waugh que trazia aberto num separador do Chrome no telemóvel há meses, aguardando uma sala de espera onde o ler. Não esperei por uma sala e li-o ali mesmo de pé no subpalco onde fortuitamente estava (não escolhemos o local onde o destino nos apanha, venha ele sob a forma de farsa ou tragédia, mas no caso até parece).
O artigo era de Rogério Casanova e, sabendo-se que Casanova leu quase tudo o que a humanidade escreveu, a probabilidade de ele ter lido a obra toda de Evelyn e o que sobre ela se disse era grande. Haveria decerto no artigo uma pista sobre aquilo que me angustiava.

Encontrei várias:
«Muita da arte de Waugh é uma arte de lacunas (…)»
«Foi só quando estas lacunas começaram a ser preenchidas [leia-se, com Brideshead Revisited] que surgiram problemas.»
«Onde antes a calamidade era desfeita com frívolos eufemismos, é a frivolidade que agora desperta cadências épicas.»
«Alguém escreveu um dia que Pierre, de Herman Melville, era o pior romance jamais escrito por um autor de génio. Reviver o Passado em Brideshead será, pelo menos, um fortíssimo candidato a disputar a posição.»

O problema de Brideshead não é, claro, ficar aquém da torrente e minúcia proustianas; é, pelo contrário, ir além da forma lacunar de Waugh, perdendo no processo o que tornava a sua prosa especial, aquela «arte da crueldade» que está no título do artigo de Rogério Casanova.

Não tiro conforto de ver as minhas impressões legitimadas pela erudição de Casanova: preferia ter lido o artigo em tempo útil: ou seja, antes de ter pegado na obra mais injustamente famosa de Evelyn Waugh. E só não fico para aqui a lamentar o tempo perdido com o livro errado porque afinal ele fez-me ir ler finalmente o artigo de Casanova, e esse vale sem remorsos a pena.

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Encontram-no aqui: 

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Salvar a Europa. E o Mundo.

Com o blogue praticamente parado desde Abril, sinto o peso da responsabilidade na hora de tentar escrever um novo post — e por isso adio sempre esse momento. É um pouco como a humanidade reage a cada novo relatório sobre as alterações climáticas: compreende a responsabilidade que tem em mãos — e adia a década de fazer alguma coisa quanto ao assunto.

O parágrafo anterior forneceu-me em todo o caso o ânimo para arrancar finalmente com um post — e o enquadramento para falar do que na verdade queria falar no post que venho adiando. Que é sobre um livro que à sua maneira (sendo um romance) faz alertas como os cientistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), mas circunscrevendo-se à Europa e aos malefícios, não das inalações de tabaco, mas do turismo.

Grand Hotel Europa, do holandês residente em Itália Ilja Leonard Pfeijffer, é, como o próprio autor discretamente o apresenta num vídeo para os portugueses, um «grande romance sobre identidade europeia, nostalgia e turismo». Nas suas páginas lemos o que já sabíamos: que os europeus estão a esvaziar de habitantes e a destruir as suas cidades históricas, transformando-as em parques temáticos para turista, sobretudo chinês, ver. Contudo, ao contrário do que acontece com os relatórios do IPCC, não saímos deprimidos das páginas de Grand Hotel Europa, mas satisfeitos, divertidos — e, temo bem, cheios de vontade de nos juntarmos às hordas de vândalos que, visitando-o, destroem o velho e charmoso império europeu. Não houve um dia, nestes meses em que me tentei reconciliar com a vida recordando com prazer o livro, que não me dirigisse com nostalgia e bravura ao armário onde guardo os trolleys e as mochilas — infelizmente sem consequências, saindo dele a apertar de novo frouxamente o robe como uma personagem de Thomas Bernhard, sem que dessa visita ao centro doméstico de logística de viagem resultasse, enfim, um leve aumento da minha pegada ecológica e uns milímetros a mais no ritmo de submersão de Veneza.

No tempo que passou entretanto também queria falar de Grand Hotel Europa porque o narrador desse romance falhado como prevenção do turismo tem muita coisa em comum com o Lúcio do meu romance Os Idiotas: é sarcástico, cheio de si, auto-sabotador e romanticamente tonto como ele. Um é a decadência em pessoa, o outro esmera-se com extravagância no vestir (com alfinete na gravata que lhe circum-navega a barriga e tudo), mas há passagens inteiras de Grand Hotel Europa que poderiam ter sido escritas pelo mesmo tipo que escreveu Os Idiotas. E vice-versa. Com diferenças substanciais nos resultados financeiros, todavia.

