Quando, esquecido da inutilidade da empresa, dou a mim mesmo o encargo de escrever páginas para um livro, a ânsia por me abstrair do que me rodeia enquanto escrevo é tal que por vezes desespero se não o consigo.
Um dia de sol é um suplício, porque todos os meus sentidos anelam por sair para o ar livre. A chuva é por isso uma bênção, sinto que o mundo se recolhe dentro de si mesmo quando chove e o que sobra é uma paisagem vazia e silenciosa, propícia. O meu próprio espírito recolhe-se e o corpo conforma-se.
A noite avançada, antiquíssima e idêntica, é mais propícia para o vão acto de escrever, mas nem sempre temos o privilégio da noite ou de chegar a ela, às suas horas sossegadas, com a energia e a leveza de espírito necessárias. O dia é um privilégio quando podemos dispor dele inaugural, sem cronómetro, directa e frescamente saídos dos braços de Morfeu para a página ou ecrã brancos. Mas isso só nos é dado em férias, feriados ou sabáticas, e acaba muitas vezes por ser uma tortura, com todos os barulhinhos e estrondos que a humanidade faz a viver e a dizer que está viva.
Só recorro à música quando não consigo outra forma de ignorar a banda sonora da vida exterior. À música clássica, instrumental, entenda-se, porque todos os restantes géneros são caprichosos e exigem atenção, distraem, não têm a gentileza, o altruísmo de permitir a um espírito que se liberte. Mas mesmo uma sinfonia raramente é solução para mim que — talvez por ser tão propício a deixar fugir ideias e raciocínios, por vezes suspeitados, completos e profundos, num lampejo de intuição — preciso do cérebro todo e de todos os sentidos envolvidos na página, banal que seja.
Prefiro em geral o silêncio, como o monge que escuta a brisa à espera da voz de deus, temente, no meu caso, que em vez dela me chegue, como é habitual, a ninharia que tomei por vibrante ideia literária.
E contudo dei-me hoje conta que o barulho pode em determinadas circunstâncias fornecer a alienação necessária, se for um barulho contínuo, cíclico, repetitivo, vibratório, como o de uma cigarra, não demasiado próximo para se tornar incomodativo, mas suficientemente alto para se sobrepor aos ruídos da rua e da vida, do quotidiano humano que me distrai ou irrita. Dei-me conta que as obras num apartamento três pisos abaixo podem não ser o calvário que costumam ser se o martelo pneumático for relativamente delicado e o operador capaz de sustentar durante o seu turno sequências de uma geometria sonora rigorosa.
Quando acabarem as obras talvez experimente em horas desesperadas um transe de tambores africanos. Ou enfiar a cabeça num scanner de ressonância magnética, com o seu matraquear de antiaérea. (O que até poderia ser eficaz para explorar mais profundamente a psicologia das personagens.)
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