Depois do dilema arquivológico que anteriormente referi, deparei-me com outro, ainda mais habitual: o de decidir a próxima leitura.
Há poucos dias tinha saído do meu exílio social e corrido para a livraria como bêbado para a taberna, tropeçando e tudo. Passei pelas prateleiras a espreitar o ano da colheita, a origem, a chancela, as castas, mas só por degustação visual, porque já levava decidida a lista de abastecimento. Quando fui pagar, bati com o monte de livros em cima do tampo como se pousasse assertivamente o último copo de uma série bebida à melhor de cinco, encostando-me ao balcão a olhar para o taberneiro, lânguido e (provisoriamente) satisfeito. Depois de terminar Välkommen till Amerika tinha portanto a garrafeira abastecida de tentações frescas e era difícil decidir por qual começar.
A escolha recaiu, na verdade, sobre uma aquisição um pouco anterior, porque resolvi continuar no universo de Linda Boström Knausgård (a electroconvulsoterapia interessa-me e suspeito que ando necessitado dela), para contrabalançar a leitura que trago a meio em paralelo. Ultimamente vou avançando sempre em dois livros, geralmente ficção e ensaio ou história, ou, se ambos ficção, de dois géneros diferentes — sou um leitor ecléctico, talvez também bipolar, e preciso em diferentes momentos do dia de livros distintos.
De resto, esta bipolaridade reflecte-se também no que escrevo, não só aqui no blogue — sobretudo no que escrevo fora do blogue. E reflecte-se de duas maneiras: no alento com que encaro o exercício da escrita (fatalmente denunciado pelo resultado do que escrevo) e no tipo de texto que me ponho a produzir.
Este post, por exemplo, surge porque, obrigado por contrato a escrever um livro* e de momento sem ânimo para o continuar a escrever, sinto a obrigação moral de teclar, se não inspirada e furiosamente, pelo menos a um ritmo que finja produtividade de amanuense, de dactilógrafo. Com esse objectivo de ludibriar a minha consciência, podia encher, digitando de olhos fechados para relaxar o espírito, páginas e páginas de uma sucessão aleatória, ilegível, de letras, ou, fingindo pesquisar ou citar, copiando passagens da Bíblia, mas dos textos originais, em aramaico ou lá o que é e sem espaços entre palavras nem pontuação como era prática à época, iludindo-me assim com a mancha de texto, a leitura do contador de caracteres, fingindo que o mero som de teclar é prova de entrega ao trabalho, é música literária tão válida como a das frases escritas com sentido e estilo. Fingindo em suma que cumpro a minha parte do contrato.
Não escolhi nenhuma das opções anteriores. Fiquei-me antes por esta espécie de escrita automática, sem norte nem préstimo — nem musa ou forças ocultas que me comandem lobo-antunianamente a mão —, que permite contudo que o meu eu mais corruptível venda a si mesmo a ilusão de um texto pensado, necessário, honesto. De resto, como os mais sagazes dos leitores e leitoras já perceberam, não é a primeira vez que se vende aqui ginástica de dedos a fingir trabalho intelectual. Gato por lebre.
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* O contrato não inclui edição, não temam.
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