Se ganhei uma grande simpatia pelo romance de Ilja Leonard Pfeijffer, ao ponto de vir aqui sugerir a sua leitura, não foi porque achasse que ele escreveu A Montanha Mágica do século XXI, mas porque senti, ainda assim, a alegria dupla de uma literatura contemporânea estimulante e divertida. E porque na altura em que o li também eu andava a escrever um romance com personagens tão conscientes do seu tempo (este) que queriam salvar coisas. No caso, o mundo. Salvar o Mundo. Nada mau como ambição, heim? Já tenho o título, só me falta publicar nos classificados o tradicional anúncio: «Cavalheiro bem-intencionado e sem preconceitos ou posses procura editor/a para relação temporária mas apaixonada de trabalho.»

segunda-feira, 26 de julho de 2021

O ténis como terapêutica efémera

Contra qualquer previsão que mentes sóbrias alguma vez pudessem levar a sério, subscrevi neste Julho a Sport TV. Sim, imaginem.
O que aconteceu foi que, assacado por males de corpo e espírito, receitei a mim mesmo o torneio de Wimbledon, que tanto quanto percebi só os canais daquela estação transmitiam.
Talvez tenha depositado esperanças, além de nos efeitos revitalizadores do fascínio desportivo, em memórias infantis e maternais de roupa branca a corar ao sol sobre a erva dos prados.
Depois reforcei a terapêutica e assisti também a jogos dos torneios de Hamburgo, Båstad, Gstaad e Umag (à sua maneira igualmente evocativos da infância, mas neste caso remetendo para imagens, menos angelicais, de calções sujos e peúgas empastadas de pó e suor).
Tudo em vão. Um tipo atinge uma espécie de equilíbrio homeopático enquanto a bola vai e vem, mas no final a vida real regressa e os vinte e cinco euros da assinatura não. Vou cancelá-la. A assinatura. 

terça-feira, 27 de abril de 2021

Escrever gato por lebre

Depois do dilema arquivológico que anteriormente referi, deparei-me com outro, ainda mais habitual: o de decidir a próxima leitura.
Há poucos dias tinha saído do meu exílio social e corrido para a livraria como bêbado para a taberna, tropeçando e tudo. Passei pelas prateleiras a espreitar o ano da colheita, a origem, a chancela, as castas, mas só por degustação visual, porque já levava decidida a lista de abastecimento. Quando fui pagar, bati com o monte de livros em cima do tampo como se pousasse assertivamente o último copo de uma série bebida à melhor de cinco, encostando-me ao balcão a olhar para o taberneiro, lânguido e (provisoriamente) satisfeito. Depois de terminar Välkommen till Amerika tinha portanto a garrafeira abastecida de tentações frescas e era difícil decidir por qual começar.

A escolha recaiu, na verdade, sobre uma aquisição um pouco anterior, porque resolvi continuar no universo de Linda Boström Knausgård (a electroconvulsoterapia interessa-me e suspeito que ando necessitado dela), para contrabalançar a leitura que trago a meio em paralelo. Ultimamente vou avançando sempre em dois livros, geralmente ficção e ensaio ou história, ou, se ambos ficção, de dois géneros diferentes — sou um leitor ecléctico, talvez também bipolar, e preciso em diferentes momentos do dia de livros distintos.

De resto, esta bipolaridade reflecte-se também no que escrevo, não só aqui no blogue — sobretudo no que escrevo fora do blogue. E reflecte-se de duas maneiras: no alento com que encaro o exercício da escrita (fatalmente denunciado pelo resultado do que escrevo) e no tipo de texto que me ponho a produzir.

Este post, por exemplo, surge porque, obrigado por contrato a escrever um livro* e de momento sem ânimo para o continuar a escrever, sinto a obrigação moral de teclar, se não inspirada e furiosamente, pelo menos a um ritmo que finja produtividade de amanuense, de dactilógrafo. Com esse objectivo de ludibriar a minha consciência, podia encher, digitando de olhos fechados para relaxar o espírito, páginas e páginas de uma sucessão aleatória, ilegível, de letras, ou, fingindo pesquisar ou citar, copiando passagens da Bíblia, mas dos textos originais, em aramaico ou lá o que é e sem espaços entre palavras nem pontuação como era prática à época, iludindo-me assim com a mancha de texto, a leitura do contador de caracteres, fingindo que o mero som de teclar é prova de entrega ao trabalho, é música literária tão válida como a das frases escritas com sentido e estilo. Fingindo em suma que cumpro a minha parte do contrato.

Não escolhi nenhuma das opções anteriores. Fiquei-me antes por esta espécie de escrita automática, sem norte nem préstimo — nem musa ou forças ocultas que me comandem lobo-antunianamente a mão —, que permite contudo que o meu eu mais corruptível venda a si mesmo a ilusão de um texto pensado, necessário, honesto. De resto, como os mais sagazes dos leitores e leitoras já perceberam, não é a primeira vez que se vende aqui ginástica de dedos a fingir trabalho intelectual. Gato por lebre.

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* O contrato não inclui edição, não temam.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

A eloquência das cores

Parece que o cravo branco do líder do CDS pretendia significar que «o 25 de Abril não se fez só para os vermelhos». Já o cravo preto do outro é eloquente por si mesmo, apesar dos eufemismos do portador: o preto é a cor de eleição dos fascistas desde a sua fundação em Itália.

domingo, 25 de abril de 2021

Dilemas morais que capturam uma mente contemporânea na hora de arrumar livros na estante

Lido com prazer e proveito o primeiro dos dois livros de Linda Boström Knausgård que encomendei* fui arrumá-lo na estante e as habituais hesitações arquivológicas foram agravadas por um dilema, digamos, ético.
O primeiro impulso foi juntar o livro aos volumes de Karl Ove Knausgård, com base em afinidades geográficas e de apelido. Achei desadequado, não tanto porque os Knausgård estão divorciados mas porque aquela arrumação poderia sugerir uma subordinação de uma a outro.
Com isto em mente, lembrei-me de o juntar aos de Siri Hustvedt, uma escritora que não usa o apelido do marido mas que foi durante muito tempo apresentada como «esposa de Paul Auster». Também não me agradou a ideia, porque seria reagir gregariamente, continuando a subordinar a individualidade e o mérito próprio da autora a questões exteriores à obra.
Tudo isto na verdade se passou numa fracção de segundo e foi insuficiente para vencer a inércia do gesto, que ia já a caminho de pousar o livro sobre o sexto volume de A Minha Luta e não se deteve.
Bem sei que ninguém das hostes siamesas do politicamente correcto e do politicamente incorrecto virá fiscalizar-me as estantes, mas não deixei de sentir algum alívio quando me apercebi que entre os Knausgård ficara afinal um outro nórdico, Knut Hamsun, cujo Fome tinha acabado de ler dias antes.

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* Bienvenidos a America, edição espanhola de Välkommen till Amerika

domingo, 18 de abril de 2021

O verdadeiro idiota útil

Lembram-se de João Lemos Esteves, o cronista do I e do Sol que tem dos textos mais hilariantes (involuntariamente) e mais sinistros na imprensa portuguesa? Esta investigação do Público é sobre esse lunático, mas também permite conhecer um pouco mais a extrema-direita e os populistas portugueses.

Lendo malucos como este percebemos que se certa imprensa os acolhe só pode ser, cínica e perversamente, com a dupla consciência de que são idiotas mas que são úteis a alguém. À direita anda muita gente a perder os escrúpulos, e isso talvez seja mais preocupante do que o Chega, que nunca os teve.

https://www.publico.pt/2021/04/18/politica/noticia/professor-universidade-lisboa-difama-inventa-teorias-conspiracao-1958783

sábado, 17 de abril de 2021

Zoo nocturno (2)

Ontem não havia ginetas no zoo, mas a certa altura uma rã (que parecia um bonsai de um animal, tão pequena que tive de pôr os óculos de leitura para me certificar de que não era uma pulga) saltou de alegria à minha frente. Bem, talvez não fosse uma rã aos pulos de alegria mas um sapo anão a fugir de pânico, não sou muito bom em taxonomia e a distinguir emoções. Mais tarde na jornada, à luz do último candeeiro da civilização, antes mesmo do coração das trevas, encontrei, acocoradas, duas jovens criaturas endémicas a dispor engenhosamente em fileiras, sobre uma superfície lisa, um pó branco, decerto para a última recreação do dia. Bem, talvez não fossem criaturas endémicas, mas espécimes exóticos fora do seu habitat natural (provenientes das ilhas britânicas, por exemplo; há-os por cá), e talvez o pó não fosse para recreação mas para adoçar o chá do desterro — não sou muito bom em taxonomia, como disse, nem em etologia.

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Zoo nocturno

Durante as minhas caminhadas no parque — que agora mais do que nunca são noctívagas e portanto distraídas da humanidade e desobrigadas das suas construções sociais —, reúno para um zoológico intransmissível, apanhando-os nas malhas da minha rede neuronal, espécimes de sapos, ouriços, salamandras, insectos, corujas (estas só de ouvido), caracóis, lesmas — e ocasionais adolescentes reunidos em volta de um cigarro de erva como hienas partilhando um cadáver, a mesma disposição para a gargalhada.

Não estava preparado para juntar uma nova espécie à colecção, mas ontem fi-lo com a volúpia de um Nabokov que apanhasse uma ninfeta na sua rede de borboletas. Não falo do casalinho sentado a desoras num banco de jardim, máscara cirúrgica afivelada como numa actualização irónica mas ainda casta de um namoro de sofá. Refiro-me a uma inesperada gineta, de cauda apropriadamente farfalhuda e anelada. Vi-a a seguir a uma curva do caminho e accionei o protocolo que tenho para ocasiões semelhantes: parar para ver, aproximar-me devagar para ver melhor. Pelo seu lado, a bicha fez o que os animais selvagens sempre fazem, indiferentes ao protocolo: escapuliu-se. Procurei-a depois no mato à beira do caminho, cândida e inutilmente. Na selva estaria morto, porque, diz a internet, deveria era ter olhado para os ramos por cima da cabeça.

sábado, 10 de abril de 2021

Homem versus máquina

Há dias disse aqui que um martelo pneumático que cumprisse determinadas condições podia subtrair-se ao estereótipo de máquina diabolicamente irritante e tornar-se capaz de embalar o trabalho de um escritor. Hoje um indivíduo no mesmo apartamento em obras, talvez para provar que a humanidade ainda suplanta as máquinas mesmo em tarefas sumamente rebarbativas e enervantes — e decerto para me interromper o labor literário —, pôs-se à varanda durante dez longos e penosos minutos, qual muezim electromecânico, a debitar para o seu telemóvel uma lengalenga obstinada de empreiteiro, com o timbre, o volume, a insistência e a circularidade, não de um martelo pneumático, mas de uma daquelas máquinas vibratórias que se usam para compactar estradas pavimentadas a paralelepípedos. Quando achei que, finalmente, estava concluída a arenga daquele altifalante reencarnado em empreiteiro (e bem assente a calçada de granito com que me recobriu o cérebro), os meus nervos foram de novo postos à prova com um aditamento. Suponho que lhe faltava berrar a inevitável relação de trabalhos a mais.

quinta-feira, 8 de abril de 2021

Pessoas que amam livros

Luís M. Jorge publica na última LER um conjunto de pequenos textos sobre «os seus leitores», «pessoas que amam livros» e que de alguma maneira lhe foram próximas. Um desses leitores é Vítor Rodrigues, que mantinha o blogue «Âncoras e Nefelibatas», entretanto encerrado.
Também eu fui leitor do «Âncoras e Nefelibatas» (ainda não apaguei o link ali na coluna do lado direito), blogue onde, entre outras coisas boas, se aprendia muito sobre história e literatura nórdicas. Num país onde a imprensa se interessasse por livros — ou, não se interessando, tivesse disso vergonha e procurasse pelo menos disfarçar — o Vítor Rodrigues seria um colaborador precioso. Se a ele isso lhe interessasse, claro.
Tenho felizmente a sorte de poder continuar a acompanhar o autor na sua página do Facebook.





terça-feira, 6 de abril de 2021

Friends

Como sabe quem acompanha esta página com a bonita intenção de devassar a minha privada, tenho mantido nos últimos anos alguns vícios pouco dignos de um escritor de gabarito. Não falo das madrugadas que perco a assistir a reposições de partidas de ténis ou snooker, que isso é coisa de homem, mas da tendência para ganhar afeição a canais no Youtube de pandilhas como Porta dos Fundos, Walk Off The Earth e Storror.

Um item que somei há pouco a este cabaz pubescente veio revelar um padrão que apenas tinha intuído. Falo da série Friends, de que vi, distraído, alguns episódios até me dar conta que estava na missão obstinada de ver por ordem todas as dez temporadas, à média de dois episódios por dia útil (tarefa para uns cinco ou seis meses).

Já escrevi aqui que uma das coisas que me fascinavam nos vídeos do Porta, WOTE e Storror, tanto quanto o humor, as qualidades artísticas ou as proezas atléticas, era a possibilidade de espreitar, ou especular, a partir dos making of, as interacções não encenadas dentro daqueles colectivos. Percebi agora que o que me atrai é talvez ver a amizade em funcionamento.

Um desses tipos a quem podemos arrendar regularmente o sofá por cinquenta ou sessenta euros à hora diagnosticar-me-ia, decerto, olhando a minha cara de poucos amigos, uma espécie de desvio voyeurista, uma «tendência patológica para ceder à curiosidade de observar dissimuladamente cenas íntimas de outras pessoas». Eu teria complexos em contradizê-lo. (E medo de que me cobrasse mais para me estimular a contradizê-lo sem complexos.)

Nunca tinha visto Friends, porque entre a tropa e a troika quase não tive televisão em casa. Não caí, portanto, por essa via do dejà vu, numa armadilha saudosista. Há a questão geracional, é certo, aquilo é rapaziada da minha idade, reconheço o meu antigo habitat em algumas peças do guarda-roupa, em opções capilares e em dramas de amadurecimento da mise-en-scène da série, mas ver Friends não é evocar uma fase antiga da vida — e se o fosse seria em muitos aspectos por contraste.

De todo o modo, a pista psicanalítica é sempre produtiva. Este gosto de assistir à amizade em funcionamento parece indiciar um processo inconsciente e asséptico de compensação. Dou-me conta que mantenho em relação aos meus amigos uma certa distância física e social. Não provocada pela pandemia, mas por esse outro vírus, mais antigo, que dá pelo nome de misantropia. A noite passada, por exemplo, esqueci-me de devolver a chamada, rara, de um (ainda) amigo — mas não falhei os episódios do dia.

Resta-me a esperança de que haja uma (re)aprendizagem a fazer com Friends, de que lá para a nona temporada já seja capaz, não só de devolver chamadas na vida real, mas também, ó audácia!, de combinar cafés.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

O som redentor do martelo pneumático

Quando, esquecido da inutilidade da empresa, dou a mim mesmo o encargo de escrever páginas para um livro, a ânsia por me abstrair do que me rodeia enquanto escrevo é tal que por vezes desespero se não o consigo.

Um dia de sol é um suplício, porque todos os meus sentidos anelam por sair para o ar livre. A chuva é por isso uma bênção, sinto que o mundo se recolhe dentro de si mesmo quando chove e o que sobra é uma paisagem vazia e silenciosa, propícia. O meu próprio espírito recolhe-se e o corpo conforma-se.

A noite avançada, antiquíssima e idêntica, é mais propícia para o vão acto de escrever, mas nem sempre temos o privilégio da noite ou de chegar a ela, às suas horas sossegadas, com a energia e a leveza de espírito necessárias. O dia é um privilégio quando podemos dispor dele inaugural, sem cronómetro, directa e frescamente saídos dos braços de Morfeu para a página ou ecrã brancos. Mas isso só nos é dado em férias, feriados ou sabáticas, e acaba muitas vezes por ser uma tortura, com todos os barulhinhos e estrondos que a humanidade faz a viver e a dizer que está viva.

Só recorro à música quando não consigo outra forma de ignorar a banda sonora da vida exterior. À música clássica, instrumental, entenda-se, porque todos os restantes géneros são caprichosos e exigem atenção, distraem, não têm a gentileza, o altruísmo de permitir a um espírito que se liberte. Mas mesmo uma sinfonia raramente é solução para mim que — talvez por ser tão propício a deixar fugir ideias e raciocínios, por vezes suspeitados, completos e profundos, num lampejo de intuição — preciso do cérebro todo e de todos os sentidos envolvidos na página, banal que seja.

Prefiro em geral o silêncio, como o monge que escuta a brisa à espera da voz de deus, temente, no meu caso, que em vez dela me chegue, como é habitual, a ninharia que tomei por vibrante ideia literária.

E contudo dei-me hoje conta que o barulho pode em determinadas circunstâncias fornecer a alienação necessária, se for um barulho contínuo, cíclico, repetitivo, vibratório, como o de uma cigarra, não demasiado próximo para se tornar incomodativo, mas suficientemente alto para se sobrepor aos ruídos da rua e da vida, do quotidiano humano que me distrai ou irrita. Dei-me conta que as obras num apartamento três pisos abaixo podem não ser o calvário que costumam ser se o martelo pneumático for relativamente delicado e o operador capaz de sustentar durante o seu turno sequências de uma geometria sonora rigorosa.

Quando acabarem as obras talvez experimente em horas desesperadas um transe de tambores africanos. Ou enfiar a cabeça num scanner de ressonância magnética, com o seu matraquear de antiaérea. (O que até poderia ser eficaz para explorar mais profundamente a psicologia das personagens.)

quarta-feira, 31 de março de 2021

Linda Boström Knausgård

Acabei há duas semanas de ler O Fim (sexto e último volume de A Minha Luta, de Karl Ove Knausgård) e de lá para cá andei mais ou menos obcecado em conseguir comprar alguns livros de Linda Boström Knausgård, a ex-mulher do autor e personagem central na obra (a seguir ao próprio Karl Ove).

Terminada a saga do escritor norueguês, senti uma certa desolação, como quando se acaba a tablete de chocolate. O meu sentimento geral em relação à obra não difere daquele que relatei brevemente em Abril de 2019 (link no rodapé), depois de ter lido o quinto volume, mas a verdade é que o desconforto de voyeur que ali refiro se retrai perante a escrita torrencial, magnética, de Knausgård e, suspeito, a identificação que provoca num leitor da mesma geração do autor, como eu.

Neste sexto volume, a relação de Knausgård com Linda, então ainda sua mulher, é a certa altura dominante e é esse tópico que encerra a obra. Parte do ali descrito foi também abordada em Verão, se não estou em erro, um dos quatro livros que o autor escreveu depois de A Minha Luta (e que estranhamente foram publicados em Portugal antes da tradução do volume 6).

Linda, enquanto personagem e enquanto mulher real, causa fascínio, ainda mais quando nos lembramos (e O Fim também ajuda nisso, diga-se) que ela mesma é escritora de mérito reconhecido. Com esta ideia na mente, fui procurar informação sobre os seus livros e acabei a ler entrevistas. Os dois escritores estão há uns anos divorciados (aconteceu já depois de O Fim) e há uma tentação grande por parte dos jornalistas de confrontar Linda com o que Karl Ove escreveu sobre ela e sobre a relação entre eles. Do mesmo modo, os livros de Linda — declarados como romances de inspiração autobiográfica — são inspeccionados à procura de passagens que desmintam Karl Ove. A autora insiste que os seus livros são romances e que não está interessada em mudar a história escrita pelo ex-marido. De resto, e isto é interessante, afirma que A Minha Luta também é ficção. Sabe, diz ela, que «está cheia de descrições cruéis e desnecessárias de pessoas reais», mas considera que «os livros são bons e influenciaram muita gente».

Perante isto, a minha obsessão por encontrar os livros de Linda Boström Knausgård em línguas para mim legíveis parece ânsia de fã de novelas. Em minha defesa, devo dizer que também eu senti, não que as descrições cruéis feitas por Karl Ove eram desnecessárias, mas que teria preferido que houvesse na forma como os volumes foram publicados uma margem de dúvida razoável quanto ao que é biográfico e ao que é ficção, para dispensar o leitor de se sentir cúmplice ou espectador mórbido de passagens por vezes inevitavelmente desconfortáveis (ainda que não maliciosas) para os retratados.

Contudo, não é este o meu ponto na procura dos livros de Linda. Mesmo que não acreditem (e já tenho idade para me estar nas tintas), o meu interesse em outras perspectivas eventuais sobre o universo Knausgård é literário, não melodramático, muito menos bisbilhoteiro. É como se fosse possível dar sequência a uma narrativa que nos fascinou através de outros autores que escrevem sobre o mesmo tema. E como se, além disso, pudéssemos continuar a acompanhar uma personagem que é ressuscitada noutras obras. Depois, há na biografia de Linda aspectos humanos e sociológicos, que inspiraram de facto os seus romances — não necessariamente (ou sobretudo não apenas) relacionados com a intriga e a tensão que foram desenvolvidos nos livros de Karl Ove —, que são de um eminente interesse literário, por um lado, e, por outro, de interesse psicológico, neurológico, científico e social (Linda sofre de transtorno bipolar, como o pai, e submeteu-se a perturbantes tratamentos por electrochoques).

Associando-se a estes motivos de interesse as boas críticas às obras da autora, talvez se possa perceber que tenha optado por encomendar do Brasil o livro A Pequena Outubrista (October Child, em tradução inglesa a publicar em Junho) e de Espanha o anterior Bienvenidos a América. Ignoro se há planos de alguma editora portuguesa para os publicar (a Relógio d’Água, que edita Karl Ove, diz que não os tem e eu digo que é preciso saber perder oportunidades...), mas agora também já não importa, as encomendas estão feitas. É só aguardar. Com impaciência.

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O que escrevi em 2019 sobre A Minha Luta: https://canhoes.blogspot.com/2019/04/eppur-si-muove-alguns-polipticos.html

domingo, 28 de março de 2021

Fade news

Antes das fake news propaladas em massa por grupos ideológicos idiotas ou mal-intencionados, havia já a figura do «assessor de comunicação», geralmente um jornalista no desemprego ou com outras ambições que aceitava um salário para, intrometendo-se na área do publicitário mas sem a mesma franqueza etimológica deste, vender um produto: uma ideia, um projecto, uma instituição, uma personalidade, um político, um sabonete.

Em algum momento — antes até da época em que os jornalistas passaram a ser substituídos por estagiários mal pagos e mal formados —, a carreira de assessor de comunicação deixou de ter a realidade em grande conta e a energia antes gasta a dar clareza e eficácia às mensagens passou a ser empregue em golpes criativos. O saber foi substituído pela invenção e o substantivo pelo adjectivo, o eufemismo ou a hipérbole. Uma nota de imprensa sobre a actividade necessária mas banal de uma empresa ou repartição passou a ser emitida com liberdade literária ou empolgamento de prosa poética, por vezes descolando tanto da realidade que em catálogos mais escrupulosos leva, compreensivelmente, a etiqueta de ficção especulativa ou científica.

O mais eficaz dos assessores de comunicação é hoje aquele que tem os contactos certos na imprensa. Mas a consciência, improvável, de que a sua força vem das relações sociais e não da sua eloquência ou do seu estilo é insuficiente para que o assessor desista da aspiração antiga de ser um domador de linguagem. Não se resignando a entregar a mensagem e receber o respectivo e honesto salário de mensageiro, o assessor obriga-se, em horas esforçadas, queimando desnecessariamente as pestanas, sutor ultra crepidam, a «tratar» a informação, não raro distorcendo a mensagem. E ao ver mais tarde o sucesso que deve à sua agenda de contactos confunde-o de novo com o sucesso do seu artesanato, confunde o acesso aos meios com o domínio dos modos, e persiste. Por isso, informação que podia só ser amplamente difundida é não raro também amplamente deformada.

A corrente filosófica e o movimento intelectual que fundiram o assessor com o publicitário e a comunicação com a propaganda medraram também nas redacções dos media. Não apenas pela antiga, tradicional promiscuidade entre as duas profissões, mas porque passou a haver também universidades e a sua necessidade vital de expelir bacharéis da comunicação como quem expele caroços de cerejas.

Colocado num órgão de imprensa ou num gabinete de comunicação, o recém-formado vem cheio de vontade e cheio de hipérboles. A sua energia excessiva de caloiro (e as redacções tendem a encher-se deles, porque o jornalista tarimbado custa dinheiro) não concebe notícias ou comunicados sóbrios e factuais, meramente informativos. Há que dar a interpretação do mensageiro e há que introduzir emoção onde ela não existe ou é dispensável. Um lead deixa assim de ser um resumo eloquente dos elementos principais da informação para ser um slogan que vive por si próprio, com frequência perdendo a sua relação hierárquica ou semântica com a informação original. E a um título não lhe basta ser o «elemento de identificação que indica e chama a atenção para a matéria de que trata o texto»: tem de ser um apelo ou uma acusação, o cabeçalho de um manifesto ou de um libelo.

É útil aqui lembrar que o soundbite não foi inventado por políticos, mas por profissionais da comunicação.

E os profissionais da comunicação adaptam-se bem, como baratas no pós-apocalipse, a todos os ambientes, da redacção clássica à moderna sala de spin doctors, e são hoje por isso intermutáveis. Quando instalados num gabinete de comunicação, gostam de escrever como jornalistas, forjando a mensagem como uma notícia. Quando deixados à solta numa redacção, aceitam sem embaraços, antes com o alívio, a notícia que lhes chega pré-escrita pelos seus irmãos siameses, apondo-lhe simplesmente, com despudor ou apenas tédio de amanuense, a sua assinatura de jornalistas ou o carimbo do órgão que os emprega — certos, com razão, de que a sociedade já nem diferencia um comunicado ou uma opinião de uma notícia.

A comunicação que passa pelas mãos de assessores e jornalistas vocacionados para o impacto pode falhar tudo — nomes, factos, argumentos, ideias, raciocínios — desde que cumpra uma ou mais destas funções: agitar, perturbar, deslumbrar, indignar, seduzir, incomodar, emocionar. Peças deste tipo de comunicação, «caracterizadas pela predominância de situações violentas e sentimentos exagerados», antigamente subiam aos palcos e levavam o nome honesto de «melodrama». Donde não é errado concluir que estes assessores ou jornalistas seriam mais rigorosamente tributados pelas Finanças como dramaturgos.

Deve preocupar-se quem procura difundir uma mensagem através de profissionais da comunicação, porque arrisca-se a um dilema ontológico ou jurídico. O sujeito da notícia, nas mãos deles, é personagem de ficção, com discurso, pensamento e por vezes biografia inventados. Com uma frequência perturbadora, o sujeito depois de noticiado já não é um cidadão real — é um fantasma ou um apátrida. Depois de descobrir aquilo em que a sua mensagem e ele próprio se transformaram, o sujeito olha-se shakespeareanamente ao espelho duvidando de que exista — e é detido pelo SEF por não conseguir provar a sua cidadania.

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* Banda sonora: https://youtu.be/p-QqRewb7V8

sábado, 20 de março de 2021

«O politicamente incorrecto tornou-se a suprema manifestação do politicamente correcto.»

Independentemente do que concluamos sobre a polémica que envolveu a tradução para holandês da obra da poetisa Amanda Gorman, mas vendo a forma como uma vasta brigada muito segura de si aproveita para dar automaticamente sentenças definitivas a propósito de tudo e de nada, há pertinência em ler o pequeno texto de António Guerreiro que transcrevo abaixo. Além da frase que retirei para título (que constata aquilo que é já evidente para muitos de nós), destaco uma outra passagem que me parece caracterizar muito bem a forma como agem os que laboriosa e pateticamente se dedicam a fazer do politicamente incorrecto o novo politicamente correcto: «reacção das pessoas presumidamente inteligentes às atitudes das pessoas obviamente estúpidas».

«Contra a onda de indignações e exclamações que se ergueram publicamente por causa do episódio da tradução, em neerlandês, do poema de Amanda Gorman, lido pela autora na cerimónia da tomada posse de Joe Biden, como presidente dos Estados Unidos, Daniel Blaufuks aplica-se a ver a questão de outro modo que tem os seus riscos, mas tem a grande vantagem e inteligência de colocar as questões noutro patamar que não é o da reacção das pessoas presumidamente inteligentes às atitudes das pessoas obviamente estúpidas. A partir desta dicotomia, não há discussão, não há razão crítica, há apenas interjeições públicas transformadas em discurso. Ora, as coisas são muito mais complicadas. É o que mostra Daniel Blaufuks neste artigo que, para além disso, tem o efeito de tornar visível uma reversibilidade: o politicamente incorrecto tornou-se a suprema manifestação do politicamente correcto. E vice-versa.»

O texto de Guerreiro, que pode ser encontrado aqui: https://www.publico.pt/2021/03/19/culturaipsilon/cronica/bemvindos-poetas-1954756

e é sobre este texto de Daniel Blaufuks: https://www.publico.pt/2021/03/16/culturaipsilon/noticia/tentativa-va-equilibrar-desequilibrio-1954503

O texto original da polémica encontra-se aqui: https://www.volkskrant.nl/columns-opinie/opinie-een-witte-vertaler-voor-poezie-van-amanda-gorman-onbegrijpelijk~bf128ae4/?referrer=https%3A%2F%2Fwww.publico.pt%2F

quarta-feira, 17 de março de 2021

Rapaziada do nosso tempo

Uma destas noites perdi-me a ver, com certa comoção, um documentário sobre a gravação da música e lançamento do disco ‘Do They Know It's Christmas?’ (de que aliás já tinha visto parte há alguns anos). A comoção não me vinha da qualidade da música ou da campanha humanitária que ela servia, mas de estar a ver aquilo (também com embaraço, como quando vemos fotografias do nosso cabelo antigo) como se assistisse à projecção numa parede caiada de um episódio de família ou entre amigos filmado em Super 8.
 
A música e os artistas dos anos 80 não são uma página (boa ou má) na história da arte mundial: são uma memória pessoal (e intransmissível, temo bem) de quem era adolescente naquela década. Não há ali vedetas, mas rapaziada do nosso tempo, com quem partilhámos umas aventuras. Só o dinheiro que eles ganharam não é também nosso. Incompreensivelmente.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Um jogo fleumático

No tempo que levamos de pandemia, também dediquei algumas madrugadas a ver snooker, mas por alguma razão ainda não me tinha ocorrido escrever nada sobre o assunto. Talvez porque não encontrei um Wawrinka que me pudesse servir de herói trágico (ver post anterior).

As emoções num frame de snooker têm de ser procuradas, não nos gestos ou nas expressões dos jogadores — contidos os primeiros e limitadas a um franzir de nariz as segundas —, mas no próprio jogo, na geometria das jogadas e na subtil eloquência das tacadas.

Os profissionais da modalidade, com a excepção ocasional do impulsivo Ronnie O’Sullivan, encarnam o espírito fleumático dos oficiais britânicos que primeiro a jogaram, no século XIX, pelo que por vezes só nas tabelas de resultados encontramos a grandiloquência das grandes vitórias e derrotas.

Um dos campeões actuais chama-se Trump e a sua expressividade está nos antípodas do histrionismo do homónimo ex-presidente americano: a sua celebração de uma vitória é tão enfática quanto o agradecimento cortês que alguém mostra ao garçon que lhe serve o habitual café pós-prandial.

Uma final de snooker não convida à mesma euforia de outros desportos. Após o último frame, seguimos o exemplo dos próprios jogadores e despedimo-nos da televisão cavalheirescamente, com um breve aceno de cabeça, sem que chegue a materializar-se o ímpeto de escrever sobre o jogo. Guardamos o guarda-chuva e o chapéu no bengaleiro da entrada e recolhemo-nos ordeiramente ao bedroom.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Venda de livros

A decisão de autorizar a venda de livros é elementar. A decisão de as livrarias continuarem fechadas é… característica. Em Portugal os governos não pensam ser necessário ter uma política de cultura e do livro e por isso têm por ministério da área uma repartição que se ocupa do despacho e é vagamente instruída para deitar como puder, preferencialmente sem despesa, água na fervura do sector. O ministério da educação, por sua vez, especializa-se em assobiar para o lado, não vá alguém querer implicá-lo nisto dos livros.

A nação, que há muitos anos não tem um governo capaz de perder um minuto do seu precioso tempo a olhar para a arbitrariedade instalada com o acordo ortográfico, não era agora que ia ter um disposto ao exercício de imaginar a venda de livros em tempos de cólera.

De resto, a dica do presidente sobre este assunto deve ter caído no conselho de ministros como mosca na sopa, uma contrariedade, a excentricidade de um ex-vendedor de enciclopédias a que havia contudo que dar alguma atenção não fosse o homem indispor-se quando se tratasse de temas sérios.

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Wawrinka, o herói trágico

O ténis teve os seus Fab Four, a que chamaram na verdade Big Four, com Federer, Nadal, Djokovic e Murray. As lesões e a baixa de forma de Andy Murray abriram duas narrativas míticas sucedentes: a redução da elite a um Big Three ou a mais controversa inclusão de Stan Wawrinka num novo Big Four. O próprio Wawrinka afirmou, e não com falsa modéstia, que não tinha a mesma consistência dos restantes.

Uma destas noites estive a ver um jogo com Wawrinka no open da Austrália e confirmei: Wawrinka é o meu tenista preferido. O tenista suíço perdeu os primeiros dois sets, recuperou como faz tantas vezes ganhando os dois seguintes, levou o quinto set ao tiebreak, que esteve a vencer por 6 a 1, e perdeu por 9 a 11.

Wawrinka é um campeão talhado para sofrer, serenamente, e muitas vezes perder. É o herói trágico por quem torço, porque só ele traz a emoção da luta, do sofrimento. Nadal ou Federer, mais campeões do que Wawrinka, são emocionalmente monótonos, porque o mais provável é que ganhem, perder seria a surpresa, é sempre a surpresa, até com o quase quarentão Federer. Se vejo um jogo de Nadal é com esperança que perca, ou seja, que haja algo emocionante num jogo seu. Torço sempre pelo adversário.

Nadal pode fascinar pela energia obsessiva e vencedora, Federer pela técnica e a graciosidade, igualmente vencedoras, mas só Wawrinka me põe incondicionalmente do seu lado, a partilhar com ele os perigos, as muitas frustrações — e a verdadeira alegria da vitória, porque rara. Ou mais rara. Assistir a um jogo dos primeiros pode ser uma experiência estética ou dar-nos o conforto de estar do lado dos grandes, dos fortes — mas Wawrinka permite-nos isso e a incógnita do resultado final, a adrenalina extra que essa expectativa segrega. Se o desporto é catarse para o público, Wawrinka oficia-a melhor do que ninguém. Wawrinka interessaria mais a Aristóteles e a Shakespeare. 

Wawrinka não é um herói de Hollywood, antecipadamente vencedor. É um herói trágico. Um herói trágico que se perde não pelo seu orgulho, como em muitos dramas gregos, mas pela sua humanidade. Não é um deus, mas um homem como nós. Um pouco melhor que nós. Um grande tenista.